segunda-feira, 26 de maio de 2014


A NAÇÃO: UMA INVENÇÃO RECENTE

"É muito recente a invenção histórica da nação, entendida como Estado-nação, definida pela independência ou soberania política e pela unidade territorial e legal. Sua data de nascimento pode ser colocada por volta de 1830.
De fato, a palavra “nação” vem de um verbo latino, nascor (nascer), e de um substantivo derivado desse verbo, natio ou nação, que significa o parto de animais, o parto de uma ninhada. Por significar o “parto de uma ninhada”, a palavra natio/nação passou a significar, por extensão, os indivíduos nascidos ao mesmo tempo de uma mesma mãe, e, depois, os indivíduos nascidos num mesmo lugar. Quando, no final da Antiguidade e início da Idade Média, a Igreja Romana fixou seu vocabulário latino, passou a usar o plural nationes (nações) para se referir aos pagãos e distinguí-los do populus Dei, o “povo de Deus”. Assim, enquanto a palavra “povo” se referia a um grupo de indivíduos organizados institucionalmente, que obedecia a normas, regras e leis comuns, a palavra “nação” significava apenas um grupo de descendência comum e era usado não só para referir-se aos pagãos, em contraposição aos cristãos, mas também para referir-se aos estrangeiros (era assim que, em Portugal, os judeus eram chamados de “homens da nação”) e a grupos de indivíduos que não possuíam um estatuto civil e político (foi assim que os colonizadores se referiram aos índios falando em “nações indígenas”, isto é, àqueles que eram descritos por eles como “sem fé, sem rei e sem lei”). Povo, portanto, era um conceito jurídico-político, enquanto nação era um conceito biológico.
Antes da invenção histórica da nação, como algo político ou Estado-nação, os termos políticos empregados eram “povo” (a que já nos referimos) e “pátria”. Esta palavra também deriva de um vocábulo latino, pater, pai. Não se trata, porém, do pai como genitor de seus filhos - neste caso, usava-se genitor -, mas de uma figura jurídica, definida pelo antigo direito romano. Pater é o senhor, o chefe, que tem a propriedade privada absoluta e incondicional da terra e de tudo o que nela existe, isto é, plantações, gado, edifícios (“pai” é o dono do patrimonium), e o senhor, cuja vontade pessoal é lei, tendo o poder de vida e morte sobre todos os que formam seu domínio (casa, em latim, se diz domus, e o poder do pai sobre a casa é o dominium) , e os que estão sob seu domínio formam a familia (mulher, filhos, parentes, clientes e escravos). Pai se refere, portanto, ao poder patriarcal e pátria é o que pertence ao pai e está sob seu poder. É nesse sentido jurídico preciso que, no latim da Igreja, Deus é Pai, isto é, senhor do universo e dos exércitos celestes. É também essa a origem da expressão jurídica “pátrio poder”, para referir-se ao poder legal do pai sobre filhos, esposa e dependentes (escravos, servos, parentes pobres).
Se “patrimônio” é o que pertence ao pai, “patrício” é o que possui um pai nobre e livre, e “patriarcal” é a sociedade estruturada segundo o poder do pai. Esses termos designavam a divisão social das classes em que patrícios eram os senhores da terra e dos escravos, formando o Senado romano, e povo eram os homens livres plebeus, representados no Senado pelo tribuno da plebe. (Quando se olha um crucifixo, sempre se vê, na parte superior da cruz, uma faixa com as letras SPQR. Essas letras significam Senatus Populusque Romanus, o Senado e o Povo Romano. A faixa era obrigatória nas execuções de condenados para indicar que a execução fora aprovada por Roma.) Os patrícios eram os “pais da pátria”, enquanto os plebeus eram os “protegidos pela pátria”. Quando a Igreja Romana se estabeleceu como instituição, para marcar sua diferença do Império
Romano pagão e substituir os pais da pátria por Deus Pai, afirmou que, perante o Pai ou Senhor universal, todos são plebeus ou povo. É então que inventa a expressão “Povo de Deus”, que, como vimos, desloca a divisão social entre patrícios e plebeus para a divisão religiosa entre nações pagãs e povo cristão.
A partir do século XVIII, com a revolução norte-americana, holandesa e francesa, “pátria” passa a significar o território cujo senhor é o povo organizado sob a forma de Estado independente. Eis por que, nas revoltas de independência, ocorridos no Brasil nos finais do século XVIII e início do século XIX, os revoltosos falavam em “pátria mineira”, “pátria pernambucana”, “pátria americana”; finalmente, com o Patriarca da Independência, José Bonifácio, passou-se a falar em “pátria brasileira”. Durante todo esse tempo, “nação” continuava usada apenas para os Índios, os negros e os judeus.
Se acompanharmos a periodização proposta por Eric Hobsbawm, em seu estudo sobre a invenção histórica do Estado-nação3, podemos datar o aparecimento de “nação” no vocabulário político na altura de 1830, e seguir suas mudanças em três etapas: de 1830 a 1880, fala-se em “princípio da nacionalidade”; de 1880 a 1918, fala-se em “idéia nacional”; e de 1918 aos anos 1950-60, fala-se em “questão nacional”. Nessa periodização, a primeira etapa vincula nação e território, a segunda a articula à língua, à religião e à raça, e a terceira enfatiza a consciência nacional, definida por um conjunto de lealdades políticas. Na primeira etapa, o discurso da nacionalidade provém da economia política liberal; na segunda, dos intelectuais pequeno-burgueses, particularmente alemães e italianos, e, na terceira, emanam principalmente dos partidos políticos e do Estado.
O ponto de partida dessas elaborações foi, sem dúvida, o surgimento do Estado moderno da “era das revoluções”, definido por um território preferencialmente contínuo, com limites e fronteiras claramente demarcados, agindo política e administrativamente sem sistemas intermediários de dominação, e que precisava do consentimento prático de seus cidadãos válidos para políticas fiscais e ações militares. (Falamos em cidadãos “válidos” porque a cidadania, embora declarada universal, não o era de fato, uma vez que o cidadão era definido pela independência econômica - isto é, pela propriedade privada dos meios de produção -, excluindo trabalhadores e mulheres, e o sufrágio não era universal e sim censitário isto é, segundo o critério da riqueza e da instrução. O sufrágio universal consagrou-se nas democracias efetivamente apenas depois da Segunda Guerra Mundial, como resultado de lutas sociais e populares. Em outras palavras, liberalismo não é sinônimo de democracia.) Esse Estado precisava enfrentar dois problemas principais: de um lado, incluir todos os habitantes do território na esfera da administração estatal; de outro, obter a lealdade dos habitantes ao sistema dirigente, uma vez que a luta de classes, a luta no interior de cada classe social, as tendências políticas antagônicas e as crenças religiosas disputavam essa lealdade. Em suma, como dar à divisão econômica, social e política a forma da unidade indivisa? Pouco a pouco, a idéia de nação surgirá como solução dos problemas.
Como observa Hobsbawm, o liberalismo tem dificuldade para operar com a idéia de nação e de Estado nacional porque, para a ideologia liberal, a realidade se reduz a duas referências econômicas: uma unidade mínima, o indivíduo, e uma unidade máxima, a empresa, de sorte que não parece haver necessidade de construir uma unidade superior a estas. No entanto, os economistas liberais não podiam operar sem o conceito de” economia nacional”, pois era fato inegável que havia o Estado com o monopólio da moeda, com finanças públicas e atividades fiscais, além da função de garantir a segurança da propriedade privada e dos contratos econômicos, e do controle do aparato militar de repressão às classes populares. Os economistas liberais afirmavam por isso que a “riqueza das nações” dependia de estarem elas sob governos regulares e que a
fragmentação nacional, ou os Estados nacionais, era favorável à competitividade econômica e ao progresso.
Por outro lado, em países (como a Alemanha, os Estados Unidos ou o Brasil) que buscavam proteger suas economias do poderio das mais fortes, era grande a atração da idéia de um Estado nacional protecionista. Veio dos economistas alemães a idéia do “princípio de nacionalidade”, isto é, um princípio que definia quando poderia ou não haver uma nação ou um Estado-nação. Esse princípio era o território extenso e a população numerosa, pois um Estado pequeno e pouco populoso não poderia “promover à perfeição os vários ramos da produção”. Desse princípio derivou-se uma segunda idéia, qual seja, a nação como um processo de expansão, isto é, de conquista de novos territórios, falando-se, então, em “unificação nacional”. Dimensão do território, densidade populacional e expansão de fronteiras tornaram-se os princípios definidores da nação como Estado. Todavia, o território em expansão só se unificaria se houvesse o Estado-nação, e este deveria produzir um elemento de identificação que justificasse a conquista expansionista. Esse elemento passou a ser a língua, e por isso o Estado-nação precisou contar com uma elite cultural que lhe fornecesse não só a unidade lingüística, mas lhe desse os elementos para afirmar que o desenvolvimento da nação era o ponto final de um processo de evolução, que começava na família e terminava no Estado. A esse processo deu-se o nome de progresso.
A partir de 1880, porém, na Europa, a nação passa pelo debate sobre a “idéia nacional”, pois as lutas sociais e políticas haviam colocado as massas trabalhadoras na cena, e os poderes constituídos tiveram de disputar com os socialistas e comunistas a lealdade popular. Ou, como escreve Hobsbawm, “a necessidade de o Estado e as classes dominantes competirem com seus rivais pela lealdade das ordens inferiores se tornou, portanto, aguda”. O Estado precisava de algo mais do que a passividade de seus cidadãos: precisava mobilizá-los e influenciá-los a seu favor. Precisava de uma “religião cívica”, o patriotismo. Dessa maneira, a definição da nação pelo território, pela conquista e pela demografia já não bastava, mesmo porque, além das lutas sociais internas, regiões que não haviam preenchido os critérios do “princípio de nacionalidade” lutavam para ser reconhecidas como Estado-nações independentes. Durante o período de 1880-1918, a “religião cívica” transforma o patriotismo em nacionalismo, isto é, o patriotismo se torna estatal, reforçado com sentimentos e símbolos de uma comunidade imaginária cuja tradição começava a ser inventada.
Essa construção decorreu da necessidade de resolver três problemas prementes: as lutas populares socialistas, a resistência de grupos tradicionais ameaçados pela modernidade capitalista e o surgimento de um estrato social ou de uma classe intermediária, a pequena burguesia, que aspirava ao aburguesamento e temia a proletarização. Em outras palavras, foi exatamente no momento em que a divisão social e econômica das classes apareceu com toda clareza e ameaçou o capitalismo que este procurou na “idéia nacional” um instrumento unificador da sociedade. Não por acaso, foram os intelectuais pequeno-burgueses, apavorados com o risco de proletarização, que transformaram o patriotismo em nacionalismo quando deram ao “espírito do povo”, encarnado na língua, nas tradições populares ou folclore e na raça (conceito central das ciências sociais do século XIX), os critérios da definição da nacionalidade.
A partir dessa época, a nação passou a ser vista como algo que sempre teria existido, desde tempos imemoriais, porque suas raízes deitam-se no próprio povo que a constitui. Dessa maneira, aparece um poderoso elemento de identificação social e política, facilmente reconhecível por todos (pois a nação está nos usos costumes, tradições, crenças da vida cotidiana) e com a capacidade para incorporar numa única crença as crenças rivais, isto é, o apelo de classe, o apelo político e o apelo religioso não precisavam disputar a lealdade dos cidadãos porque toda essas crenças podiam exprimir-se umas pelas outras sob o fundo comum da nacionalidade. Sem essa referência, tornar-se-ia incompreensível que, em 1914, milhões de proletários tivessem marchado para a guerra para matar e morrer ser vindo aos interesses do capital.
Foi a percepção do poder persuasivo da “idéia nacional” que levou à “questão nacional”, entre 1918 e os anos 1950-60 do século XX4. A Revolução Russa (1917), a derrota alemã na Primeira Guerra (1914-18), a depressão econômica dos anos 20-30, o aguçamento mundial da luta de classes sob bandeiras socialistas e comunistas preparavam a arrancada mais forte do nacionalismo,
cuja expressão paradigmática foi o nazi-fascismo. No caso do Brasil, não custa lembrar o que, nessa época, diziam os fascistas, isto é, os membros da Ação Integralista Brasileira, partido político criado entre 1927 e 1928 e dirigido pelo
escritor modernista Plínio Salgado:
“Esta longa escravidão ao capitalismo internacional; este longo trabalho de cem anos na gleba para opulentar os cofres de Wall Street e da City; essa situação deprimente em face do estrangeiro; este cosmopolitismo que nos amesquinha; essas lutas internas que nos ensangüentam; esta aviltante propaganda comunista que desrespeita todos os dias a bandeira sagrada da Pátria; esse tripudiar de regionalismo em esgares separatistas a enfraquecer a Grande Nação; esse comodismo burguês; essa miséria de nossas populações sertanejas; a opressão em que se debate nosso proletariado, duas vezes explorado pelo patrão e pelo agitador comunista e anarquista; a vergonha de sermos um país de oito milhões de quilômetros quadrados e quase cinqüenta milhões de habitantes, sem prestígio, sem crédito, corroídos de politicagem de partidos”.
Além de se apropriar da elaboração nacionalista, feita nas etapas anteriores (expansão e “unificação” do território, “espírito do povo” e raça), o nazi-fascismo e os vários nacionalismos desse período contaram com a nova comunicação de massa (o rádio e o cinema) para “transformar símbolos nacionais em parte da vida cotidiana de qualquer indivíduo e, com isso, romper as divisões entre a esfera privada e local e a esfera pública e nacional”. A primeira expressão dessa mudança aparece nos esportes, transformados em espetáculos de massa, nos quais já não competem equipes e sim se enfrentam e se combatem nações (como se viu nos Jogos Olímpicos de 1936, no aparecimento do Tour de France e da Copa do Mundo). Passou-se a ensinar às crianças que a lealdade ao time é lealdade à nação. Passeatas embandeiradas, ginástica coletiva em grandes estádios, programas estatais pelo rádio, uniformes políticos com cores distintivas, grandes comícios marcam esse período como época do “nacionalismo militante”.
A pergunta suscitada por essa terceira fase da construção da nação é: por que foi bem-sucedida e por que, passadas as causas imediatas que a produziram, ela permaneceu nas sociedades contemporâneas? Por que a luta de classes teve uma capacidade mobilizadora menor do que o nacionalismo? Por que até mesmo as revoluções socialistas acabaram assumindo a forma do nacionalismo? Por que a “questão nacional” parecia ter sentido? O nacionalismo militante, diz Hobsbawm, não pode ser visto simplesmente como reflexo do desespero e da impotência política diante da incapacidade mobilizadora do liberalismo, do socialismo e do comunismo. Sem dúvida, esses aspectos são importantes, indicando a adesão daqueles que haviam perdido a fé em utopias (à
esquerda) ou dos que haviam perdido velhas certezas políticas e sociais (à direita). Todavia, se para esses o nacionalismo militante era um imperativo político exclusivo, o mesmo não pode ser dito da adesão generalizada, nem, sobretudo da permanência do nacionalismo em toda parte, depois de encerrado o nazi-fascismo.
A possível explicação encontra-se na natureza do Estado moderno como espaço dos sentimentos políticos e das práticas políticas em que a consciência política do cidadão se forma referida à nação e ao civismo, de tal maneira que a distinção entre classe social e nação não é clara e freqüentemente está esfumada ou diluída. Para nós, no Brasil, nada exprime melhor essa situação do que o nacionalismo das esquerdas nos anos 1950-60, período que conhecemos com os nomes de nacional-desenvolvimentismo, primeiro, e de nacional-popular, depois. De fato, para as esquerdas, a referência sempre havia sido a divisão social das classes e não a unidade social imaginária imposta pela idéia de nação. No entanto, no período 1950-60, a luta histórica foi interpretada pelas esquerdas como combate entre a nação (representada pela “burguesia nacional progressista” e as “massas conscientes”) e a antinação (representada pelos setores “atrasados” da classe dominante, pelas “massas alienadas” e pelo capital estrangeiro ou as “forças do imperialismo'').
O processo histórico de invenção da nação nos auxilia a compreender um fenômeno significativo, no Brasil, qual seja, a passagem da idéia de “caráter nacional” para a de “identidade nacional”. O primeiro corresponde, grosso modo, aos períodos de vigência do “princípio da nacionalidade” (1830-1880) e da “idéia nacional” (1880-1918), enquanto a segunda aparece no período da “questão nacional” (1918-1960).
Território, densidade demográfica, expansão de fronteiras, língua, raça, crenças religiosas, usos e costumes, folclore e belas-artes foram os elementos principais do “caráter nacional”, entendido como disposição natural de um povo e sua expressão cultural. Como observa Perry Anderson, “o conceito de caráter é em princípio compreensivo, cobrindo todos os traços de um indivíduo ou grupo; ele é auto-suficiente, não necessitando de referência externa para sua definição; e é mutável, permitindo modificações parciais ou gerais”.
Em seu trabalho pioneiro e hoje clássico, O caráter nacional brasileiro, Dante Moreira Leite mostra como as formulações brasileiras sobre o “caráter nacional' dependeram de três determinações principais: o momento sociopolítico, a inserção de classe ou a classe social dos autores, e as idéias européias mais em voga em cada ocasião. Tomando as construções do “caráter
nacional” como ideologias, Moreira Leite conclui seu livro afirmando que elas foram, na verdade, obstáculos para o conhecimento da sociedade brasileira e não a apresentação fragmentada e parcial de aspectos reais dessa sociedade. Quando se acompanha a elaboração ideológica do “caráter nacional” brasileiro, observa-se que este é sempre algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (como no caso de Afonso Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo, por exemplo) ou negativa (como no caso de Silvio Romero, Manoel Bonfim ou Paulo Prado, por exemplo). Em outras palavras, quer para louvá-lo, quer par; depreciá-lo, o “caráter nacional” é uma totalidade de traços coerente, fechada e sem lacunas porque constitui uma “natureza humana” determinada. 
A ideologia da “identidade nacional” opera noutro registro. Antes de mais nada, ela define um núcleo essencial tomando como critério algumas determinações internas da nação que são percebidas por sua referência ao que lhe é externo, ou seja, a identidade não pode ser construída sem a diferença. O núcleo essencial é, no plano individual, a personalidade de alguém, e, no plano social, o lugar ocupado na divisão do trabalho, a inserção social de classe. Isso traz como conseqüência que a “identidade nacional” precisa ser concebida como harmonia e/ou tensão entre o plano individual e o social e também como harmonia e/ou tensão no interior do próprio social. Para fazê-la, os ideólogos da “identidade nacional” invocam as idéias de “consciência individual”, “consciência social” e “consciência nacional”. Ou, como observa Anderson, a identidade “deve incluir uma certa autoconsciência [...] sempre possui uma dimensão reflexiva ou subjetiva, enquanto o caráter pode permanecer, no limite, puramente objetivo, algo percebido pelos outros sem que o agente esteja consciente dele”. O apelo da “identidade nacional” à consciência opera um deslizamento de grande envergadura, escorregando da consciência de classe para a consciência nacional.
Para que se possa ter uma idéia da diferença entre as duas ideologias, tomemos um exemplo. Na ideologia do “caráter nacional brasileiro”, a nação é formada pela mistura de três raças - índios, negros e brancos - e a sociedade mestiça desconhece o preconceito racial. Nessa perspectiva, o negro é visto pelo olhar do paternalismo branco, que vê a afeição natural e o carinho com que brancos e negros se relacionam, completando-se uns aos outros, num trânsito contínuo entre a casa-grande e a senzala. Na ideologia da “identidade nacional”, o negro é visto como classe social, a dos escravos, e sob a perspectiva da escravidão como instituição violenta que coisifica o negro, cuja consciência fica alienada e só escapa fugazmente da alienação nos momentos de grande revolta. Na primeira, o caráter brasileiro é formado pelas relações entre o branco bom e o negro bom (se nosso caráter for louvado), ou entre o branco ignorante e o negro indolente (se nosso caráter for depreciado). Na segunda, a identidade nacional aparece como violência branca e alienação negra, isto é, como duas formas de consciência definidas por uma instituição, a escravidão. Como observa Silvia Lara, no livro Campos da violência, a primeira imagem é a da escravidão benevolente, enquanto a segunda é a da escravidão como violência, mas nos dois casos os negros não são percebidos como o que realmente foram, tirando desses homens e mulheres “sua capacidade de criar, de agenciar e ter consciências políticas diferenciadas”, numa palavra, despojando-os da condição de sujeitos sociais e políticos.
Enquanto a ideologia do “caráter nacional” apresenta a nação totalizada – é assim que, por exemplo, a mestiçagem permite construir a imagem de uma totalidade social homogênea -, a da “identidade nacional” a concebe como totalidade incompleta e lacunar - é assim que, por exemplo, escravos e homens livres pobres, no período colonial, ou os operários, no período republicano, são
descritos sob a categoria da consciência alienada, que os teria impedido de agir de maneira adequada. A primeira opera com o pleno ou o completo, enquanto a segunda opera com a falta, a privação, o desvio. E não poderia ser de outra maneira. A “identidade nacional” pressupõe a relação com o diferente. No caso brasileiro, o diferente ou o outro, com relação ao qual a identidade é definida, são os países capitalistas desenvolvidos, tomados como se fossem uma unidade e uma totalidade completamente realizadas. É pela imagem do desenvolvimento completo do outro que a nossa “identidade”, definida como subdesenvolvida, surge lacunar e feita de faltas e privações. 
Entre os anos 1950-1970, a elaboração da “identidade nacional” apresenta a sociedade brasileira com os seguintes traços:
1) ausência de uma burguesia nacional plenamente constituída, tal que alguma fração da classe dominante possa oferecer-se como portadora de um projeto hegemônico, não tendo, portanto, condições de se apresentar como classe dirigente; há um vazio no alto;
2) ausência de uma classe operária madura, autônoma e organizada, preparada para propor um programa político capaz de destruir o da classe dominante fragmentada. Por suas origens imigrantes e camponesas, essa classe tende a desviar-se de sua tarefa histórica, caindo no populismo; há um desvio embaixo;
3) presença de uma classe média de difícil definição sociológica, mas caracterizada por uma ideologia e uma prática heterônomas, oscilando entre atrelar-se à classe dominante ou ir a reboque da classe operária;
4) as duas primeiras ausências e a inoperância da classe média criam um vazio político que será preenchido pelo Estado, o qual é, afinal, o único sujeito político e o único agente histórico;
5) a precária situação das classes torna impossível a qualquer delas produzir uma ideologia, entendida como um sistema coerente de representações e normas com universalidade suficiente para impor-se a toda a sociedade. Por esse motivo, as idéias são importadas e estão sempre fora do lugar.
Assim, a identidade do Brasil, construída na perspectiva do atraso ou do subdesenvolvimento, é dada pelo que lhe falta, pela privação daquelas características que o fariam pleno e completo, isto é, desenvolvido.
Postas as coisas dessa maneira, tanto a ideologia do caráter nacional como a da identidade nacional parecem pertencer a um passado remoto, nada podendo dizer sobre a situação atual do país que, como sabemos, é agora batizado com o nome e país emergente.
De fato, hoje, o “princípio da nacionalidade” (como diziam os liberais do século XIX) ou a “idéia nacional” e a “questão nacional” (como diziam liberais, marxistas e nazi-fascistas do início até os meados do século XX) parecem, finalmente, ter perdido sentido. Enquanto de 1830 a 1970, a nação e o nacionalismo foram objeto de discursos partidários, de programas estatais, lutas civis e guerras mundiais, hoje, o discurso e a ação dos direitos civis, do multiculturalismo, do direito à diferença e a prática econômica neoliberal não apenas tiraram da cena política e ideológica as nacionalidades, mas também mostram que estas permaneceram como referenciais importantes apenas em países e regiões que não têm muito peso em termos dos poderes econômicos e políticos mundiais (Afeganistão, Irlanda, País Basco, Sri Lanka, Timor, Sarajevo, Kosovo, Líbia) ou naqueles em que a questão da nacionalidade aparece travejada pela religião (Irã Israel, Palestina).
Isso nos leva a indagar se haveria algum cabimento na celebração do “Brasil 500”, a menos que um necrológio possa ser considerado uma celebração.
Todavia, postas as coisas dessa maneira, poderíamos também indagar se não estaríamos substituindo um fatalismo fundamentalista por outro. Ou seja, assim como os nacionalismos, ocultando que a nação é uma construção histórica recente fizeram da nacionalidade algo imemorial e destino necessário da civilização, também poderíamos estar tomando o fim dos nacionalismos ou dos Estados-nação como um destino inelutável, como o “fim da história”, tão ao gosto dos neoliberais.
Por isso, cremos ser mais avisado distinguir entre o lugar da nação nas elaborações político- ideológicas de 1830-1980 e seu lugar nas representações sociopolíticas brasileiras, desde o final dos anos 80.
De fato, no primeiro período, a nação e a nacionalidade são um programa de ação e ocupam, à direita e à esquerda, o espaço das lutas econômicas, política e ideológicas. No segundo período, porém, isto é, desde 1980 mais ou menos, nação e nacionalidade se deslocam para o campo das representações já consolida das - que, portanto, não são objeto de disputas e programas -, tendo a
seu cargo diversas tarefas político-ideológicas, tais como legitimar nossa sociedade autoritária, oferecer mecanismos para tolerar várias formas de violência e servir de parâmetro para aferir ou avaliar as autodenominadas políticas de modernização do país. É com esse conjunto de tarefas que elas vêm se inscrever nas comemorações do “Brasil 500”.
“Brasil 500” é, pois, um semióforo historicamente produzido. Como todo semióforo que se destina a explicar a origem e dar um sentido ao momento funde dor de uma coletividade é uma entidade mítica, “Brasil 500” também pertence a campo mítico, tendo como tarefa a reatualização de nosso mito fundador.
Antes de nos voltarmos para o momento de instituição desse mito, queremos, de maneira breve e impressionista, sem acompanhar propriamente as condições materiais da história do Brasil e de sua periodização, assinalar momentos variados em que, silenciosa e invisível, a mitologia da origem se espraia em ações e falas da sociedade e do Estado brasileiros. Como se verá, os exemplos
aqui escolhidos correspondem, grosso modo, às três etapas de construção da idéia de nação que, muito rapidamente, apresentamos acima."

Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária, Marilena Chaui.

sábado, 24 de maio de 2014

"Em Londres, existem dois tipos de padeiros, os "full priced", que vendem o pão por seu valor inteiro, e os "undersellers", que o vendem abaixo desse valor. Essa última classe forma mais do que 3/4 do total de padeiros (p. XXXII do "Report" do comissário governamental H.S. Tremenheere sobre as Grievances Complained of by the journeymen Bakers etc. (Londres, 1862). Esses undersellers vendem, quase sem exceção, um pão falsificado pela adição de lume, sabão, potassa, calcário, pó de pedra de Derbyshire e outros agradáveis, nutritivos e saudáveis ingredientes. Ver o supracitado Blue Book, bem como o relatório do Committee of 1885 on the Adulteration of Bread e o relatório do dr. Hassall, Adulterations Detected (2. ed., Londres, 1861). Sir John Gordon afirmou, perante a comissão de 1855, que, "em consequência dessas falsificações, o pobre, que vive diariamente de 2 libras de pão, agora não obtém a quarta parte de seu real valor nutritivo, sem falar nos efeitos nocivos à sua saúde". Como razão pela qual "uma grande parte da classe trabalhadora", muito embora bem informada sobre essas falsificações, aceita lume, pó de pedra etc como parte de sua compra, Tremenheere (Grievances Complained of by the Journeymen Bakers etc, cit., p. XLVIII) argumenta que, para esses trabalhadores, "é uma questão de necessidade aceitar o pão do padeiro ou do chandler's shop [merceeiro] do modo como eles o fornecem". Uma vez que são pagos apenas ao final da semana de trabalho, eles também só podem "pagar no final de semana o pão que é consumido pela sua família durante a semana"; e acrescenta Tremenheere, citando testemunhas: "É notório que o pão preparado com tais misturas é feito expressamente para ser vendido dessa maneira" ("it is notorious that bread composed of those mixtures, is made expressely for sale in this manner"). "Em muitos distritos agrícolas ingleses" (e mais ainda nos escoceses) "o salário é pago a cada catorze dias, ou até mesmo mensalmente. Com esse longo prazo de pagamento, o trabalhador tem de comprar suas mercadorias a crédito [...]. Ele tem de pagar preços mais altos e está, de fato, preso ao estabelecimentos que lhe fornece crédito. Assim, em Horningham, por exemplo, onde o salário é pago mensalmente, a mesma quantidade de farinha que ele poderia comprar em outro lugar por 1 xelim e 10 pence custa-lhe 2 xelins e 4 pence", "Sixth Rport on Public Health by The Medical Officer of the Privy Council etc" (Londres, 1864), p. 264. "Em 1853, os trabalhadores das estamparias de calico Paisley e Kilmarnock" (oeste da Escócia) "forçaram, por meio de uma greve, a redução do prazo de pagamento de um mês para catorze dias", "Reports of the Inspectors of Factories for 31 Oct. 1853", p. 34. Como um resultado adicional do crédito que o trabalhador dá ao capitalista pode-se considerar também o método empregado em muitas minas de carvão inglesas, onde o trabalhador só é pago ao final do mês e, nesse intervalo, recebe adiantamentos do capitalista, frequentemente em mercadorias que ele é obrigado a pagar acima de seu preço de mercado (truck system). "É uma prática comum aos donos de minas de carvão que  os trabalhadores uma vez por mês e, nesse ínterim, ao final de cada semana, dar a eles um adiantamento. Tal adiantamento lhes é dado na loja" (isto é, no almoxarifado da mina ou na mercearia que pertence ao próprio patrão). "Os trabalhadores recebem o dinheiro de um lado da loja e o devolvem do outro lado", Children's Employment Commision, "III Report" (Londres, 1864), p. 38, n. 192." 

Marx, Karl, O Capital, editora Boitempo.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

"PRIMEIRO COVEIRO:
[...]
Na mocidade eu amava e amava;
Como era doce passar assim o dia
Encurtando (ô!) o tempo (ah!) que voava
E eu não via a vida que fugia.
HAMLET: Esse camarada não tem consciência do trabalho que faz, cantando enquanto abre uma sepultura?
HORÁCIO: O costume transforma isso em coisa natural.
HAMLET: É mesmo. A mão que não trabalha tem o tato mais sensível.
PRIMEIRO COVEIRO: (Canta.) E a velhice chega bem furtiva
Na lentidão que tarda, mas não erra
E nos atira aqui dentro da cova
Como se o homem também não fosse terra.
(Descobre um crânio.)
HAMLET: Esse crânio já teve língua um dia, e podia cantar. E o crápula o atira aí pelo chão, como se fosse a queixada de Caim, o que cometeu o primeiro assas
sinato. Pode ser a cachola de um politiqueiro, isso que esse cretino chuta agora;
ou até o crânio de alguém que acreditou ser mais que Deus.
HORÁCIO: É, pode ser.
HAMLET: Ou de um cortesão que só sabia dizer: “Bom-dia, amado príncipe!
Como está o senhor, meu bom senhor?” Pode ter sido o Lord Tal-e-qual, que elo
giava o cavalo do Lord Qual-e-Tal na esperança de ganhá-lo, não é mesmo?
HORÁCIO: É, meu senhor.
HAMLET: Pode ser. E agora sua dona é Madame Verme; desqueixado e com o
quengo martelado pela pá de um coveiro. Uma bela revolução, se tivéssemos ca
pacidade de entendê-la. A educação desses ossos terá custado tão pouco que só
sirvam agora pra jogar a bocha? Os meus doem, só de pensar nisso.
PRIMEIRO COVEIRO: (Canta.) Uma picareta e uma pá, uma pá
E também uma mortalha
Cova de argila cavada
Pra enterrar a gentalha.
(Desenterra outro crânio.)
HAMLET: Mais um! Talvez o crânio de um advogado! Onde foram parar os seus sofismas, suas cavilações, seus mandatos e chicanas? Por que permite agora que um patife estúpido lhe arrebente a caveira com essa pá imunda e não o denuncia por lesões corporais? Hum! No seu tempo esse sujeito talvez tenha sido um grande comprador de terras, com suas escrituras, fianças, termos, hipotecas, retomadas de posse. Será isso a retomada final de nossas posses? O termo de nossos termos, será termos a caveira nesses termos? Os fiadores dele continuarão avalizando só com a garantia desse par de identificações? As simples escrituras de suas terras dificilmente caberiam nessa cova; o herdeiro delas não mereceria um pouco mais?
HORÁCIO: Nem um dedo mais, senhor.
HAMLET: O pergaminho das escrituras não é feito de pele de carneiro?
HORÁCIO: É, meu senhor. De vitela também.
HAMLET: É; só vitelos e carneiros têm confiança nisso. Vou falar com esse aí.
(Ao Coveiro.) De quem é essa cova, rapaz?
PRIMEIRO COVEIRO: Minha, senhor.
(Canta.) O que falta a tal hóspede
É um buraco de argila.
HAMLET: Tua, claro. Estás todo encovado.
PRIMEIRO COVEIRO: Sua é que não é. O senhor parece preocupado, e ela é
pós-ocupada.
Eu me ocupo da campa, logo estou acampado.
HAMLET: A cova que cavas é coisa de morto. Um vivo na tumba está só confinado.
PRIMEIRO COVEIRO: Resposta bem viva, senhor; xeque-mortal!
HAMLET: Pra que homem está cavando o túmulo?
PRIMEIRO COVEIRO: Pra homem nenhum, senhor.
HAMLET: Pra qual mulher, então?
PRIMEIRO COVEIRO: Nenhuma, também.
HAMLET: Então o que é que você vai enterrar aí?
PRIMEIRO COVEIRO: Alguém que foi mulher, senhor; mas, paz à sua alma, já
morreu.
HAMLET: O patife é esperto! Devemos falar com precisão, ou ele nos envolve em ambigüidades. Por Deus, Horácio, há uns três anos venho notando isso; nosso tempo se tornou tão refinado que a ponta do pé do camponês já está no calcanhar do cortesão; até lhe machucando os calos. (Ao Coveiro.) Há quanto tempo você é coveiro?
PRIMEIRO COVEIRO: Entre todos os dias do ano escolhi começar no dia em que falecido rei Hamlet venceu Fortinbrás.
HAMLET: Há quanto tempo, isso?
PRIMEIRO COVEIRO: O senhor não sabe? Qualquer idiota sabe. Foi no mesmo
dia em que nasceu o príncipe Hamlet, o que ficou maluco e foi mandado pra In-
glaterra.
HAMLET: Ó, diabo, por que foi mandado pra Inglaterra?
PRIMEIRO COVEIRO: Ué, porque ficou maluco. Diz que lá recupera o juízo; e, se não recuperar, lá não tem importância.
HAMLET: Por quê?
PRIMEIRO COVEIRO: Na Inglaterra ninguém repara nele, aquilo lá é tudo doido.
HAMLET: Como é que ficou maluco?
PRIMEIRO COVEIRO: Dizem que de maneira muito estranha.
HAMLET: Estranha como?
PRIMEIRO COVEIRO: Parece que perdeu o juízo.
HAMLET: E qual foi a razão?
PRIMEIRO COVEIRO: Achar que não tinha razão! Isso, na Dinamarca! Já sou
coveiro aqui, juntando rapaz e homem feito, tem bem trinta anos.
HAMLET: Quanto tempo um homem pode ficar embaixo da terra antes de apo-
drecer?
PRIMEIRO COVEIRO: Olha, se já não estava podre antes de morrer – hoje tem aí muito cadáver pestilento que já quase nem espera a gente enterrar – dura uns
oito ou nove anos. Um curtidor agüenta bem nove anos.
HAMLET: Por que ele mais que os outros?
PRIMEIRO COVEIRO: Ora, senhor, a pele dele está tão curtida pela profissão
que a água custa muito a penetrar. Essa água é que é a inimiga corroedora do
filho da puta do cadáver. Olha, vê aqui esse crânio? – tava enterrado aí há vinte e três anos.
HAMLET: De quem era?
PRIMEIRO COVEIRO: Um maluco filho da puta, esse aí. O senhor pensa que é
de quem?
HAMLET: Sei lá – não sei.
PRIMEIRO COVEIRO: Que a peste nunca abandone esse palhaço louco! Uma
vez derramou na minha cabeça um garrafão inteiro de vinho do Reno. Esse crâ-
nio aí, cavalheiro, foi o crânio de Yorick, o bobo do rei.
HAMLET: Este aqui?
PRIMEIRO COVEIRO: Esse aí!
HAMLET: Deixa eu ver. (Pega o crânio.) Olá, pobre Yorick! Eu o conheci, Horá-
cio. Um rapaz de infinita graça, de espantosa fantasia. Mil vezes me carregou nas costas; e agora, me causa horror só de lembrar! Me revolta o estômago! Daqui pendiam os lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Yorick, onde andam agora as tuas piadas? Tuas cambalhotas? Tuas cantigas? Teus lampejos de alegria que faziam a mesa explodir em gargalhadas? Nem uma gracinha mais, zombando da tua própria dentadura? Que falta de espírito! Olha, vai até o quarto da minha grande Dama e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso! Por favor, Horácio, me diz uma coisa.
HORÁCIO: O que, meu senhor?
HAMLET: Você acha que Alexandre também ficou assim em baixo da terra?
HORÁCIO: Assim mesmo.
HAMLET: E fedia assim? Puá! (Joga o crânio fora.)
HORÁCIO: Assim mesmo.
HAMLET: A que serventias vis podemos retornar, Horácio! Nada nos impede de
seguir o caminho da nobre cinza de Alexandre, até achá-lo calafetando um furo
de barrica.
HORÁCIO: Pensar assim é chegar a minúcias excessivas.
HAMLET: Não, por minha fé, nada disso! É apenas seguir o pensamento com na
turalidade. Vê só: Alexandre morreu; Alexandre foi enterrado; Alexandre voltou ao pó; o pó é terra; da terra nós fazemos massa. Por que essa massa em que ele se converteu não pode calafetar uma barrica?
Cesar Augusto é morto, virou terra;
Pôr o vento pra fora é sua guerra –
O mundo tremeu tanto ante esse pó
Que serve agora pra tapar buraco – só."

Hamlet, William Shakeaspeare.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Uma província

"AS províncias da República da Bruzundanga, que são dezoito ou vinte, gozam, de acordo com a Carta Constitucional daquele país, da mais ampla autonomia, até ao ponto de serem, sob certos aspectos, quase como países independentes.
Seria enfastiar o leitor querer dar detalhes das prerrogativas que usufruem as províncias. Com isto, faria obra de estudioso de cousas legislativas e não de viajante curioso que quer transmitir aos seus concidadãos detalhes de costumes, que mais o feriram em terras estranhas. Faço trabalho de turista superficial e não de erudito que não sou.
Das províncias da Bruzundanga, aquela que é tida por modelar, por exemplar, é a província do Kaphet. Não há viajante que lá aporte, a quem logo não digam: vá ver Kaphet, aquilo sim! Aquilo é a jóia da Bruzundanga.
A mim — é bem de ver-se — os magnatas de lá não me fizeram semelhante convite; mas à tal província fui por minha própria iniciativa e sem os tropeços de cicerones oficiais que me impedissem de ver e examinar tudo com a máxima liberdade.
Pela leitura, sabia que a gente rica da província se tem na conta de aristocratas, de nobres e organizam a sua genealogia de modo que as suas casas tomem origem em certos antropófagos, como eram os primitivos habitantes da província, dos quais todos eles querem descender. Singular nobreza!
Sempre achei curioso que a presunção pudesse levar a tanto, mas, em lá chegando, observei que podia levar mais longe. O traço característico da população da província do Kaphet, da República da Bruzundanga, é a vaidade. Eles são os mais ricos do país; eles são os mais belos; eles são os mais inteligentes; eles são os mais bravos; eles têm as melhores instituições, etc., etc.
E isto de tal forma está apegado ao espírito daquela gente toda, que não há modesto mestre-escola que não se julgue um Diderot ou um Aristóteles, e mais do que isso, pois, deixando de parte a teoria, se julgam também capazes de exercer qualquer profissão deste mundo; e, se se fala em ser oficial de marinha,
eles se dizem capazes de sê-lo do pé pra mão, e assim de artilharia, de cavalaria. Imaginam-se prontos para serem astrônomos, pintores, químicos, domadores de feras, pescadores de pérolas, remadores de canoas, niveladores, o diabo!
Tudo isto porque a província faz questão de que conste nos panegíricos dela que o seu ensino é uma maravilha; as suas escolas normais, cousa nunca vista; e os seus professores sem segundos no mundo.
Domina nos grandes jornais e revistas elegantes da província, a opinião de que a arte, sobretudo a de escrever, só se deve ocupar com a gente rica e chic, que os humildes, os médios, os desgraçados, os feios, os infelizes não merecem atenção do artista e tratar deles degrada a arte. De algum modo, tais estetas
obedecem àquela regra da poética clássica, quando exigia, para personagens da tragédia, a condição de pessoas reais e principais.
Mas, como eles não têm dessa gente lá; não têm nem Orestes, nem Ájax, nem Ismênia, nem Antígone, os Sófocles da província se contentam com algumas gordas fazendeiras ricas e saltitantes filhas de abastados negociantes ou com uns bacharéis enfadonhos, quando não tratam de solertes atravessadores de
café.
Um dos traços mais evidentes da vaidade deles, não está só no que acabo de contar. Há manifestações mais ingênuas.
Quando lá estive, deu-me vontade de ir ver a pinacoteca e a gliptoteca locais. Já havia visto as da capital da Bruzundanga. Eram modestas, possuindo um ou outro quadro ou mármore de autor de grande celebridade. Eram modestas, mas probas e honestas.
Tinham-me dito cousas portentosas da galeria de quadros e estátuas da capital da província do Kaphet. Fui até lá, como quem fosse para a de Munich ou para o Louvre. Adquiri um catálogo e logo topei com esta indicação: "La Gioconda", quadro de Leonardo da Vinci.
Fiquei admirado, assombrado com aquelas palavras do catálogo. Teria a França vendido a célebre criação do mestre florentino? Poderia tanto o dinheiro do café? Corri à sala indicada e dei — sabem com quê? Com a reprodução fotográfica do célebre retrato a óleo de Mona Lisa del Gioconda, uma reprodução da Casa Braün!
Não quis ir adiante para ver a "Ronda Noturna", de Rembrandt, um Corot, um Watteau, nem tampouco na secção de escultura, a "Vitória de Samotrácia" e
a "La Pietá", de Miguel Ângelo.
Eles, os da província, falam muito em arte, na cultura artística daquele rincão da Bruzundanga; mas o certo é que não lhe vi nenhuma manifestação palpável. Vão ter uma prova.
Durante os dias em que lá estive apuravam-se as provas do concurso aberto para a escolha das armas da capital. Vi os desenhos. Que cousas hediondas! Quanta insuficiência artística! Não havia talvez dous desenhos, já não direi de acordo com as regras da heráldica, mas do gosto. Eram verdadeiros rótulos de
cerveja marca "barbante".
Não falo de música, porque pouco observei sobre tal arte; mas, no que toca à arquitetura, posso dizer, com convicção, que lá não há um arquiteto de talento. Devia citar-lhes o nome aqui; mas, ao se tratar de tal gente, podia parecer que queria arranjar dinheiro. Não preciso.
Outra pretensão curiosa da gente daquela província da Bruzundanga é afirmar que a sua casquilha capital é uma cidade européia. Há tantos tipos de cidades européias que tenho vontade de perguntar se ela é do tipo Atenas, do tipo Veneza, do tipo Carcassone, do tipo Madrid, do tipo Florença, do tipo Estocolmo —de que tipo será afinal? Certamente do de Paris. Ainda bem, que ela não quer ser ela mesma.
O mal da província não está só nessas pequenas vaidades inofensivas; o seu pior mal provém de um exagerado culto ao dinheiro. Quem não tem dinheiro nada vale, nada pode fazer, nada pode aspirar com independência. Não há metabolia de classes. A inteligência pobre que se quer fazer, tem que se curvar aos ricos e cifrar a sua atividade mental em produções incolores, sem significação, sem sinceridade, para não ofender os seus protetores. A brutalidade do dinheiro asfixia e embrutece as inteligências.
Não há lá independência de espírito, liberdade de pensamento.
A polícia, sob este ou aquele disfarce, abafa a menor tentativa de crítica aos dominantes. Espanca, encarcera, deporta sem lei hábil, atemorizando todos e impedindo que surjam espíritos autônomos. É o arbítrio; é a velha Rússia.
E isso a polícia faz para que a província continue a ser uma espécie de República de Veneza, com a sua nobreza de traficantes a dominá-la, mas sem sentimento das altas cousas de espírito.
Ninguém pode contrariar as cinco ou seis famílias que governam a província, em cujo proveito, de quando em quando, se fazem umas curiosas valorizações dos seus produtos. Ai daquele que o fizer!
A mentalidade desses oligarcas é tal, que não trepidaram em fazer votar uma lei colonial, uma verdadeira disposição de Carta Régia, para, diziam eles, aumentar o preço da "medida" (cerca de quinze quilos) do café. O seu aparelho governativo decretou, em certa ocasião, a proibição do plantio de mais um pé
de café que fosse, da data daquela lei em diante. A lei, ao que parece, caiu em desuso. Não era de esperar outra coisa...
Havia muito ainda a dizer a respeito; mas bastam estes traços para os brasileiros julgarem o que é uma província modelo na República dos Estados Unidos da Bruzundanga."


Lima Barreto, Os Bruzundangas.


"Por conseguinte, Adimanto, é por demais baixo o número dos que podem lidar dignamente com a filosofia: talvez alguns nobres espíritos aprimorados por uma boa educação, isolados do mundo, que, afastados de quaisquer influências corruptoras, permanecem fiéis à sua natureza e vocação; ou alguma grande alma, nascida numa pequena cidade, que despreze os cargos públicos; talvez ainda algum raro e feliz caráter que abandone, para se entregar à filosofia, outra profissão que considere inferior. Outros, enfim, parecem contidos pelo mesmo freio que mantém preso à filosofia o nosso amigo Teages. Embora tudo conspire para afastá-lo da filosofia, as enfermidades que o incapacitam para a vida política o obrigam a filosofar. Quanto a mim, não convém que eu fale do meu demônio familiar e presságio que me adverte interiormente, pois é duvidoso que se possa encontrar outro exemplo no passado. Mas, entre este pequeno grupo, aqueles que se tomaram filósofos e provaram as delícias proporcionadas pela posse da sabedoria, convencidos da insensatez do restante dos homens, aqueles que sabem que não possuem aliados com quem possam contar para ir em socorro da justiça sem se perder, mas que, ao contrário, como um homem caído no meio de animais ferozes, recusando-se a participar das injustiças dos outros e incapaz de resistir sozinho a esses seres selvagens, pereceriam antes de ter servido a pátria e os amigos, inúteis a si mesmos e aos outros. Levados por essas reflexões, ficam inativos e ocupam-se dos seus negócios; semelhante ao viajante que, durante uma tempestade, enquanto o vento ergue turbilhões de pó e chuva, fica feliz se encontra um muro atrás do qual possa se abrigar, os filósofos, constatando que a injustiça reina impune por toda parte, sentem-se felizes em poder conservar-se em seu retiro isentos de injustiças e de ações ímpias e passar seus dias sorridentes e tranqüilos e com a consolação de uma bela esperança. "

A República, Platão.

"A vida das pessoas é tão-somente uma luta constante por essa existência mesma, com a certeza de ao fim serem derrotadas. O que as faz, por tanto tempo, travar essa luta árdua não é tanto amor à vida, mas sim temor à morte que, todavia, coloca-se inarredável no pano de fundo, e a cada instante ameaça entrar em cena. - A vida mesma é um mar cheio de escolhos e arrecifes, evitados pelo homem com grande precaução e cuidado, embora saiba que, por mais que seu empenho e arte o leve a se desviar com sucesso deles, ainda assim, a cada avanço, aproxima-se do total, inevitável, irremediável naufrágio, sim, até mesmo navega direto para ele, ou seja, para a MORTE. Este é o destino final da custosa viagem e, para ele, pior que todos os escolhos que evitou.
Ao mesmo tempo, contudo, é bastante digno de nota que, de um lado, os sofrimentos e aflições da vida podem ser facilmente aumentar em tal intensidade que a morte mesma, de cuja fuga toda a vida consiste, é desejável e o homem voluntariamente a abraça; de outro, por sua vez, tão logo a necessidade e o sofrimento deem algum descanso ao homem, de imediato o tédio se aproxima tanto que necessariamente ele precisa de passatempos. O que mantém todos os viventes ocupados e em movimento é o empenho pela existência. Quando esta lhes é assegurada, não sabem o que fazer com ela. Por conseguinte, a segunda coisa que os coloca em movimento é o empenho para se livrarem do lastro da existência, torná-la não sensível, "matar o tempo", isto é, escapar ao tédio. Daí vermos quase todos os homens, uma vez seguros contra a miséria e as preocupações e após terem finalmente se livrado de todos os outros lastros, se tornarem um peso para si mesmos e olharem cada hora morta como um ganho, portanto toda abreviação daquela vida cuja manutenção a mais longa possível tinha sido objeto de todos os seus esforços. De modo algum, o tédio é um mal a ser desprezado; por fim ele pinta verdadeiro desespero no rosto. Ele faz seres, que se amam tão pouco como os humanos, frequentes vezes procurarem-se uns aos outros, e torna-se assim a fonte da sociabilidade. Também em toda parte, por meio da prudência estatal, são implementadas medidas públicas contra o tédio, como contra outras calamidades universais; porque esse mal, tanto quanto seu extremo oposto, a fome, pode impulsionar o homem aos maiores excesso: o povo precisa panem et circenses. O rígido sistema penitenciário da Filadélfia torna, pela solidão e inatividade, o mero tédio um instrumento de punição: algo tão terrível que já levou detentos ao suicídio. Ora, assim como a necessidade é a praga do povo, o tédio é a praga do mundo abastado. Na vida civil o tédio é representado pelo domingo, e a necessidade pelos seis dias da semana."

Arthur Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação.

sábado, 17 de maio de 2014

"Assim, por exemplo, a exigência principal para ser ministro era a de que o candidato não entendesse nada das cousas da pasta que ia gerir.
Por exemplo, um ministro da Agricultura não devia entender cousa alguma de agronomia. O que se exigia dele é que fosse um bom especulador, um agiota, um judeu, sabendo organizar trusts, monopólios, estancos, etc.
Os deputados não deviam ter opinião alguma, senão aquelas dos governadores das províncias que os elegiam. As províncias não poderiam escolher livremente os seus governantes; as populações tinham que os escolher entre certas e determinadas famílias, aparentadas pelo sangue ou por afinidade.
Havia artigos muito bons, como por exemplo o que determinava a não acumulação de cargos remunerados e aquele que estabelecia a liberdade de profissão; mas, logo, surgiu um deputado prudente que estabeleceu o seguinte artigo nas disposições gerais: "Toda a vez que um artigo desta Constituição ferir os interesses de parentes de pessoas da 'situação' ou de membros dela, fica subentendido que ele não tem aplicação no caso".
Na constituinte, todos esperavam ficar na "situação", de modo que o artigo acima foi aprovado unanimemente.
Com este artigo a Lei Suprema da Bruzundanga tomou uma elasticidade extraordinária. Os presidentes de província, desde que estivessem de acordo com o presidente da República, — na Bruzundanga chama-se Mandachuva — faziam o que queriam.
Se algum recalcitrante, à vista de qualquer violação da Constituição, apelava para a Justiça (lá se chama Chicana), logo a Corte Suprema indagava se feria interesses de parentes de pessoas da situação e decidia conforme o famoso artigo.
Um certo governador de uma das províncias da Bruzundanga, grande plantador de café, verificando a baixa de preço que o produto ia tendo, de modo a não lhe dar lucros fabulosos, proibiu o plantio de mais um pé que fosse da "preciosa rubiácea".
Era uma lei colonial, uma verdadeira disposição da carta régia. Houve então um cidadão que pediu habeas corpus para plantar café. A Suprema Corte, à vista do tal artigo citado, não o concedeu, visto ferir os interesses do presidente da província, que pertencia à "situação".
Como todo o mundo não podia pertencer à "situação", os que ficavam fora dela, vendo os seus direitos postergados, começavam a berrar, a pedir justiça, a falar em princípios, e organizavam, desta ou daquela maneira, masorcas.
Se eram vitoriosos, formavam a sua "situação" e começavam a fazer o mesmo que os outros.
Havia apelo para a "Chicana", mas a Suprema Corte, considerando bem o tal artigo já citado, decidia de acordo com a 'situação". Era tudo a "situação".
Todos os partidos que não pertenciam a ela, pregavam a reforma da Constituição; mas, logo que a ela aderiam, repeliam a reforma como um sacrilégio.
A Constituição afirmava que ninguém podia ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude de lei. Não havia lei que permitisse as províncias deportar indivíduos de uma para outra, mas o Estado do Kaphet, graças ao tal artigo, deportava quem queria e ainda encomendava aos jornais que o chamassem de província modelo.
A Constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava às condições para elegibilidade do Mandachuva, isto é, o Presidente.
Estabelecia que devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total.
Nessa parte a Constituição foi sempre obedecida.
A República dura, na Bruzundanga, há cerca de trinta anos. Têm passado pela curul presidencial nada menos do que seis Mandachuvas, e não houve, talvez, um que infringisse tão sábias disposições.
A Carta da Bruzundanga, que começou imitando a do país dos gigantes, foi inteiramente obedecida nessa passagem, e de um modo religioso.
No que toca ao resto, porém, ela tem sofrido várias mutilações, desfigurações e interpretações de modo a não me permitir continuar a dar mais apanhados dela, a menos que quisesse escrever um livro de seiscentas páginas."

Os Bruzundangas, Lima Barreto.

"Certo dia, Idle Bhras de Grafofone e Cinema mandou-o chamar a palácio e disse-lhe:
— Karpatoso, o orçamento fecha-se sempre com deficit. Este cresce de ano para ano... Tenho que satisfazer compromissos no estrangeiro... Espero que você me arranje um jeito de aumentarmos a receita. Você tem estudos sobre finanças e não será difícil para você...
A isto Felixhimino respondeu com toda a segurança:
— Não há dúvidas! Vou arranjar a cousa.
Três dias após, ele tinha as idéias salvadoras: aumentava do triplo a taxa sobre o açúcar, o café, o querosene, a carne-seca, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca, o trigo e o bacalhau; do dobro, os tecidos de algodão, os sapatos, os chapéus, os fósforos, o leite condensado, a taxa das latrinas, a água, a lenha, o carvão, o espírito de vinho; criava um imposto de 50% sobre as passagens de trens, bondes e barcas, isentando a seda, o veludo, o champagne, etc., de qualquer imposto. Calculando tudo, ele obtinha trinta mil contos.
Levou a cousa a Idle Bhrás de Grafofone e Cinema, que gabou muito o trabalho de Ben Karpatoso:
— Tu és um Colbert e mais ainda: és o João Ben Venanko, aquele — não sabes? — que foi presidente da Câmara de Guaporé, minha terra.Ele sempre teve idéias semelhantes às tuas, mas não as aceitava, por isso nunca o município prosperou. Entretanto, era um pobre meirinho... Que financeiro!
Apresentadas as idéias de Felixhimino à Câmara, muitos deputados se insurgiram contra elas.
Um objetou:
— Vossa Excelência quer matar de fome o povo da Bruzundanga.
— Não há tal; mas mesmo que viessem a morrer muitos, seria até um benefício, visto que o preço da oferta é regulado pela procura e, desde que a procura diminua com a morte de muitos, o preço dos gêneros baixará fatalmente.
Um outro observou:
— Vossa Excelência vai obrigar o povo a andar nu.
— Não apoiado. O vestuário deve ser uma cousa majestosa e imponente, para bem impressionar os estrangeiros que nos visitem. A seda e a lã ficarão pouco mais caras que os tecidos de algodão. Toda a gente vestir-se-á de seda ou de lã e as populações das nossas cidades terão um ar de abastança que muito favoravelmente há de impressionar os estrangeiros.
Um outro refletiu:
— Vossa Excelência vai impedir o movimento de passageiros dentro da cidade e dentro do país.
— Será um benefício. O barateamento das passagens só traz a desmoralização da família. Com as passagens caras, diminuirão os passeios, os bailes, as festas, as visitas, os piqueniques, conseguintemente os encontros de namorados, a procura de casas suspeitas, etc., de forma que os adultérios e as seduções
sensivelmente hão de ser mais raros."

Os Bruzundangas, Lima Barreto


sexta-feira, 16 de maio de 2014

"O que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre. Educada na cidade, ela tinha dos roceiros idéia de que eram felizes, saudáveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta água, por que as casas não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquele sapê sinistro e aquele "sopapo" que deixava ver a trama de varas, como o esqueleto de um doente. Por que ao redor dessas casas não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de horas? E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma cabra, um carneiro. Por quê? Mesmo nas fazendas, o espetáculo não era mais animador. Todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente e a horta suculenta. A não ser o café e um milharal, aqui e ali, ela não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola. Não podia ser preguiça só ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o homem tem sempre energia para trabalhar relativamente. Na África, na Índia, na Cochinchina, em toda a parte, os casais, as famílias, as tribos, plantam um pouco algumas cousas para eles. Seria a terra? Que seria? E todas essas questões desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por aqueles párias, maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome, sorumbáticos!...
Pensou em ser homem. Se o fosse passaria ali e em outras localidades meses e anos, indagaria, observaria e com certeza havia de encontrar o motivo e o remédio. Aquilo era uma situação do camponês da Idade Média e começo da nossa: era o famoso animal de La Bruyère que tinha face humana e voz articulada...
Como no dia seguinte fosse passear ao roçado do padrinho, aproveitou a ocasião para interrogar a respeito o tagarela Felizardo. A faina do roçado ia quase no fim; o grande trato da terra estava quase inteiramente limpo e subia um pouco em ladeira a colina que formava a lombada do sítio.
Olga encontrou o camarada cá embaixo, cortando a machado as madeiras mais grossas; Anastácio estava no alto, na orla do mato, juntando, a ancinho, as folhas caídas. Ela lhe falou:
– Bons-dias, "sá dona".
– Então trabalha-se muito, Felizardo?
– O que se pode.
– Estive ontem no Carico, bonito
lugar... Onde é que você mora, Felizardo?
– É doutra banda, na estrada da vila.
– É grande o sítio de você?
– Tem alguma terra, sim, senhora, "sá
dona".
– Você por que não planta para você?
– "Quá, sá dona!" O que é que a gente
come?
– O que plantar ou aquilo que a
plantação der em dinheiro.
– "Sá dona tá" pensando uma cousa e
a cousa é outra. Enquanto planta cresce, e
então? "Quá, sá dona", não é assim.
Deu uma machadada; o tronco escapou; colocou-o melhor no picador e, antes de desferir o machado, ainda disse:
– Terra não é nossa... E "frumiga"?...
Nós não "tem" ferramenta... isso é bom para italiano ou "alamão", que o governo dá tudo... Governo não gosta de nós...
Desferiu o machado, firme, seguro; e o rugoso tronco se abriu em duas partes, quase iguais, de um claro amarelado, onde o cerne escuro começava a aparecer.
Ela voltou querendo afastar do espírito aquele desacordo que o camarada indicara, mas não pôde. Era certo. Pela primeira vez notava que o self-help do Governo era só para os nacionais; para os outros todos os auxílios e facilidades, não contando com a sua anterior educação e apoio dos patrícios.
E a terra não era dele? Mas de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava por aí? Ela vira até fazendas fechadas, com as casas em ruínas... Por que esse acaparamento, esses latifúndios inúteis e improdutivos?
A fraqueza de atenção não lhe permitiu pensar mais no problema. Foi vindo para casa, tanto mais que era hora de jantar e a fome lhe chegava. "

Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma.


quinta-feira, 15 de maio de 2014

Liberdade De Pensamento

"Em torno do ano de 1707, época em que os ingleses ganharam a batalha de Saragoça, protegeram Portugal e durante algum tempo eram um rei à Espanha, milorde Boldmind, oficial general, que tinha sido ferido, estava nas águas de Barèges. Ali encontrou o conde Medroso, que caíra do cavalo, atrás das bagagens, a uma légua e meia do campo de batalha e também tinha vindo tratar-se nas águas. Era ligado à inquisição; milorde Boldmind era familiar apenas na conversação. Certo dia, depous de beber, teve com Medroso a seguinte conversa:

Boldmind - Então és sargento dos dominicanos? Exerces realmente um ofício vil.
Medroso - É verdade; mas preferi ser criado que vítima deles e preferi a desgraça de queimar meu próximo àquela de ser eu mesmo assado.
Boldmind - Que horrível alternativa! eras cem vezes mais feliz sob o jugo dos mouros que te deixavam te corromper livremente em todas as suas superstições e que, por mais vencedores que fossem, não se arrogavam o direito inaudito de pôr as almas no ferro.
Medroso - Que queres? Nada é permitido; nem escrever, nem falar, nem mesmo pensar. Se falamos, é fácil interpretar nossas palavras e mais ainda nossos escritos. Enfim, como não podem nos condenar num auto-de-fé por nossos pensamentos secretos, nos ameaçam de sermos eternamente queimados por ordem do próprio Deus, se não pensarmos como os jacobinos. Persuadiram o governo de que, se tivéssemos o senso comum, todo o Estado ficaria em combustão e a nação se tornaria a mais infeliz da terra.
Boldmind - Achas que somos tão infelizes nós, os ingleses, que cobrimos os mares de navios e que viemos ganhar para vocês batalhas nos confins da Europa? Acreditas que os holandeses, que lhes arrebataram quase todas as suas descobertas na Índia e que hoje se incluem na categoria de seus protetores, sejam amaldiçoados por Deus por terem concedido inteira liberdade à imprensa e por fazerem o comércio dos pensamentos dos homens? O império romano ficou menos poderoso, porque Cícero escreveu com liberdade?
Medroso - Quem é Cícero? Nunca ouvi falar desse homem, aqui não se trata de Cícero, trata-se de nosso santo padre o papa e de Santo Antônio de Pádua, e sempre ouvi dizer que a religião romana está perdida se os homens começarem a pensar.
Boldmind - Não cabe a ti acreditar nisso, pois, estás certo que tua religião é divina e que as portas do inferno não podem prevalecer contra ela. Se assim é, nada poderá destruí-la.
Medroso - Não, mas pode ser reduzida a pouca coisa; e é por ter pensado que a Suécia, a Dinamarca, toda a tua ilha e metade da Alemanha gemem na espantosa desgraça de não serem súditos do papa. Dizem até mesmo que, se os homens continuarem a seguir suas falsas luzes, logo se contentarão com a simples adoração de Deus e com a virtude. Se as portas do inferno prevalecerem até esse ponto, o que se tornará o Santo Ofício?
Boldmin - Se os primeiros cristãos não tivessem tido a liberdade de pensar, não é verdade que não existiria cristianismo?
Medroso - Que queres dizer? Não te entendo.
Boldmind - Acredito realmente. Quero dizer que, se Tibério e os primeiros imperadores tivessem tido jacobinos que tivessem impedido os primeiros cristãos de usar canetas e tinta; se durante tanto tempo não tivesse sido permitido pensar livremente no império romano, teria sido impossível para os cristãos estabelecer seus dogmas, Se, portanto, o cristianismo só se formou pela liberdade de pensamento, por que contradição, por que injustiça haveria ele de querer aniquilar hoje essa liberdade sobre a qual ele foi fundado?
    Quando alguém te propõe algum negócio de teu interesse, não o examinas longamente, antes de concluí-lo? Que maior interesse há no mundo que o de nossa felicidade ou de nossa eterna desgraça? Há cem religiões na terra e todas te condenam se acreditares em teus dogmas, que elas chamam de absurdos e ímpios; examina, portanto, esses dogmas.
Medroso - Como posso examiná-los? Não sou jacobino.
Boldmind - És homem, e isso basta.
Medroso - Ai de mim! Tu és muito mais homem que eu.
Boldmind - Cabe somente a ti aprender a pensar; nasceste com espírito; és um pássaro na gaiola da inquisição; o Santo Ofício te cortou as asas, mas elas podem voltar a crescer. Aquele que não sabe geometria, pode aprendê-la; todo homem pode instruir-se; é vergonhoso pôr a própria alma nas mãos daqueles em quem não confiarias teu dinheiro; Ousa pensar por ti mesmo.
Medroso - Dizem que, se todos pensassem por si, grande e estranha seria a confusão.
Boldmind - Pelo contrário. Quando assistimos a um espetáculo, cada um expressa livremente sua opinião e a paz não é perturbada; mas se algum protetor insolente de um mau poeta quiser forçar todas as pessoas de bom gosto a considerar bom o que lhes parece mau, entãos vaias poderiam ser ouvidas e os dois partidos poderiam acabar atirando-se maças na cabeça, como aconteceu uma vez em Londres. Foram esses tiranos dos espíritos que causaram uma parte das desgraças do mundo. Na Inglaterra, só somos felizes desde que cada um usufrua livremente do direito de expressar sua opinião.
Medroso - Nós também estamos muito tranquilos em Lisboa, onde ninguém pode expressar sua opinião.
Boldmind - Estão tranquilos, mas não felizes; é a tranquilidade dos escravos das galés que remam em cadência e em silêncio.
Medroso - Acreditas, pois, que minha alma está nas galés?
Boldmindo - Sim; e gostaria de libertá-la.
Medroso - Mas se eu me sentir bem nas galés?
Boldmind - Nesse caso, mereces estar nelas."

Voltaire, Dicionário Filosófico, em 1764.


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