sábado, 17 de maio de 2014

"Assim, por exemplo, a exigência principal para ser ministro era a de que o candidato não entendesse nada das cousas da pasta que ia gerir.
Por exemplo, um ministro da Agricultura não devia entender cousa alguma de agronomia. O que se exigia dele é que fosse um bom especulador, um agiota, um judeu, sabendo organizar trusts, monopólios, estancos, etc.
Os deputados não deviam ter opinião alguma, senão aquelas dos governadores das províncias que os elegiam. As províncias não poderiam escolher livremente os seus governantes; as populações tinham que os escolher entre certas e determinadas famílias, aparentadas pelo sangue ou por afinidade.
Havia artigos muito bons, como por exemplo o que determinava a não acumulação de cargos remunerados e aquele que estabelecia a liberdade de profissão; mas, logo, surgiu um deputado prudente que estabeleceu o seguinte artigo nas disposições gerais: "Toda a vez que um artigo desta Constituição ferir os interesses de parentes de pessoas da 'situação' ou de membros dela, fica subentendido que ele não tem aplicação no caso".
Na constituinte, todos esperavam ficar na "situação", de modo que o artigo acima foi aprovado unanimemente.
Com este artigo a Lei Suprema da Bruzundanga tomou uma elasticidade extraordinária. Os presidentes de província, desde que estivessem de acordo com o presidente da República, — na Bruzundanga chama-se Mandachuva — faziam o que queriam.
Se algum recalcitrante, à vista de qualquer violação da Constituição, apelava para a Justiça (lá se chama Chicana), logo a Corte Suprema indagava se feria interesses de parentes de pessoas da situação e decidia conforme o famoso artigo.
Um certo governador de uma das províncias da Bruzundanga, grande plantador de café, verificando a baixa de preço que o produto ia tendo, de modo a não lhe dar lucros fabulosos, proibiu o plantio de mais um pé que fosse da "preciosa rubiácea".
Era uma lei colonial, uma verdadeira disposição da carta régia. Houve então um cidadão que pediu habeas corpus para plantar café. A Suprema Corte, à vista do tal artigo citado, não o concedeu, visto ferir os interesses do presidente da província, que pertencia à "situação".
Como todo o mundo não podia pertencer à "situação", os que ficavam fora dela, vendo os seus direitos postergados, começavam a berrar, a pedir justiça, a falar em princípios, e organizavam, desta ou daquela maneira, masorcas.
Se eram vitoriosos, formavam a sua "situação" e começavam a fazer o mesmo que os outros.
Havia apelo para a "Chicana", mas a Suprema Corte, considerando bem o tal artigo já citado, decidia de acordo com a 'situação". Era tudo a "situação".
Todos os partidos que não pertenciam a ela, pregavam a reforma da Constituição; mas, logo que a ela aderiam, repeliam a reforma como um sacrilégio.
A Constituição afirmava que ninguém podia ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude de lei. Não havia lei que permitisse as províncias deportar indivíduos de uma para outra, mas o Estado do Kaphet, graças ao tal artigo, deportava quem queria e ainda encomendava aos jornais que o chamassem de província modelo.
A Constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava às condições para elegibilidade do Mandachuva, isto é, o Presidente.
Estabelecia que devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total.
Nessa parte a Constituição foi sempre obedecida.
A República dura, na Bruzundanga, há cerca de trinta anos. Têm passado pela curul presidencial nada menos do que seis Mandachuvas, e não houve, talvez, um que infringisse tão sábias disposições.
A Carta da Bruzundanga, que começou imitando a do país dos gigantes, foi inteiramente obedecida nessa passagem, e de um modo religioso.
No que toca ao resto, porém, ela tem sofrido várias mutilações, desfigurações e interpretações de modo a não me permitir continuar a dar mais apanhados dela, a menos que quisesse escrever um livro de seiscentas páginas."

Os Bruzundangas, Lima Barreto.

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