quinta-feira, 26 de junho de 2014

Ultramontanismo: as origens do neoconservadorismo no Brasil

Frequentemente, nos deparamos por aí com afirmações e linhas de pensamento que, à primeira vista, podem parecer produto de mentes insanas, psicopáticas ou simplesmente ignorantes. Assim, por exemplo, o pastor Marcos Feliciano e suas afirmações de que os africanos são um povo amaldiçoado por Deus através de Noé e que, portanto, esta é a causa das catástrofes e tragédias que se abatem diariamente por lá. Ou afirmações de um cara que não pouca gente louva como o maior filósofo brasileiro contemporâneo, inclusive significativamente parte do meio acadêmico, Olavo de Carvalho, que afirma que a teoria da gravitação universal está errada, inclusivamente sua irmã mais nova, a teoria da relatividade, que é o sol que gira em torno da terra, que a coca-cola é feita com fetos humanos, que é o PT é uma espécie de grande satã a la Khomeini, que há uma conspiração comunista mundial etc. Ou o Lobão, conhecido músico, que um dia desses disse que a ditadura militar arrancou apenas umas unhazinhas e já está, coisa de somenos importância. Para as pessoas que estudam e vão atrás pra saber das coisas, esses e outros elementos podem causar um choque porque, aparentemente, eles saíram do nada, são uma espécie de anomalia no mundo em que reinam os conceitos de democracia e direitos humanos, parecem ter saído diretamente da idade média, em suma, não deveriam existir. Mas acontece que não é bem assim.
Na verdade, essas linha de pensamento, que poderíamos perfeitamente chamar de conservadorismo, tem uma origem. Na verdade verdadeira, eles são os legítimos representantes de nosso passado, o qual tentamos esquecer a todo custo. Tudo começou lá atraś, com a Revolução Francesa. Ela foi o divisor de águas entre uma antiga e uma nova mentalidade. Escravidão, servidão, absolutismo monárquismo, discriminações raciais, étnicas, sociais, fanatismo religioso, tudo isso, visto como coisas naturais e ordenadas pela natureza e pelas divindades, começou um influxo lento, mas constante, castigado pelo bombardeamento de novas ideias de igualdade, liberdade, fraternidade, liberdade de expressão, de crença, de pensamento, de imprensa, de trabalho, de associação, de ir e vir, entre dezenas de outros direitos que, antes eram simplesmente impensáveis para nossos ancestrais. Ora, é evidente que nosso atual mundo tem muita coisa ruim, e muito daquelas antigas práticas está em plenos pulmões ao redor do mundo e mesmo no Brasil. Mas é inegável que, nos últimos 200 e tal anos, estamos incrivelmente melhores em nossas condições de vida que nossos tataravós.
A antiga linha de pensamento foi derrotada, mas não desapareceu. Continuou sobrevivendo em setores da sociedade fiéis, e agora saudosistas do antigo passado, romantizado e tratado como um período lindo e maravilhoso. Não é à toa que a expressão "no meu tempo não era assim" é frequentemente usada por seus adeptos ainda hoje. Um dos setores mais importantes, cujas ideias continuaram praticamente intactas, foi na religião cristã, protestantes e seus netos pentecostais, católicas e outras igrejas. Particularmente na igreja católica, esse conservadorismo se fortaleceu aos poucos, dado que uma das consequências da revolução foi a hostilidade frente a ela enquanto instituição, vista como anacrônica, ultrapassada e baluarte do antigo regime dos Bourbons (na França) e, portanto, a igreja tomou como inimigos mortais todas estas ideias novas, se jogando nos braços do conservadorismo sem qualquer exame crítico mais sério. Conservadorismo e doutrina católica se fundiaram numa simbiose. Foi nesse ambiente que surgiu, ou melhor, ressurgiu, um movimento dentro dela denominado Ultramontanismo. Esse movimento defendia que cabia à igreja se opor as todas estas ideias novas, entendidas como artifício e embustes do demônio, como guardiã da sã doutrina, identificada com o que de pior a igreja havia herdado em seus 2000 anos de história. Em suma, ela se entendia como estando em guerra contra um mundo em decadência, pecaminoso e dominado pelo diabo e suas "estradas para o inferno", como apropriadamente declarou Gregório XVI ao proibir ferrovias em Roma e nos Estados Pontifícios, e a única salvação era a própria igreja. Uma instituição em guerra contra o mundo moderno. Uma dessas ideias que herdou do império romano foi o conceito de monarquia absoluta, no qual a igreja funcionava hierarquicamente, de modo que havia alguém que estava no topo da hierarquia, aquele que julga a todos, e por ninguém é julgado, exceto por Deus mesmo. Esta pessoa é o Romano Pontífice, nome oficial do que conhecemos como "papa". Ele detém o poder total e absoluto sobre todos e cada um dos fiéis católicos. No século XIX, o século em que o ultramontanismo veio com força, a total centralização do poder papal foi sacramentada pelo concílio Vaticano I, que declarou o sumo pontífice como infalível, literalmente, em matérias doutrinárias da igreja. A situação, dentro da igreja católica, permanece exatamente igual desde esse tempo até os dias atuais.
Essa noção de "bastião contra o mundo moderno" calou fundo em países extremamente católicos como o Brasil, desde já acostumados ao secular absolutismo monárquico dos reis e do clero e seu violento autoritarismo. Mas o mundo não para, nem nunca parou, e a ciência e a tecnologica seguiram seu caminho, até chegarmos aos nossos moderníssimos celulares snapdragon, dual-core, quad-core, touchscreen etc. À medida que a tecnologia e a ciência foram tomando conta, seu antigo discurso de que tudo é do demônio, outrora tão persuassivo exatamente porque baseado na ignorância de como a natureza funcionava e na pura superstição, foi caindo não apenas em descrédito, mas também no ridículo, de modo que até mesmo eles, fustigados por todos os lados, acabaram aceitando que as ferrovias e a iluminação a gás não eram assim tão demoníacas como tinham suposto.
No Brasil, porém, esta forma de pensamento se expandiu para além da igreja católica, e se espalhou para outros setores da sociedade, entrando em simbiose com nosso conhecido pensamento racista e violentamente discriminatório e excludente, que separa rigidamente ricos e pobres, cada um seu lugar, sem qualquer chance de convivência entre um e outro exceto a relação patrão-empregado. Ela veio junto com o primeiro europeu que pisou por aqui mas, como o Brasil sempre imita o que vem de fora, rapidamente se espalhou por aqui e reforçou todos estes preconceitos que a classe dominante já nutria há tempos. É daí que saem todos aqueles que eu nomeei no primeiro parágrafo, além de Maria Marin, presidente da CBF, Pondé, Paulo Maluf, Dom Luís Gastão, príncipe herdeiro do império brasileiro, João Ricardo Moderno, presidente da academia brasileira de filosofia, raquel sheherazade, marcos feliciano, Jair bolsonaro e mais uma infindável lista. Eles, na verdade, não são uma anomalia dentro de um mundo democrático e com direitos humanos assegurados na constituição, são simplesmente os últimos representantes do passado obscuro da humanidade que, devido ao fato de sermos um país predominantemente semi-analfabeto, ainda fazem muito sucesso por aqui, já que 70% do país não tem a menor condição de ler e interpretar um simples recorte de jornal, que dirá o que passa na TV, com suas conhecidas técnicas simplórias de convencimento do público.
Acredito que estamos num ponto de nossa história enquanto país semelhante ao da França no período imediatamente anterior à revolução francesa, ou ao dos Estados Unidos durante a guerra de secessão. Um ponto em que temos duas opções: ou desperdiçarmos novamente a chance de sermos um país grande e com um ótimo nível de vida para todos, sem grandes desigualdades sociais, e continuamos a sermos um país de mente provinciana, fechada, satisfeita em sermos uma grande roça tamanho família com capitães do mato e capatazes e coroneis e sacerdotes, todos nos dizendo o que temos que fazer, ou abrirmos a porta do futuro tendo coragem de olhar para nosso próprio passado e presente, nos aceitar como somos e fazermos um futuro melhor sem racismo, sem homofobia, sem fanatismo religioso nem político, nem genocídios em favelas com os branquinhos do condomínio de luxo aplaudindo e dando medalha para o policial que mais mata por mês. Se fizermos isso, investiremos pesado em educação, em ciências e em filosofia. E todos estes que resquícios de nosso sombrio passado, que ainda têm um grau razoável de poder em nossos corações e mentes (e na política), desaparecerão e finalmente ocuparão o lugar em que já deveriam estar, em algum livro empoeirado de história do Brasil.

Eduardo Viveiros.

Ultramontanismo: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_ultramontanismo.htm

segunda-feira, 23 de junho de 2014

A Apatia do Eleitor Brasileiro

    Frequentemente, acusa-se o eleitor brasileiro de ser inepto, alienado, nem um pouco preocupado com os destinos políticos do país, sequer lembrando-se em quem votou nas últimas eleições, de não fiscalizar seus próprios representantes, e por fim de não se interessar por política. Mas será mesmo verdade tais acusações? ou melhor: qual a origem do suposto desinteresse da população pelo mundo político?
    Como quase tudo na vida, há uma origem histórica para esse comportamento: não possuimos uma tradição democrática. Isso é fácil de constatar: o atual período democrático brasileiro, chamado Nova República, começou em 1985. Portanto, já lá vão 29 anos de democracia. Este é o maior período de democracia em todos os 192 anos de história do Brasil independente. A imensa maioria do período do Brasil independente passou-se sob a sombra de ditaduras militares, coronelismo, autoritarismo, racismo, nazismo, fascismo, entre outros "ismos". O que isso significou? significou a completa e total exclusão sistemática da imensa maioria da população brasileira de todo o processo político, pois todos estes acontecimentos nunca passaram de meras briguinhas internas entre a elite brasileira a respeito do melhor modo de "conduzir o Brasil ao desenvolvimento", isto é, como ficar mais rico e poderoso enquanto classe. Historicamente, portanto, a política jamais fez parte do cotidiano da imensa maioria da população, sempre foi vista como algo alienígena e estranho, "coisa de gente estudada", como vez por outra vê-se alguém mais velho a falar. O que de facto fazia parte do cotidiano era a necessidade diária de sobreviver, e como conseguir amanhã algo para comer ou beber.
    Isso fica bastante claro ao se olhar a história do voto no Brasil: no período imperial, só podia ser eleitor quem tivesse uma renda mínima de 100 mil réis. Como se pode imaginar, tal quantia era inimaginável para a imensa maioria da população, maioritariamente composta por negros (alforriados ou escravos), índios e brancos pobres, todos completamente analfabetos (outro requisito para ser eleitor), já que a instrução era privilégio da classe rica. No fim do império, estima-se que apenas 10% da população podia votar.
    No período republicano, nada mudou: O primeiro presidente civil da história do Brasil, Prudente de Morais, foi eleito com 270 mil votos, ou 2% da população. Somente no início do século XX, haveria uma tímida mudança na quantidade de eleitores com o direito ao voto feminino conquistado em 1932 pelo movimento feminista (ainda hoje encontrando forte oposição, e muitas vezes chamadas de "feminazis" pelos conservadores, que jamais digeriram bem esta história de igualdade sexual). Porém, não nos iludamos: numa das últimas eleições brasileiras, Jânio Quadros foi eleito com uma "incrível" marca de 6 milhões de votos, que representava cerca de 10% da população, a mesma porcentagem da do final do império. Somente com a constituição cidadã de 1988, é que o direito ao voto foi, pela primeira vez, ampliado de tal maneira que, agora, de facto, a maioria da população brasileira pode ser considerada eleitor, e exercer, pela primeira vez na vida, o direito a interferir na política com o voto. As primeiras eleições gerais em que esse novo eleitorado exerceu tal direito foram em 1990, quando foi eleito o fatídico Collor, o mesmo que foi líder de um esquema de corrupção famoso no palácio do Planalto, e hoje é senador.
    1990: faz então 24 anos de lá pra cá. A imensa maioria das pessoas hoje já era nascida por essa época (inclusive este que vos escreve). Em 24 anos, é impossível criarmos uma tradição democrática sólida, que só é possível quando formarmos duas ou mais gerações no pensamento democrático. Não tivemos ainda tempo hábil para isso. Frequentemente compara-se o Brasil com países como EUA e França. Esquece-se, porém, que tais países possuem uma solidíssima tradição democrática: os EUA vivem isto desde a fundação do país em 1776 ou até antes, enquanto a França desde pelo menos 1870, com uma interrupção relativamente breve durante a ocupação nazista e o governo do marechal Vichy. Estamos portanto num período de aprendizado e adaptação à democracia que, para nós, sempre foi algo estranho. Assim como um jovem de 29 anos, já vimos e aprendemos muita coisa na vida, evoluímos bastante desde a infância e a adolescência, porém, ainda somos jovens, não é possível comparar a sabedoria de um jovem de 29 anos com alguém de 80. Não podemos exigir do eleitor brasileiro, durante séculos acostumado ao mandonismo e autoritarismo da classe rica, totalmente alijado da política, que do nada se comporte de maneira exemplar, como se fosse extremamente acostumado e habilidoso nessa área.
    Mas nem tudo são coisas negativas: a meu ver, estamos indo muito bem, obrigado. A cada ano que passa, cresce cada vez mais a indignação contra os vícios do sistema eleitoral, e do próprio sistema político do país. Se antes a corrupção era algo normal, recebido com apatia por se acreditar que nada podíamos fazer e que não nos dizia respeito, hoje, qualquer real surrupiado dos cofres públicos provoca tempestades de ira popular no Facebook, Twitter, e muitas vezes desemboca em manifestações e quebra-quebra na vida real. Aqui na minha cidade,  estão a pôr fogo em ônibus velhos de 20 anos de idade quase que semanalmente, o povo já anda com álcool na mochila e, forçado por isso, a ANTT finalmente cedeu e vai abrir licitação de ônibus, coisa que jamais fez em 40 e tantos anos de apatia e resignação popular. Estamos bem longe da perfeição, mas as perspectivas são muito boas para nossa jovem democracia. É esperar para ver aonde vai dar isto tudo.

Eduardo Viveiros

terça-feira, 10 de junho de 2014

“E preciso se representar uma grande cidade francesa no final do século XVIII, entre 1750 e 1780, não como uma unidade territorial, mas como multiplicidades emaranhadas de territórios heterogêneos e poderes rivais.
Paris, por exemplo, não formava uma unidade territorial, uma região em que se exercia um único poder. Mas um conjunto de poderes senhoriais detidos por leigos, pela Igreja, por comunidades religiosas e corporações, poderes estes com autonomia e jurisdição próprias. E, além disso, ainda existiam os representantes do poder estatal: o representante do rei, o intendente de polícia, os representantes dos poderes parlamentares. O rio Sena, por exemplo, e suas margens, estava sob a soberania do prévôt des marchands. Mas bastava ultrapassar essas margens para se estar sob outra jurisdição, a do lugar−tenente de polícia ou a do parlamento.
Ora, na segunda metade do século XVIII, se colocou o problema da unificação do poder urbano. Sentiu−se necessidade, ao menos nas grandes cidades, de constituir a cidade como unidade, de organizar o corpo urbano de modo coerente, homogêneo, dependendo de um poder único e bem regulamentado.
E isso por várias razões. Em primeiro lugar, certamente, por razões econômicas. Na medida em que a cidade se torna um importante lugar de mercado que unifica as relações comerciais, não simplesmente a nível de uma região, mas a nível da nação e mesmo internacional, a multiplicidade
de jurisdição e de poder torna−se intolerável. A indústria nascente, o fato de que a cidade não é somente um lugar de mercado, mas um lugar de produção, faz com que se recorra a mecanismos de regulação homogêneos e coerentes.
A segunda razão é política. O desenvolvimento das cidades, o aparecimento de uma população operária pobre que vai tornar−se, no século XIX, o proletariado, aumentará as tensões políticas no interior da cidade. As relações entre diferentes pequenos grupos − corporações, ofícios, etc.−, que se opunham uns aos outros, mas se equilibravam e se neutralizavam, começam a se simplificar em uma espécie de afrontamento entre rico e pobre, plebe e burguês, que se manifesta através de agitações e sublevações urbanas cada vez mais numerosas e freqüentes. As chamadas revoltas de subsistência, o fato de que, em um momento de alta de preços ou baixa de salários, os mais pobres, não mais podendo se alimentar, saqueiam celeiros, mercados, docas e entrepostos, são
fenômenos que, mesmo não sendo inteiramente novos, no século XVIII, ganham intensidade cada vez maior e conduzirão às grandes revoltas contemporâneas da Revolução Francesa.
De maneira esquemática pode−se dizer que até o século XVII, na Europa, o grande perigo social vinha do campo. Os camponeses paupérrimos, no momento de más colheitas ou dos impostos, empunhavam a foice e iam atacar os castelos ou as cidades. As revoltas do século XVII foram revoltas camponesas. As revoltas urbanas nelas de incluíam. No final do século XVIII, ao contrário,
as revoltas camponesas entram em regressão, acalmam−se em conseqüência da elevação do nível de vida dos camponeses e a revolta urbana torna−se cada vez mais freqüente com a formação de uma plebe em vias de se proletarizar. Daí a necessidade de um poder político capaz de esquadrinhar esta população urbana.
E então que aparece e se desenvolve uma atividade de medo, de angústia diante da cidade.
Cabanis, filósofo do final do século XVIII, dizia, por exemplo, a respeito da cidade: "Todas as vezes que homens se reúnem, seus costumes se alteram; todas as vezes que se reúnem em lugares fechados, se alteram seus costumes e sua saúde". Nasce o que chamarei medo urbano, medo da cidade, angústia diante da cidade que vai se caracterizar por vários elementos: medo das oficinas e
fábricas que estão se construindo, do amontoamento da população, das casas altas demais, da população numerosa demais; medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; medo dos esgotos, das caves sobre as quais são construídas as casas que estão sempre correndo o perigo de
desmoronar.
Tem−se, assim, certo número de pequenos pânicos que atravessaram a vida urbana das grandes cidades do século XVIII, especialmente de Paris. Darei o exemplo do "Cemitério dos Inocentes" que existia no centro de Paris, onde eram jogados, uns sobre os outros, os cadáveres das pessoas que não eram bastante ricas ou notáveis para merecer ou poder pagar um túmulo individual. O
amontoamento no interior do cemitério era tal que os cadáveres se empilhavam acima do muro do claustro e caíam do lado de fora. Em torno do claustro, onde tinham sido construídas casas, a pressão devido ao amontoamento de cadáveres foi tão grande que as casas desmoronaram e os esqueletos se espalharam em suas caves provocando pânico e talvez mesmo doenças. Em todo caso, no espírito das pessoas da época, a infecção causada pelo cemitério era tão forte que, segundo elas, por causa da proximidade dos mortos, o leite talhava imediatamente, a água apodrecia, etc. Este pânico urbano é característico deste cuidado, desta inquietude político−sanitária que se forma à medida em que se desenvolve o tecido urbano.
Para dominar esses fenômenos médicos e políticos que inquietam tão fortemente a população das cidades, particularmente a burguesia, que medidas serão tomadas? Intervém um curioso mecanismo que se podia esperar, mas que não entra no esquema habitual dos historiadores da medicina. Qual foi a reação da classe burguesa que, sem exercer o poder, detido pelas autoridades tradicionais, o reivindicava? Ela lançou mão de um modelo de intervenção muito bem estabelecido mas raramente utilizado. Trata−se do modelo médico e político da
quarentena.
Desde o fim da Idade Média, existia, não só na França mas em todos os países da Europa, um regulamento de urgência, como se chamaria em termos contemporâneos, que devia ser aplicado quando a peste ou uma doença epidêmica violenta aparecesse em uma cidade. Em que consistia
esse plano de urgência?
1o) Todas as pessoas deviam permanecer em casa para serem localizadas em um único lugar. Cada família em sua casa e, se possível, cada pessoa em seu próprio compartimento. Ninguém se movimenta.
2o) A cidade devia ser dividida em bairros que se encontravam sob a responsabilidade de uma autoridade designada para isso. Esse chefe de distrito tinha sob suas ordens inspetores que deviam durante o dia percorrer as ruas, ou permanecer em suas extremidades, para verificar se alguém saia de seu local. Sistema, portanto, de vigilância generalizada que dividia, esquadrinhava
o espaço urbano.
3o) Esses vigias de rua ou de bairro deviam fazer todos os dias um relatório preciso ao prefeito da cidade para informar tudo que tinham observado. Sistema, portanto, não somente de vigilância, mas de registro centralizado.
4o) Os inspetores deviam diariamente passar em revista todos os habitantes da cidade. Em todas as ruas por onde passavam, pediam a cada habitante para se apresentar em determinada janela, de modo que pudessem verificar, no registro−geral, que cada um estava vivo. Se, por acaso, alguém não aparecia, estava, portanto, doente, tinha contraído a peste era preciso ir buscá−lo e
colocá−lo fora da cidade em enfermaria especial. Tratava−se, portanto, de uma revista exaustiva dos vivos e dos mortos.
5o) Casa por casa, se praticava a desinfecção, com a ajuda de perfumes que eram queimados. Esse esquema da quarentena foi um sonho político−médico da boa organização sanitária das cidades, no século XVIII. Houve fundamentalmente dois grandes modelos de organização médica na história ocidental: o modelo suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste. Na Idade Média, o leproso era alguém que, logo que descoberto, era expulso do espaço comum, posto fora dos muros da cidade, exilado em um lugar confuso onde ia misturar sua lepra à lepra dos outros. O mecanismo da exclusão era o mecanismo do exílio, da purificação do espaço urbano. Medicalizar alguém era mandá−lo para fora e, por conseguinte, purificar os outros. A medicina era uma
medicina de exclusão. O próprio internamento dos loucos, malfeitores, etc., em meados do século XVII, obedece ainda a esse esquema. Em compensação, existe um outro grande esquema político−médico que foi estabelecido, não mais contra a lepra, mas contra a peste. Neste caso, a medicina não exclui, não expulsa em uma região negra e confusa. O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá−los, individualizá−los, vigiá−los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos. Tem−se, portanto, o velho esquema médico de reação á lepra que é de exclusão, de exílio, de forma religiosa, de purificação da cidade, de bode expiatório. E o esquema suscitado pela peste; não mais a exclusão, mas o internamento; não mais o agrupamento no exterior da cidade, mas, ao contrário, a análise minuciosa da cidade, a análise individualizante, o registro permanente; não mais um modelo religioso, mas militar. É a revista militar e não a purificação religiosa que serve,
fundamentalmente, de modelo longínquo para esta organização político−médica.
A medicina urbana com seus métodos de vigilância, de hospitalização, etc., não é mais do que um aperfeiçoamento, na segunda metade do século XVIII, do esquema político−médico da quarentena que tinha sido realizado no final da Idade Média, nos séculos XVI e XVII. A higiene pública é uma variação sofisticada do tema da quarentena e é dai que provém a grande medicina urbana que aparece na segunda metade do século XVIII e se desenvolve sobretudo na França.Em que consiste essa medicina urbana?
Essencialmente em três grandes objetivos:
1o) Analisar os lugares de acúmulo e amontoamento de tudo que, no espaço urbano, pode provocar doença, lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos. São essencialmente os cemitérios. E assim que aparecem, em torno dos anos 1740 − 1750, protestos contra o amontoamento dos cemitérios e, mais ou menos em 1780, as primeiras grandes emigrações de cemitérios para a periferia da cidade. E nesta época que aparece o cemitério
individualizado, isto é, o caixão individual, as sepulturas reservadas para as famílias, onde se escreve o nome de cada um.
Crê−se, freqüentemente, que foi o cristianismo quem ensinou a sociedade moderna o culto dos mortos. Penso de maneira diferente. Nada na teologia cristã levava a crer ser preciso respeitar o cadáver enquanto tal. O Deus cristão é bastante Todo−Poderoso para poder ressuscitar os mortos mesmo quando misturados em um ossuário. Em compensação, a individualização do cadáver, do caixão e do túmulo aparece no final do século XVIII por razões não teológico−religiosas de respeito ao cadáver, mas político−sanitárias de respeito aos vivos. Para que os vivos estejam ao abrigo da influência nefasta dos mortos, é preciso que os mortos sejam tão bem classificados quanto os vivos ou melhor, se possível. E assim que aparece na periferia das cidades, no final do século XVIII, um verdadeiro exército de mortos tão bem enfileirados quanto uma tropa que se passa em revista. Pois é preciso esquadrinhar, analisar e reduzir esse perigo perpetuo que os mortos constituem. Eles vão, portanto, ser colocados no campo e em regimento, uns ao lado dos outros, nas grandes planícies que circundam as cidades. Não uma idéia cristã, mas médica, política. Melhor prova é que, quando se pensou na transferência do Cemitério dos Inocentes, de Paris, apelou−se para Fourcroy, um dos grandes químicos do final do século XVIII, a fim de saber o que se devia fazer contra a influência desse cemitério. E o
químico que pede a transferência do cemitério. E o químico, enquanto estuda as relações entre o organismo vivo e o ar que se respira, que é encarregado desta primeira policia médica urbana sancionada pelo exílio dos cemitérios. Outro exemplo é o caso dos matadouros que também estavam situados no centro de Paris e que se decidiu, depois de consultada a Academia de Ciências, colocar nos arredores de Paris, a oeste, em La Villette. Portanto, o primeiro objetivo da medicina urbana é a análise das regiões de amontoamento, de confusão e de perigo no espaço urbano.
2o) A medicina urbana tem um novo objeto: o controle da circulação. Não da circulação dosindivíduos, mas das coisas ou dos elementos, essencialmente a água e o ar. Era uma velha crença do século XVIII que o ar tinha uma influência direta sobre o organismo, por veicular miasmas ou porque as qualidades do ar frio, quente, seco ou úmido em demasia se comunicavam ao organismo ou, finalmente, porque se pensava que o ar agia diretamente por ação mecânica, pressão direta sobre o corpo. O ar, então, era considerado um dos grandes fatores patógenos. Ora, como manter as qualidades do ar em uma cidade, fazer com que o ar seja sadio, se ele existe como que bloqueado, impedido de circular, entre os muros, as casas, os recintos, etc? Dai a necessidade de abrir longas avenidas no espaço urbano, para manter o bom estado de saúde da população. Vai−se, portanto, pedir a comissões da Academia de Ciências, de médicos,
de químicos, etc., para opinar sobre os melhores métodos de arejamento das cidades. Um dos casos mais conhecidos foi a destruição de casas que se encontravam nas pontes das cidades. Por causa do amontoamento, do preço do terreno, durante a Idade Média e mesmo nos séculos XVII e XVIII, casas de moradia foram construídas nas pontes. Considerou−se, então, que essas casas
impediam a circulação do ar em cima dos rios, retinham ar úmido entre suas margens e foram sistematicamente destruídas. Marmontel chegou mesmo a calcular quantas mortes foram economizadas com a destruição de três casas em cima do Pont Neuf quatrocentas pessoas por ano, vinte mil em cinqüenta anos, etc. Organizam−se, portanto, corredores de ar, como também corredores de água. Em Paris, em 1767, de modo bastante precoce, um arquiteto chamado
Moreau propôs um plano diretor para a organização das margens e ilhas do Sena que foi aplicado até o começo do século XIX, entendendo−se que a água devia, com sua corrente, lavar a cidade dos miasmas que, sem isso, aí permaneceriam. A medicina urbana tem, portanto, como segundo objeto o controle e o estabelecimento de uma boa circulação da água e do ar.
3o) Outro grande objeto da medicina urbana é a organização do que chamarei distribuições e seqüências. Onde colocar os diferentes elementos necessários à vida comum da cidade? E o problema da posição recíproca das fontes e dos esgotos ou dos barcos−bombeadores e dos barcos−lavanderia. Como evitar que se aspire água de esgoto nas fontes onde se vai buscar água de beber; como evitar que o barco−bombeador, que traz água de beber para a população, não
aspire água suja pelas lavanderias vizinhas? Essa desordem foi considerada, na segunda metade do século XVIII, responsável pelas principais doenças epidêmicas das cidades. Daí a elaboração do 1o plano hidrográfico de Paris, em 1742, intitulado Exposé d'un plan hidrographíque de la ville de Paris, primeira pesquisa sobre os lugares em que se pode dragar água que não tenha sido suja
pelos esgotos e sobre policia da vida fluvial. De tal modo que em 1789, quando começa a Revolução Francesa, a cidade de Paris já tinha sido esquadrinhada por uma polícia médica urbana que tinha estabelecido o fio diretor do que uma verdadeira organização de saúde da cidade deveria realizar.
Um ponto, entretanto, não tinha sido tocado até o final do século XVIII, que diz respeito ao conflito entre a medicina e os outros tipos de poder: a propriedade privada. A política autoritária com respeito á propriedade privada, à habitação privada não foi esboçada no século XVIII a não ser sob um aspecto: as caves. As caves, que pertencem ao proprietário da casa, são regulamentadas quanto a seu uso e quanto às galerias que podem ser construídas. Este é o problema da
propriedade do subsolo, no século XVIII, colocado a partir da tecnologia mineira. A partir do momento em que se soube construir minas em profundidade, colocou−se o problema de saber a quem elas pertenciam. Elaborou−se uma legislação autoritária sobre a apropriação do subsolo que
estipulava, em meados do século XVIII, que o subsolo não pertencia ao proprietário do solo, mas ao Estado e ao rei. Foi assim que o subsolo privado parisiense foi controlado pelas autoridades coletivas, enquanto a superfície, ao menos no que concerne à propriedade privada, não o foi. Os espaços comuns, os lugares de circulação, os cemitérios, os ossuários, os matadouros foram controlados, o mesmo não acontecendo com a propriedade privada antes do século XIX. A burguesia que, para sua segurança política e sanitária, pretendia o controle da cidade, não podia ainda contradizer a legislação sobre a propriedade que ela reivindicava, procurava estabelecer, e só conseguirá impor no momento da Revolução Francesa. Daí, portanto, o caráter sagrado da
propriedade privada e a inércia de todas as políticas médicas urbanas com relação à propriedade privada.
A medicalização da cidade, no século XVIII, é importante por várias razões:
1o) Por intermédio da medicina social urbana, a prática médica se põe diretamente em contato com ciências extra−médicas, fundamentalmente a química. Desde o período confuso em que Paracelso e Van Helmont procuravam estabelecer as relações entre medicina e química, não houve mais verdadeiras relações entre as duas. Foi precisamente pela análise do ar, da corrente de ar, das condições de vida e de respiração que a medicina e a química entraram em contato. Fourcroy e Lavoisier se interessaram pelo problema do organismo por intermédio do controle do ar urbano. A inserção da prática médica em um corpus de ciência físico−química se fez por intermédio da urbanização. A passagem para uma medicina científica não se deu através da medicina privada,
individualista, através de um olhar médico mais atento ao indivíduo. A inserção da medicina no funcionamento geral do discurso e do saber científico se fez através da socialização da medicina, devido ao estabelecimento de uma medicina coletiva, social, urbana. A isso se deve a importância
da medicina urbana.
2o) A medicina urbana não é verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma medicina das coisas: ar, água, decomposições, fermentos; uma medicina das condições de vida e do meio de existência. Esta medicina das coisas já delineia, sem empregar ainda a palavra, a noção de meio que os naturalistas do final do século XVIII, como Cuvier, desenvolverão.
A relação entre organismo e meio será feita simultaneamente na ordem das ciências naturais e da medicina, por intermédio da medicina urbana. Não se passou da análise do organismo à análise do meio ambiente. A medicina passou da análise do meio à dos efeitos do meio sobre o organismo e finalmente à análise do próprio organismo. A organização da medicina foi importante para a
constituição da medicina científica.
3o) Com ela aparece, pouco antes da Revolução Francesa, uma noção que terá uma importância considerável para a medicina social: a noção de salubridade. Uma das decisões logo tomadas pela Assembléia Constituinte, em 1790 ou 1791, foi, por exemplo, a criação de comitês de salubridade dos departamentos e principais cidades. Salubridade não é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do meio e seus elementos constitutivos, que permitem a melhor saúde possível. Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos. E é correlativamente a ela que
aparece a noção de higiene pública, técnica de controle e de modificação dos elementos materiais do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde. Salubridade e insalubridade são o estado das coisas e do meio enquanto afetam a saúde; a higiene pública − no séc. XIX, a noção essencial da medicina social francesa − é o controle político−científico deste
meio.
Vê−se, assim, como se está bastante longe da medicina de Estado, tal como é definida na Alemanha, pois se trata de uma medicina muito mais próxima das pequenas comunidades, das cidades, dos bairros, como também não é ainda dotada de nenhum instrumento especifico de poder. O problema da propriedade privada, princípio sagrado, impede que esta medicina seja dotada de um poder forte. Mas, se ela perde em poder para a Staatsmedizin alemã, ganha certamente em fineza de observação, na cientificidade das observações feitas e das práticas estabelecidas. Grande parte da medicina científica do século XIX tem origem na experiência desta medicina urbana que se desenvolve no final do século XVIII.
III − A terceira direção da medicina social pode ser sucintamente analisada através do exemplo inglês.
A medicina dos pobres, da força de trabalho, do operário não foi o primeiro alvo da medicina social, mas o último. Em primeiro lugar o Estado, em seguida a cidade e finalmente os pobres e trabalhadores foram objetos da medicalização. O que é característico da medicina urbana francesa é a habitação privada não ser tocada e o pobre, a plebe, o povo não ser claramente considerado um elemento perigoso para a saúde da população. O pobre, o operário, não é analisado como os cemitérios, os ossuários, os matadouros,
etc.
Por que os pobres não foram problematizados como fonte de perigo médico, no século XVIII? Existem várias razões para isso: uma é de ordem quantitativa: o amontoamento não era ainda tão grande para que a pobreza aparecesse como perigo. Mas existe uma razão mais importante: é que o pobre funcionava no interior da cidade como uma condição da existência urbana. Os pobres da
cidade eram pessoas que realizavam incumbências, levavam cartas, se encarregavam de despejar o lixo, apanhar móveis velhos, trapos, panos velhos e retirá−los da cidade, redistribui−los, vendê−los, etc. Eles faziam parte da instrumentalização dá vida urbana. Na época, as casas não eram numeradas, não havia serviço postal e quem conhecia a cidade, quem detinha o saber
urbano em sua meticulosidade, quem assegurava várias funções fundamentais da cidade, como o transporte de água e a eliminação de dejetos, era o pobre. Na medida em que faziam parte da paisagem urbana, como os esgotos e a canalização, os pobres não podiam ser postos em questão, não podiam ser vistos como um perigo. No nível em que se colocavam, eles eram bastante úteis.
Foi somente no segundo terço do século XIX, que o pobre apareceu como perigo. As razões são várias:
1o) Razão política. Durante a Revolução Francesa e, na Inglaterra, durante as grandes agitações sociais do. começo do século XIX, a população pobre tornou−se uma força política capaz de se revoltar ou pelo menos, de participar de revoltas. 
2o) No século XIX encontrou−se um meio de dispensar, em parte, os serviços prestados pela população, com o estabelecimento, por exemplo, de um sistema postal e um sistema de carregadores, o que produziu uma série de revoltas populares contra esses sistemas que retiravam dos mais pobres o pão e a possibilidade de viver.
3o) A cólera de 1832, que começou em Paris e se propagou por toda a Europa, cristalizou em torno da população proletária ou plebéia uma série de medos políticos e sanitários. A partir dessa época, se decidiu dividir o espaço urbano em espaços pobres e ricos. A coabitação em um mesmo tecido urbano de pobres e ricos foi considerada um perigo sanitário e político para a cidade, o que
ocasionou a organização de bairros pobres e ricos, de habitações ricas e pobres. O poder político começou então a atingir o direito da propriedade e da habitação privadas. Foi este o momento da grande redistribuição, no II Império Francês, do espaço urbano parisiense.
Estas são as razões pelas quais, durante muito tempo a plebe urbana não foi considerada um perigo médico e, a partir do século XIX isso acontece.
É na Inglaterra, país em que o desenvolvimento industrial, e por conseguinte o desenvolvimento do proletariado, foi o mais rápido e importante, que aparece uma nova forma de medicina social. Isso não significa que não se encontrem na Inglaterra projetos de medicina de Estado, de estilo alemão, Chadwick, por exemplo, se inspirou bastante nos métodos alemães para a elaboração de seus
projetos, em torno de 1840. Além disso, Ramsay escreveu em 1846 um livro chamado Health and sickness of town populations que retoma o conteúdo da medicina urbana francesa.
E essencialmente na Lei dos pobres que a medicina inglesa começa a tornar−se social, na medida em que o conjunto dessa legislação comportava um controle médico do pobre. A partir do momento em que o pobre se beneficia do sistema de assistência, deve, por isso mesmo, se submeter a vários controles médicos. Com a Lei dos pobres aparece, de maneira ambígua, algo importante na
história da medicina social: a idéia de uma assistência controlada, de uma intervenção médica que é tanto uma maneira de ajudar os mais pobres a satisfazer suas necessidades de saúde, sua pobreza não permitindo que o façam por si mesmos, quanto um controle pelo qual as classes ricas ou seus representantes no governo asseguram a saúde das classes pobres e, por conseguinte, a proteção das classes ricas. Um cordão sanitário autoritário é estendido no interior das cidades entre ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou sem grande despesa e os ricos garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos originários da
classe pobre.
Vê−se, claramente, a transposição, na legislação médica, do grande problema político da burguesia nesta época: a que preço, em que condições e como assegurar sua segurança política. A legislação médica contida na Lei dos pobres corresponde a esse processo. Mas esta lei e a assistência−proteção, assistência−controle que ela implica, foi somente o primeiro elemento de um
complexo sistema cujos outros elementos só aparecem mais tarde, em torno de 1870, com os grandes fundadores da medicina social inglesa, principalmente John Simon, que completaram a legislação médica da Lei dos pobres com a organização de um serviço autoritário, não de cuidados médicos, mas de controle médico da população.
Trata−se dos sistemas de health service, de health officers que começaram na Inglaterra em 1875 e eram, mais ou menos, mil no final do século XIX. Tinham por função: 
1o) Controle da vacinação, obrigando os diferentes elementos da população a se vacinarem. 
2o) Organização do registro das epidemias e doenças capazes de se tornarem epidêmicas, obrigando as pessoas à declaração de doenças perigosas. 
3o) Localização de lugares insalubres e eventual destruição desses focos de
insalubridade. O health service é o segundo elemento que prolonga a Lei dos pobres. Enquanto a Lei dos pobres comportava um serviço médico destinado ao pobre enquanto tal, o health service tem como características não só atingir igualmente toda a população, como também, ser constituído por médicos que dispensam cuidados médicos que não são individuais, mas têm por objeto a população em geral, as medidas preventivas a serem tomadas e, como na medicina urbana francesa, as coisas, os locais, o espaço social, etc.
Ora, quando se observa como efetivamente funcionou o health service vê−se que era um modo de completar, ao nível coletivo, os mesmos controles garantidos pela Lei dos pobres. A intervenção nos locais insalubres, as verificações de vacina, os registros de doenças tinham de fato por objetivo
o controle das classes mais pobres. 
E esta a razão pela qual o controle médico inglês, garantido pelos health officers suscitou, desde sua criação, uma série de reações violentas da população, de resistência popular, de pequenas insurreições anti−médicas na Inglaterra da 2o metade do século XIX.
Essas resistências médicas foram indicadas por Mckeown em uma série de artigos na revista Public Law, em 1967. Creio que seria interessante analisar, não somente na Inglaterra, mas em diversos países do mundo, como essa medicina, organizada em forma de controle da população pobre, suscitou resistências. E, por exemplo, curioso constatar que os grupos de dissidência
religiosa, tão numerosos nos países anglo−saxões, de religião protestante, tinham essencialmente por objetivo, nos séculos XVII e XVIII, lutar contra a religião de Estado e a intervenção do Estado em matéria religiosa. Ora, o que reaparece, no século XIX, são grupos de dissidência religiosa, de diferentes formas, em diversos países, que têm agora por objetivo lutar contra a medicalização, reivindicar o direito das pessoas não passarem pela medicina oficial, o direito sobre seu próprio corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer como quiserem. Esse desejo de escapar da medicalização autoritária é um dos temas que marcaram vários grupos aparentemente
religiosos, com vida intensa no final do século XIX e ainda hoje. Nos países católicos a coisa foi diferente. Que significado tem a peregrinação de Lourdes, desde o final do século XIX até hoje, para os milhões de peregrinos pobres que ai vão todos os anos, senão uma espécie de resistência difusa à medicalização autoritária de seus corpos e doenças? Em lugar de ver nessas práticas religiosas um fenômeno residual de crenças arcaicas ainda não desaparecidas, não serão elas uma forma atual de luta política contra a medicalização autoritária, a socialização da medicina, o controle médico que se abate essencialmente sobre a população pobre; não serão essas lutas que reaparecem nessas formas aparentemente arcaicas, mesmo se seus instrumentos são antigos, tradicionais e supõem um sistema de crenças mais ou menos abandonadas? O vigor dessas práticas, ainda atuais, é ser uma reação contra essa social medicine, medicina dos pobres, medicina a serviço de uma classe, de que a medicina social
inglesa é um exemplo.
De maneira geral, pode−se dizer que, diferentemente da medicina urbana francesa e da medicina de Estado da Alemanha do século XVIII, aparece, no século XIX e sobretudo na Inglaterra, uma medicina que é essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná−las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas. Essa fórmula da medicina social inglesa foi a que teve futuro, diferentemente da medicina urbana e
sobretudo da medicina de Estado. O sistema inglês de Simon e seus sucessores possibilitou, por um lado, ligar três coisas: assistência médica ao pobre, controle de saúde da força de trabalho e esquadrinhamento geral da saúde pública, permitindo às classes mais ricas se protegerem dos perigos gerais. E, por outro lado, a medicina social inglesa, esta é sua originalidade, permitiu a
realização de três sistemas médicos superpostos e coexistentes; uma medicina assistencial destinada aos mais pobres, uma medicina administrativa encarregada de problemas gerais como a vacinação, as epidemias, etc., e uma medicina privada que beneficiava quem tinha meios para pagá−la. Enquanto o sistema alemão da medicina de Estado era pouco flexível e a medicina urbana francesa era um projeto geral de controle sem instrumento preciso de poder, o sistema inglês possibilitava a organização de uma medicina com faces e formas de poder diferentes segundo se tratasse da medicina assistencial, administrativa e privada, setores bem delimitados que permitiram, durante o final do século XIX e primeira metade do século XX, a existência de um esquadrinhamento médico bastante completo. “

O Nascimento da Medicina Social, Michel Foucault.

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