sábado, 29 de novembro de 2014

O ISLÃO NA EUROPA

Este é o título de um livro, de autoria da catedrática da Universidade do Minho, Maria do Céu Pinto, a respeito da situação do islão em solo europeu. Infelizmente, parece-me que o livro não é vendido no Brasil, pelo que quero aqui fazer uma breve resenha do seu conteúdo, porque tive uma grata surpresa ao viajar de férias (que eu estava merecendo, por sinal) à Terrinha, e comprar por acaso este livro na estação do metro de Saldanha, e deparar-me com um conteúdo de altíssimo nível, e diria fundamental para nós, aqui nos trópicos, conhecermos afinal o que se passa na Europa com a "ameaça" do islamismo, tão propaganda aos quatro ventos pela ultradireita radical por aqui, que rejeita fortemente qualquer menção aos estudos a sério, exceto os "estudos" de seus ídolos como Olavo de Carvalho.
O livro começa com um texto introdutório, sobre a trajetória moderna do islão, desde a imigração nos anos 70 até os dias atuais, e é dividido em capítulos, cada um deles falando detalhes da situação do islão em um determinado país europeu, a saber: França, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Bélgica, Escandinávia (Dinamarca, Suécia e Noruega), Países Baixos e Balcãs (com ênfase na Bósnia-Herzegovina), cada um escrito por um catedrático universitário.
Em primeiro lugar, o que fica claro logo à vista é que a relação da Europa com o islão de maneira alguma é algo recente: vem desde pelo menos o início do próprio muçulmanismo. E, nos países em que houve tal presença história, o livro faz questão de abordar e comparar o islão passado e o presente, junto às contribuições históricas da religião inclusive na cultura e na língua (o famoso espagete italiano têm raízes árabes, essa eu não sabia). Portanto, isso desqualifica todas as tentativas de taxar o islão como "invasão", ou "destruição da cultura nacional"; com efeito, o próprio islão é parte inegável da "cultura nacional" de vários países como Portugal e Espanha, assim como o fantasioso argumento do papa Bento XVI de recusar a entrada da Turquia na UE alegando "preservação das raízes cristãs da Europa". Se fosse levado a sério, seria necessário arrancar a Bósnia-herzegovina e a Albânia, predominantemente islâmicos, da Europa de alguma forma...
À medida que toma-se contacto com a situação das modernas comunidades muçulmanas, outra coisa fica clara: o islão não é algo monolítico, muito menos estático, o que alimenta preconceitos vários como achar que qualquer um um muçulmano é um fanático pronto a se explodir pela religião. O islão nos próprios países de origem dos imigrantes, como Iraque, Síria ou Marrocos, é uma fantástica constelação de ideias e vertentes muito diferentes, e inclusivamente até opostas, tal como entre católicos e evangélicos ou mórmons. As comunidades imigrantes na Europa refletem isso, com o adicional de, ao contrário de uma comunidade tradicional de imigrantes, o que os une é mais a religião que a nacionalidade, então entra a componente étnica no meio, tornando os bairros extremamente plurais e multivariegados. Há portanto muçulmanos fundamentalistas, seculares e, entre estes, os "muçulmanos não-praticantes", tal como aqui também há evangélicos e católicos não-praticantes.
Assim sendo, então não é possível meter todos os muçulmanos no mesmo saco e imaginar que são todos iguais, não são, e isso invalida completamente a tese, tão à gosto da direita esquizofrência, de que há em marcha algum tipo de plano secreto de islamização da Europa, deliberado e pré-concebido nos mínimos detalhes. E, exatamente por isso mesmo, o relacionamento entre as comunidades imigrantes e os nativos varia muito, indo desde uma relativa harmonia como na Holanda e Bélgica, até tensões abertas, como na Grã-Bretanha e França. A autora identifica duas formas de abordagem: o multiculturalismo, predominante nesta última, e a integração, dominante em França. O multiculturalismo consiste em dar grande autonomia e autogoverno às comunidades, e o integracionismo consiste em assimilar as comunidades para que se integrem à nação, diluindo-as no seio da cultura nativa. Ela afirma que o multiculturalismo tem como ponto fraco a pouca abertura tanto dos nativos com os imigrantes quanto vice-versa, criando guetos, ao passo que o integracionismo é criticado pela tentativa de minar através da uniformização as legítimas heranças culturais de cada país e do islamismo que poderiam ser extremamente proveitosas.
Também o livro deixa claro a grande influência, inclusive econômica, dos países de origem nas comunidades expatriadas, com vistas meramente políticas, com líderes religiosos inclusive a receber salários oficialmente de países muçulmanos como Irã, Turquia e Arábia Saudita. No islamismo, não há uma forte centralização como no catolicismo, de modo que os governos formam clérigos favoráveis abertamente a governos e os envia a pregar também abertamente a favor de mandatários às comunidades, muitas vezes regimes ditatoriais. Sem dúvida, isto é um fator importante na geopolítica mundial.
Por fim, a autora é honesta e deixa claro que não é possível usar bolas de cristal e tentar prever no que isto tudo vai dar no futuro. Uma coisa, porém, fica claro: o islão veio à Europa e, ao contrário da intenção inicial, tanto dos imigrantes quanto dos governos que promoveram a imigração, para suprir necessidades obreiras após a segunda guerra mundial, na qual faltavam braços, o islão veio para ficar, e agora é parte inexorável da paisagem europeia.  E, ao contrário das teorias da conspiração estapafúrdias que vê-se no youtube, isto não é coisa do outro mundo, é algo comum e natural, nomeadamente num mundo globalizado. Particularmente, penso que a interação entre o mundo ocidental e o oriental em solo europeu nem levará a um lado nem a outra, mas criará uma coisa nova, uma miscigenação entre duas culturas tão díspares em que, ao mesmo tempo que suscita tensões agudas, as aproxima uma da outra pela convivência e, consequentemente, melhora o conhecimento de uma e outra. A Europa está a passar pelo que a América Latina passou durante a colonização mas, ao contrário do que nós passamos, não é algo forçado e imposto, mas algo acontecendo já com uma grande noção de direitos humanos no meio, e um aceso debate e redefinição dos próprios direitos humanos. Em suma, estamos a ver a história acontecer. Sobre isso, o filósofo Michel Serres, em uma entrevista no program "Roda Viva", já falava, e elogiava o Brasil por ser um laboratório pioneiro nessa questão de choque cultural e convivência relativamente pacífica entre pessoas de origem étnica tão diferentes. Aguardemos o que virá da experiência europeia. Eu sou otimista.

Eduardo Viveiros.


terça-feira, 21 de outubro de 2014

"O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos."

Simone de Beauvoir

    Porque no Brasil é tão frequente tal coisa, isto é, um pobre a cerrar fileiras com a playboyzada, popularmente conhecidos como "direita pão com ovo", ao invés de tomarem consciência de serem classe oprimida e se unirem como tal? ou um negro contra os movimentos negros, ou um gay contra os movimentos gays (E eleitores de Marcos Feliciano e do Bolsonaro)? Isso não é um fenômeno exclusivamente daqui do Brasil, acontece no mundo todo. No entanto, por aqui, há uma boa explicação histórica. Acompanhem:

"    É preciso ainda lembrar a instituição da alforria. Escravos buscavam sua liberdade de várias formas. A mais radical era a fuga, complementada com a organização de quilombos, locais de organização social alternativa ao mundo das leis escravistas que existiram até mmesmo em cidades como o RIo de Janeiro. Com o passar do século XIX, marcado pela pressão internacional e pelas lutas locais pela abolição, a alforria toma lugar de destaque como meio de obter liberdade.
    A alforria tinha várias feições. Os veículos formais podiam ser uma declaração registrada em cartório, um testamento, uma declaração privada escrita ou até mesmo o registro de batismo, quando o senhor libertava o recém-nascido. Mas as condições da alforria eram muito variadas, podendo gerar uma série de constrangimentos sociais. Podia haver uma alforria incondicional, que libertava o sujeito sem mais; podia ser comprada, com o escravo ou alguma entidade abolicionista apagando ao dono um valor estipulado por este como indenização pelo valor do bem que era o escravo; havia também uma modalidade intermediária, a coartação, em que o escravo recebia o benefício de trabalhar por conta própria até acumular o dinheiro com que poderia comprar sua liberdade (era chamado "escravo de ganho"); e havia a alforria condicional, que limitava a liberdade concedida mediante obrigação do alforriado de continuar prestando serviços a seu dono até a morte deste, por exemplo.
    Até a altura de 1860, todas as alforrias eram revogáveis, se é que dá para imaginar tal horror: um sujeito comprava sua liberdade, com esforço, ou era contemplado pela sorte de ser alforriado por uma velha senhora, digamos, e no dia seguinte sua condição podia ser revertida, por simples ato do antigo dono. Isso significa que até aquela década um escravo liberto nunca se livrava do fantasma do cativeiro. Por outro lado, havia alforrias concedidas contra a vontade do senhor: se o escravo conseguisse provar que sua servidão era ilegal, podia acionar o aparelho judiciário para ver cumprida a lei, Isso sem contar as alforrias por serviços, por exemplo na guerra.
    Era nas cidades que os escravos tinham maiores chances de obter alforria, especialmente os que trabalhavam nas casas, os escravos domésticos. As mulheres tinham mais chances de obter a alforria do que os homens, e parece que mulatos e pardos conseguiam o benefício mais do que os negros. FINALMENTE, VALE LEMBRAR QUE A ALFORRIA FUNCIONAVA TAMBÉM COMO UM ELEMENTO DE PRESSÃO IDEOLÓGICA SOBRE O ESCRAVO, QUE COM A PERSPECTIVA DE GANHAR A LIBERDADE TENDIA A TER COMPORTAMENTO DÓCIL, SUBMISSO, COMO FORMA DE CAPTAR A BENEVOLÊNCIA, QUE PORÉM PODIA NÃO VIR.
    Essa trama complexa de possibilidades dá uma boa ideia de como era a relação entre negros, mulatos e brancos, entre escravos e senhores, entre alforriados e livres no Rio de Janeiro de então,. Pode-se imaginar o quanto valia o favor, o "jeitinho", a subserviência, que poderiam render benefícios que chegavam até a alforria, mas que não garantiam nada, pois o poder ods proprietários era absoluto."

Luís Augusto Fischer, Panorama do Rio de Janeiro: alguns elementos para compreeender o mundo de Machado de Assis (Quincas Borba, editora LP & M).

    Se considerarmos que a imensa maioria, senão todo o povo brasileiro é descendente de negros africanos escravizados e trazidos à força da África durante cinco séculos, então fica fácil deduzir que, formados na mentalidade dócil e subserviente para com o senhor branco (que é a origem direta da nossa classe dominante), nossos antepassados aprenderam desde sempre que, em vez de se unirem enquanto grupo oprimido perante o grupo opressor, o que era o "certo" a fazer era se submeter incondicionalmente ao opressor, visando "agradá-lo" em tudo para que então "merecesse" benevolência e um bom tratamento de sua parte. Foram levados a crer que, se fizessem o serviço direitinho, podiam até mesmo ganhar o mais cobiçado troféu: a liberdade. Agradar ao opressor também significa, necessariamente, opor-se a qualquer um que indicasse um outro caminho, nomeadamente a revolta e o assassinato dos opressores. Deduzimos que é daí, então, que vem a percepção geral de que o povo brasileiro é pacífico e "ordeiro", isto é, até se é permitido fazer-se mudanças ou reformas, mas tudo estritamente dentro da "ordem", jamais indo às raias da violência, por mais legítima que seja. E, seguindo com isto o caminho "aprovado" pela classe opressora, compreende-se o secular medo manifestado por praticamente todos os pensadores brasileiros até hoje, quase todos saídos das hostes da classe rica, no qual o uso da palavra "anarquia" abunda, anarquia essa que nada mais é do que o povo resolvendo os problemas fora do script ditado por eles, como guerras ou revoluções. Aí está a origem da total falta de solidariedade dentro da própria classe oprimida e de uma conscientização mais ampla sobre sua condição.
    Desenvolvendo mais tal pensamento, pode-se dizer que o escravo não apenas se submetia ao seu senhor; ele sempre tentou imitá-los, pois os via como superiores a si mesmo, portanto como modelos. Sabe-se historicamente que a imensa maioria dos escravos, se libertados e de alguma forma tornando-se abastados, a primeira coisa que faziam era comprar outros escravos, símbolos de status numa sociedade calcada na escravidão. Veja-se só o espetáculo: negros escravizados escravizando outros negros escravizados. Isso também repercute nos dias atuais: é comum alguém que, alguns anos atrás mal tendo o que comer, agora faz parte do que comumente se denomina "nova classe média", isto é, pessoas que ascenderam socialmente a um patamar de vida superior ao que tinha anteriormente. Porém, passados a vida toda a terem como modelos de ser bem-sucedido a classe rica, não querem apenas terem o que comer ou vestir, querem IMITÁ-LOS. Isso significa ajuntar durante anos ou pedir emprestado ao banco para comprar um carro caríssimo, como o famoso Camaro amarelo, um celular custosamente astronômico, roupas caras etc, enfim, coisas que supostamente perante a sociedade tornariam a pessoa membro da classe rica, um playboy, ainda que, por mais que a situação econômica tenha melhorado, na realidade a pessoa está muito distante de ter reais condições de adquirir. Não apenas ao nível material: a pessoa começa a se comportar como se fosse membro da classe abastada. Passa então a reproduzir exatamente o mesmo pensamento daquelas pessoas, sem qualquer noção crítica do contexto completamente diferente em que tais e quais vivem. E, com isso, ou desconhecem ou fingem desconhecer que, agindo assim, estão agindo contra si mesmas. Quando um playboy fala que bandido bom é bandido morto, por exemplo, o que ele quer dizer é que o perfil de bandido dele, isto é, preto, pobre e morador de cortiços e favelas, devem ser caçados impiedosamente como animais pela polícia e, se estiverem longe das câmeras, assassinados sem dó. Aqui não interessa nem um pouco se a pessoa é realmente criminosa ou não, o que interessa é o perfil: se ela se encaixar no perfil, então automaticamente há grandes possibilidades de ela ser um bandido em potencial e, pelo sim pelo não, é melhor meter uma bala na cabeça que está tudo certo. O oprimido, ansioso por imitar e ser aceito no meio da classe opressora, aceita de chofre tal pensamento, imaginando que este é o passaporte para entrar lá, a felicidade suprema, ignorando ou fingindo ignorar que ele está na verdade concordando em ser discriminado, espancado ou mesmo morto por aqueles a quem ele vê como heróis e modelos. Aqui está a explicação para a "nova classe média", que recentemente foi responsável por eleger figuras emblemáticas da playboyzada como Bolsonaro e Fraga, terem opiniões muitas vezes ultrajantes a respeito de si mesmos.
    É claro que, obviamente há muitas outras causas que concorrem para opiniões extremamente conservadores dentro da favela e do cortiço, como a doutrinação nazifascista da educação moral e cívica da ditadura, o próprio processo de formação do Brasil, o conceito de estamento patrimonialista transplantado da península ibérica para cá, o catolicismo medieval também aqui naturalizado etc. Entretanto, com este fato histórico, quero apenas mostrar um desses muitos aspectos que contribuem enormemente para entendermos o pensamento da generalidade do povo brasileiro em geral, especialmente porque vejo muita gente às vezes em choque, sem entender direito como é possível pobres traírem sua própria classe social e comungarem com a playboyzada do condomínio de luxo em opiniões que visam claramente seu próprio extermínio, como a violência policial. Espero que agora isto fique mais claro, e não nos surpreendamos tanto ao ver um gay a apoiar Silas Malafaia, por exemplo.


quinta-feira, 2 de outubro de 2014

" Será suficiente aqui que eu tome como fundamento aquilo que deve ser reconhecido por todos, a saber, que todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas e que todos tendem a buscar o que lhes é útil, estando conscientes disso. Com efeito, disso se segue, em primeiro lugar, que, por estarem conscientes de suas volições e de seus apetites, os homens se crêem livres, mas nem em sonho pensam nas causas que os dispõem a ter essas vontades e esses apetites, porque as ignoram. Segue-se, em segundo lugar, que os homens agem, em tudo, em função de um fim, quer dizer, em função da coisa útil que apetecem. É por isso que, quanto às coisas acabadas, eles buscam, sempre, saber apenas as causas finais, satisfazendo-se, por não terem qualquer outro motivo para duvidar, em saber delas por ouvir dizer. Se, entretanto, não puderem saber dessas causas por ouvirem de outrem, só lhes resta o recurso de se voltarem para si mesmos e refletirem sobre os fins que habitualmente os determinam a fazer coisas similares e, assim, necessariamente, acabam por julgar a inclinação alheia pela sua própria. Como, além disso, encontram, tanto em si mesmos, quanto fora de si, não poucos meios que muito contribuem para a consecução do que lhes é útil, como, por exemplo, os olhos para ver, os dentes para mastigar, os vegetais e os animais para alimentar-se, o sol para iluminar, o mar para fornecer-lhes peixes, etc., eles são, assim, levados a considerar todas as coisas naturais como se fossem meios para sua própria utilidade. E por saberem que simplesmente encontraram esses meios e que não foram eles que assim os dispuseram, encontraram razão para crer que deve existir alguém que dispôs esses meios para que eles os utilizassem. Tendo, pois, passado a considerar as coisas como meios, não podiam mais acreditar que elas tivessem sido feitas por seu próprio valor. Em vez disso, com base nos meios de que
costumam dispor para seu próprio uso, foram levados a concluir que havia um ou mais governantes da natureza, dotados de uma liberdade humana, que tudo
haviam providenciado para eles e para seu uso tinham feito todas as coisas. E,
por nunca terem ouvido falar nada sobre a inclinação desses governantes, eles
igualmente tiveram que julgá-la com base na sua, sustentando, como conseqüência, que os deuses governam todas as coisas em função do uso humano, para que os homens lhes fiquem subjugados e lhes prestem a máxima reverência. Como conseqüência, cada homem engendrou, com base em sua própria inclinação, diferentes maneiras de prestar culto a Deus, para que Deus o considere mais que aos outros e governe toda a natureza em proveito de seu cego desejo e de sua insaciável cobiça. Esse preconceito transformou-se, assim, em superstição e criou profundas raízes em suas mentes, fazendo com que cada um dedicasse o máximo de esforço para compreender e explicar as causas finais de todas as coisas. Mas, ao tentar demonstrar que a natureza nada faz em vão (isto é, não faz nada que não seja para o proveito humano), eles parecem ter demonstrado apenas que, tal como os homens, a natureza e os deuses também deliram.
Peço-lhes que observem a que ponto se chegou! Ao lado de tantas coisas
agradáveis da natureza, devem ter encontrado não poucas que são desagradá-
veis, como as tempestades, os terremotos, as doenças, etc.. Argumentaram,
por isso, que essas coisas ocorriam por causa da cólera dos deuses diante das
ofensas que lhes tinham sido feitas pelos homens, ou diante das faltas cometi-
das nos cultos divinos. E embora, cotidianamente, a experiência contrariasse
isso e mostrasse com infinitos exemplos que as coisas cômodas e as incômodas
ocorrem igualmente, sem nenhuma distinção, aos piedosos e aos ímpios, nem
por isso abandonaram o inveterado preconceito. Foi-lhes mais fácil, com efeito,
colocar essas ocorrências na conta das coisas que desconheciam e cuja utilida-
de ignoravam, continuando, assim, em seu estado presente e inato de ignorân-
cia, do que destruir toda essa sua fabricação e pensar em algo novo. Deram,
por isso, como certo que os juízos dos deuses superavam em muito a compreen-
são humana. Essa razão teria sido, sozinha, realmente suficiente para que a
verdade ficasse para sempre oculta ao gênero humano, se a matemática, que
se ocupa não de fins, mas apenas das essências das figuras e de suas proprie-
dades, não tivesse mostrado aos homens outra norma de verdade. Seria possí-
vel assinalar, além da matemática, ainda outras razões (seria supérfluo enume-
rá-las aqui) que podem ter levado os homens a tomarem consciência desses
preconceitos comuns, conduzindo-os ao verdadeiro conhecimento das coisas.
Creio, com isso, ter explicado suficientemente o primeiro ponto que anun-
ciei. Mas para demonstrar, agora, que a natureza não tem nenhum fim que
lhe tenha sido prefixado e que todas as causas finais não passam de ficções
humanas, não será necessário argumentar muito. Creio, com efeito, que
isso já foi suficientemente estabelecido, tanto pela exposição das causas e
dos fundamentos, nos quais, como mostrei, esse preconceito tem sua ori-
gem, quanto pela prop. 16 e pelos corol. 1 e 2 da prop. 32, bem como, ainda,
por todas as demonstrações em que provei que tudo, na natureza, procede de
uma certa necessidade eterna e de uma perfeição suprema. Mas afirmo, ainda,
que essa doutrina finalista inverte totalmente a natureza, pois considera como
efeito aquilo que é realmente causa e vice-versa. Além disso, converte em
posterior o que é, por natureza, anterior. Enfim, transforma em imperfeito o que
é supremo e perfeitíssimo. Com efeito (deixemos de lado os dois primeiros
pontos, por serem evidentes por si mesmos), como se deduz das prop. 21, 22 e
23, o efeito mais perfeito é o que é produzido por Deus imediatamente, e uma
coisa é tanto mais imperfeita quanto mais requer causas intermediárias para
ser produzida. Mas se as coisas que são produzidas por Deus imediatamente
tivessem sido feitas para que Deus cumprisse um fim seu, então essas coisas
feitas por último e em função das quais as primeiras teriam sido feitas, seriam
necessariamente as melhores de todas. Além disso, essa doutrina suprime a
perfeição de Deus, pois se ele age em função de um fim, é porque necessaria-
mente apetece algo que lhe falta. E embora os teólogos e os metafísicos distin-
gam entre o fim de falta [para preencher uma falta própria] e o fim de assimi-
lação [para satisfazer uma necessidade alheia], eles reconhecidamente afirmam,
entretanto, que Deus fez todas as coisas em função de si mesmo e não em
função das coisas a serem criadas, pois, além de Deus, não podem assinalar
nenhuma outra coisa em função da qual, antes do ato de criação, ele tivesse
agido. São, assim, necessariamente forçados a admitir que Deus não dispunha
daqueles seres em proveito dos quais ele supostamente poderia ter querido e
desejado providenciar os referidos meios, conclusão que é evidente por si mes-
ma. É preciso não deixar de mencionar que os partidários dessa doutrina, os
quais, ao atribuir um fim às coisas, quiseram dar mostras de sua inteligência,
introduziram um novo modo de argumentação para prová-la, a saber, a redução
não ao impossível, mas à ignorância, o que mostra que essa doutrina não tinha
nenhum outro meio de argumentar. Com efeito, se, por exemplo, uma pedra
cair de um telhado sobre a cabeça de alguém, matando-o, é da maneira seguin-
te que demonstrarão que a pedra caiu a fim de matar esse homem: se a pedra
não caiu, por vontade de Deus, com esse fim, como se explica que tantas
circunstâncias (pois, realmente, é com freqüência que se juntam, simultanea-
mente, muitas circunstâncias) possam ter se juntado por acaso? Responderás,
talvez, que isso ocorreu porque ventava e o homem passava por lá. Mas eles
insistirão: por que ventava naquele momento? E por que o homem passava por
lá naquele exato momento? Se respondes, agora, que se levantou um vento
naquele momento porque, no dia anterior, enquanto o tempo ainda estava cal-
mo, o mar começou a se agitar, e que o homem tinha sido convidado por um
amigo, eles insistirão ainda (pois as perguntas não terão fim): por que, então, o
mar estava agitado? E por que o homem tinha sido convidado justamente para
aquele momento? E assim por diante, não parando de perguntar pelas causas
das causas até que, finalmente, recorras ao argumento da vontade de Deus,
esse refúgio da ignorância. Assim, igualmente, quando observam a constru-
ção do corpo humano, ficam estupefatos e, por ignorarem as causas de
tamanha arte, concluem que foi construído não por arte mecânica, mas por
arte divina ou sobrenatural e igualmente por esta arte foi constituído, de tal
forma que uma parte não prejudique a outra. E é por isso que quem quer
que busque as verdadeiras causas dos milagres e se esforce por compreen-
der as coisas naturais como um sábio, em vez de se deslumbrar como um
tolo, é tido, aqui e ali, por herege e ímpio, sendo como tal proclamado por
aqueles que o vulgo adora como intérpretes da natureza e dos deuses. Pois
eles sabem que, uma vez suprimida a ignorância, desaparece também essa
estupefação, ou seja, o único meio que eles têm para argumentar e para
manter sua autoridade. Deixo, entretanto, isso de lado e passo ao ponto que
me dispus a tratar em terceiro lugar.
Depois de terem se persuadido de que tudo o que ocorre é em função deles,
os homens foram levados a julgar que o aspecto mais importante, em qual-
quer coisa, é aquele que lhes é mais útil, assim como foram levados a ter
como superiores aquelas coisas que lhes afetavam mais favoravelmente.
Como conseqüência, tiveram que formar certas noções para explicar a
natureza das coisas, tais como as de bem, mal, ordenação, confusão, calor,
frio, beleza, feiúra, etc., e, por se julgarem livres, foi que nasceram noções
tais como louvor e desaprovação, pecado e mérito. Examinarei essas últi-
mas mais adiante, depois que tiver me ocupado da natureza humana, limi-
tando-me aqui a examinar brevemente as primeiras. Tudo aquilo, pois, que
beneficia a saúde e favorece o culto de Deus eles chamaram de bem; o que
é contrário a isso chamaram de mal. E como aqueles que não compreen-
dem a natureza das coisas nada afirmam sobre elas, mas apenas as imagi-
nam, confundindo a imaginação com o intelecto, eles crêem firmemente
que existe uma ordenação nas coisas, ignorando tanto a natureza das coi-
sas quanto a sua própria. Com efeito, quando as coisas estão dispostas de
maneira tal que, quando nos são representadas pelos sentidos, podemos
facilmente imaginá-las e, conseqüentemente, facilmente recordá-las, dize-
mos que estão bem ordenadas; se ocorrer o contrário, dizemos que estão
mal ordenadas ou que são confusas. E como as coisas que podem ser
imaginadas facilmente são mais agradáveis do que as outras, os homens
preferem a ordenação à confusão, como se a ordenação fosse algo que,
independentemente de nossa imaginação, existisse na natureza. Dizem ain-
da que Deus criou todas as coisas ordenadamente, atribuindo, assim, sem
se darem conta, a imaginação a Deus, o que só faria sentido se eles quises-
sem dizer, talvez, que, em função da imaginação humana, Deus dispôs to-
das as coisas de maneira que elas pudessem ser mais facilmente imagina-
das. Provavelmente não é, para eles, nenhum problema a verificação de
infinitas coisas que superam de longe a nossa imaginação e um grande
número de outras que, por sua debilidade, deixam a nossa imaginação confusa.
Mas sobre tal ponto isso é suficiente. Quanto às outras noções, também não
passam de modos do imaginar, pelos quais a imaginação é diferentemente afe-
tada, e que, no entanto, são considerados pelos ignorantes como atributos prin-
cipais das coisas, porque acreditam, como já dissemos, que todas as coisas
foram feitas em função deles, e é com base na maneira como foram afetados
por uma coisa que dizem que a sua natureza é boa ou má, sã ou podre e
corrompida. Se, por exemplo, o movimento que os nervos recebem dos objetos
representados pelos olhos contribui para uma boa disposição do corpo, os obje-
tos que causaram tal movimento são chamados de belos, sendo chamados de
feios aqueles que provocam o movimento contrário. Aqueles que provocam o
sentido por meio do nariz são chamados de perfumados ou, então, de malchei-
rosos; por meio da língua, de doces e saborosos ou, então, de amargos e insípi-
dos; por meio do tato, de duros e ásperos ou, então, de moles e macios. E,
finalmente, daqueles que provocam os ouvidos diz-se que eles produzem baru-
lho ou, então, som ou harmonia, a qual fascinou tanto os homens que eles
acabaram por acreditar que Deus também se deleitava com ela, não tendo
faltado filósofos que estavam convencidos de que os movimentos celestes com-
punham uma harmonia. Tudo isso mostra suficientemente que cada um julga as
coisas de acordo com a disposição de seu cérebro, ou melhor, toma as afec-
ções de sua imaginação pelas próprias coisas. Por isso, não é de admirar (assi-
nalemos, de passagem também isso) que tenham surgido entre os homens tan-
tas controvérsias quanto as que experimentamos, delas surgindo, finalmente, o
ceticismo. Com efeito, embora os corpos humanos estejam em concordância
sob muitos aspectos, diferem, entretanto, sob muitos mais. Por isso, o que a um
parece bom, a outro parece mau; o que a um parece ordenado, a outro parece
confuso; o que a um é agradável, a outro é desagradável, e assim quanto às
outras noções, sobre as quais, entretanto, não insisto aqui, tanto por não ser este o local para discuti-las de forma explícita, quanto porque todos têm delas suficiente experiência. Pois, ditados como os seguintes estão na boca de todo mundo. Cada cabeça, uma sentença. A cada qual seu parecer lhe basta. Há tantos juízos, quantos são os gostos. Esses ditados mostram suficientemente
que os homens julgam as coisas de acordo com o estado de seu cérebro e que,
mais do que as compreender, eles as imaginam. Pois se as compreendessem,
então, mesmo que não as achassem atraentes, ao menos se convenceriam
delas todas, como mostra o exemplo da matemática.
Vemos, pois, que todas as noções que o vulgo costuma utilizar para explicar
a natureza não passam de modos do imaginar e não indicam a natureza das
coisas, mas apenas a constituição de sua própria imaginação. E como elas
têm nomes, como se fossem entes que existissem fora da imaginação, cha-
mo-as não entes de razão, mas entes de imaginação. E, assim, pode-se
facilmente refutar todos os argumentos que poderiam ser dirigidos contra
nós, com base em noções como essas. Costuma-se, com efeito, argumen-
tar da maneira que se segue. Se todas as coisas se seguiram da perfeitíssi-
ma natureza de Deus, de onde provêm, então, tantas imperfeições na natu-
reza, tais como a deterioração das coisas, ao ponto de se tornarem
malcheirosas, a feiúra que causa repugnância, a confusão, o mal, o pecado,
etc.? Mas isso é fácil, como acabei de dizer, de ser refutado. Pois a perfei-
ção das coisas deve ser avaliada exclusivamente por sua própria natureza e
potência: elas não são mais ou menos perfeitas porque agradem ou desa-
gradem os sentidos dos homens, ou porque convenham à natureza humana
ou a contrariem. Àqueles que, entretanto, perguntarem por que Deus não
criou os homens de maneira que eles se conduzissem exclusivamente pela
via da razão, respondo simplesmente: não foi por ter faltado a Deus matéria
para criar todos os tipos de coisas, desde aquelas com o mais alto grau até
àquelas com o mais baixo grau de perfeição. Ou, para falar mais apropria-
damente: foi porque as leis da natureza, sendo tão amplas, bastaram para
produzir todas as coisas que possam ser concebidas por um intelecto infini-
to, como demonstrei na prop. 16.
Esses são os preconceitos que me propus assinalar. Se restarem ainda outros
do mesmo gênero, cada um poderá, com um pouco de reflexão, corrigi-los. "

Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras, Baruch de Spinoza.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

    Brasília canta em seu hino: "Brasília, capital da esperança!". Uma cidade que nasceu moderna e arrojada arquitetonicamente pelas mãos de Oscar Niemeyer, que era o ápice do ufanismo patriótico do final dos anos 50, a década em que o Brasil ganhava o mundial de futebol na Suécia e, nas ruas, entoava-se "a taça do mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa". Simbolizou as esperanças de um novo país, um país aberto ao "novo", novo que se espalharia fatalmente ao restante do país, em contraste com o "velho". Entretanto, hoje, Brasília como esse sonho está morta, ou melhor, nasceu natimorta, virou uma cidade como qualquer outra, talvez refletindo os próprios sonhos frustrados do Brasil. Por quê?
    Marilena Chaui, no clássico "Brasil, mito fundador e sociedade autoritária", apresenta a atmosfera daquela época, no que ela chama de "verdeamarelismo". De acordo com ela, tal ideologia era originalmente advogada pelos grandes proprietários rurais, e advogava o mito do "país essencialmente agrário", isto é, um país cuja função era puramente agrária, sem qualquer chance de um dia se industrializar e competir com os países centrais. Daí o descaso e mesmo a aversão do governo da República Velha a qualquer tipo de industrialização incipiente. Com a derrubada da classe ruralista do poder por Vargas e a industrialização acelerando-se de 1930 para cá, tal ideologia foi substituída pelo nacional-desenvolvimentismo. Agora, o Brasil não é mais um país agrário, que devia depender conscientemente dos grandes países industriais, o Brasil agora deveria se industrializar numa "dependência tolerada", isto é, devíamos aceitar "por enquanto" a dependência tecnológica até, um dia, alcançarmos o mesmo estágio deles. Daí Juscelino Kubitschek e seu incentivo ao grande capital internacional para se estabelecer por aqui, nomeadamente as indústrias automobilísticas, símbolos do progresso (ainda hoje).  
    Brasília, portanto, era o coroamento desse nacional-desenvolvimentismo, o símbolo visível do "Brasil Grande", o Brasil prestes a se tornar uma potência mundial. De fato, foi erguida no meio do nada uma cidade inteira, e num tempo quase inacreditável, cerca de três anos, o que mostrava claramente a superioridade e a força do brasileiro perante o mundo, assim dizia o discurso oficial. Porém, todo esse discurso era equivocado, senão cínico, desde o berço.
   Primeiro porque, na região onde a futura capital iria ser construída, não havia nenhum deserto despovoado, sem ocupação humana e, portanto sem história, havia sim cidades, na verdade três cidades Luziânia, a mais antiga, Formosa, Planaltina e um núcleo rural que, mais tarde também viraria cidade, Brazlândia. Estudos indicam que a região do Distrito Federal já registrava ocupação humana há pelo menos 2000 anos. No período colonial, a região era cortada pela Estrada Real, isto é, o caminho que ia das minas de ouro de Mato Grosso e Goiás rumo ao Rio de Janeiro. Foi exatamente por este movimento que criaram-se tais cidades, além de outras igualmente importantes como Pirenópolis e a própria cidade de Goiás, terra de Cora Coralina.
    Mas isso não é tudo: a própria cidade já nasceu reproduzindo exatamente o mesmo país autoritário e opressor do qual fazia parte. Nada havia de idílico por aqui: milhares de operários, chamados candangos, eram vítimas diárias de uma praticamente semi-escravidão por parte das construtoras e dos políticos, que frequentemente os obrigava a trabalhar inclusive de madrugada (lembrem-se que naquele tempo, a luz elétrica ainda era praticamente um artigo de luxo), em turnos que não raro iam pelo dia e a noite ininterruptamente. Dezenas morreram em virtude das péssimas condições de trabalho, os sobreviventes (e aqui vai meu testemunho pessoal, eu, neto desses candangos) relatavam que era frequente operários caírem de dezenas de metros de altura e, assim que isso acontecia, os capatazes pegavam os corpos despedaçados dos infelizes, colocavam em carrinhos de mão e sepultavam em local ignorado, possivelmente onde hoje se localiza o bairro chamado Asa Norte, tal como os nazistas apenas alguns anos antes. Há inclusive lendas populares a relatarem que muitos eram simplesmente colocados nas paredes dos prédios tal como o Congresso Nacional e ali mesmo concretados e "sepultados". Mas não pensem que os candangos aceitavam tal coisa passivamente: das revoltas operárias, a mais famosa, chamada postumamente de "massacre da Pacheco Fernandes" (pois este era o nome de uma das construtoras) colocou em evidência toda a mentira do país ufanista. Nunca ouviu falar dela nos livros de história? é claro, o caso foi abafado rapidamente, e apenas sobrevive nas memorias dos feridos e sobreviventes. Ignora-se o quantidade de mortos mas, pelo testemunho deles, que sempre falam em "metralhadoras" e "caminhões-caçamba" para transportar os mortos, certamente não foram poucos. 
    Logo após a inauguração da "Capital da Esperança", o mundo inteiro prestou tributo à cidade nascedoira, o símbolo de uma nova era. A classe dominante brasileira orgulhou-se imensamente de "seu" feito extraordinário, como se fossem eles a colocarem a mão na massa. Era preciso agora colocar o plano em marcha. E qual era esse plano? muito simples: os operários, todos eles, deviam voltar para suas terras, e deixarem Brasília, porque no esquema a cidade foi feita unicamente para essa mesma classe dominante. Pobres, apenas os serviçais que trabalhassem para eles e fossem estritamente necessários. Ninguém pensou em como alojar os candangos trabalhadores DEPOIS da construção, pois realmente levavam a sério um plano tão ridículo, como se as pessoas fizessem suas vidas durante três anos e, do nada, largassem tudo apenas porque eles queriam. É nesse momento que o sonho de Brasília começou a ruir: os candangos resistiram o quanto puderam aos massacres e genocídios dessa elite para continuarem morando nos mesmos barracos, pejorativamente chamados de "invasões", que nada mais eram que os antigos acampamentos dos candangos enquanto construíam os prédios. Dezenas foram mortos e milhares foram expulsos, mas também milhares resistiram (e estão até hoje, formando bairros como Vila Planalto e Vila Telebrasília)  até que, por fim o governo, já o militar instalado a partir de 64, reconheceu que, tinha que ceder a tanta pressão popular, e começou a oferecer remanejamento aos antigos candangos e suas famílias para novas cidades, chamadas "cidades-satélites". Para lá foram (ou melhor, foram obrigados a ir) e enfim puderam ter seu cantinho. MAS havia um porém: o Plano Piloto (isto é, Brasília propriamente dita, o "avião" que aparece no mapa) devia ser reservado única e exclusivamente à classe rica, dito de outro modo: as cidades-satélites foram construídas a dezenas de quilômetros do centro da cidade, localizando-se a 20, 30, 40 ou mesmo a 60 km. A ditadura militar deixou como herança um verdadeiro Muro de Berlim, a separar os ricos dos pobres, hierarquizando e segregando a população dentro do mesmo Distrito Federal, não muito diferente da política do Apartheid sul-africano, como claramente visto no documentário "invasores ou excluídos", feito alguns anos atrás pelo pessoal da UNB (Universidade Nacional de Brasília).
    Qual o resultado dessa política para Brasília? uma cidade segregada por cor, classes sociais, por educação, enfim por muralhas invisíveis de exclusão. Ao mesmo tempo que Brasília possui o bairro mais rico do Brasil e até mesmo do mundo, o Lago Sul, reduto dos políticos e empresários mais abastados, possuímos mesmo ao lado favelas gigantescas como o Sol Nascente, que recentemente se tornou a maior favela da América do Sul, superando a Rocinha, no Rio de Janeiro.  Um dos sintomas mais claros disso é o que, mesmo em Brasília, é visto como algo positivo, porém, a meu ver, é extremamente negativo: o tombamento de Brasília como patrimônio da humanidade. Por que negativo? porque Brasília foi criada para ser e encarnar o novo, e o novo, essencialmente, é mutável, pois sempre está aberto a novas experiências. Portanto, se Brasília é o local do novo enquanto experiência, assim deveria ser, um grande laboratório a céu aberto. Mas não foi assim: a classe rica, deslumbrada pela "obra de suas mãos", numa cidade criada para ela, em suma, "perfeita", quis cristalizar para todo o sempre tal maravilha. E o tombamento assim pode ser entendido: como a cristalização de um determinado momento histórico da cidade para todo o sempre. Quiseram acordar de manhã e contemplar a beleza da vista da cidade. Só existe um porém: para desfrutarem da bela vista, era preciso retirar tudo que de desagradável pudesse maculá-la. E nada macula mais uma bela vista do que a visão terrífica de favelas. Solução? disse acima: construíram as satélites bem longe das vistas, a quilômetros e quilômetros de distância, aonde eles não pudessem ser vistos. Foram todos "escondidos". Uma verdadeira "limpeza étnica". De posse da arma do tombamento, agora tinham legitimidade para combater o avanço inevitável das favelas sobre a "beleza arquitetônica" da Capital da Esperança, e expulsá-las o mais longe possível. O tombamento, portanto, é um instrumento que visa auxiliar a guerra social e o extermínio (em todos os sentidos: educacional, intelectual, cultural etc) da periferia pela playboyzada.
    A cristalização de Brasília para atender os desejos da classe dominante, ignorando completamente as consequências futuras de tal desejo insano, só poderia levar a um resultado, constatado pela CODEPLAN (Companhia de Planejamento do DF): a imensa pressão populacional sobre o Distrito Federal. Pelos planos de Lúcio Costa, a previsão é que Brasília não tivesse mais do que 500 mil habitantes no ano 2000. Em 2013, o DF sozinho possui mais de 2 milhões e, se juntar com o "Entorno", isto é, as cidades goianas fora do território do Distrito Federal, dá seguramente mais de 3 milhões. E, segundo a CODEPLAN, apenas dentro do território do DF, 80% das habitações são "irregulares", um eufemismo para invasão de áreas públicas e parcelamento de áreas particulares, sem qualquer tipo de estudo de impacto ambiental ou um mínimo de planejamento urbano decente. A cristalização da cidade para que uma minúscula parcela pudesse aproveitá-la, ignorando os desejos e necessidades da imensa maioria invisibilizada, ou melhor, existente apenas quando precisa se deslocar mais de 100 km todos os dias para ir trabalhar no único lugar onde há trabalho, o centro de Brasília, gerando engarrafamentos gigantescos de manhã e à noite (um dia, Brasília foi dita como "a cidade que não tinha engarrafamentos", e é curioso notar como volta e meia sempre surge alguém a dizer que a culpa é dos pobres que "agora acham que podem comprar carro") criou uma verdadeira tragédia. Valparaíso, uma cidade do entorno, em uma recente reportagem, foi apontada como a região mais violenta do mundo, superando mesmo a América Central com seus índices assustadores de homicídios. Muito longe do utópico sonho de "Brasília, Capital da Esperança".
    Como se pode ver, o sonho dourado, no qual Brasília era a cereja no bolo, já não existe mais. Brasília, longe de representar um novo Brasil, agora está a caminho, se já não o fez, de se tornar como qualquer outra grande cidade brasileira, mergulhada na desigualdade e na violência social entre as classes. De qualquer forma, era impossível fazer algo novo com uma mentalidade antiga, uma mentalidade fortemente autoritária e conservadora herdado do nosso passado colonial, tal como Raimundo Faoro disse em "Os Donos do Poder", "colocando vinho novo em odres velhos", como diz a bíblia. Brasília fracassou e, com ela, o Brasil. Mas será o fracasso permanente? não. O fracasso faz parte da vida. Ele deve servir como lição para o futuro.

"Lembre-se dos dois benefícios do fracasso. Primeiro, se você fracassa, você aprende o que não funciona; e segundo, o fracasso dá a você a oportunidade para tentar um novo caminho."

Roger Von Oech

Fontes:

CHAUI, Marilena. Brasil, Mito fundador e sociedade autoritária.

O massacre da Pacheco Fernandes. Disponível em: <http://doc.brazilia.jor.br/Construcao/GEB-massacre-Pacheco-Fernandes.shtml>

Invasores ou excluídos completo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ic3Vms_4fDQ>.

Cidades do Entorno estão entre as mais perigosas do Brasil. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2013/07/18/interna_cidadesdf,377796/cidades-do-entorno-do-df-estao-entre-as-mais-perigosas-do-brasil.shtml>

Quase 80% das casas são irregulares. Disponível em: <http://www.jornaldebrasilia.com.br/noticias/cidades/500544/quase-80-das--casas-sao---irregulares/>

Fantástico do dia 29/05, Valparaíso de Goiás, entre as mais violentas do mundo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fNQfnzEChno>



terça-feira, 23 de setembro de 2014

    Um dos sintomas da forte hierarquização social da sociedade brasileira é o uso generalizado do "você": ele é uma corruptela do pronome de tratamento "Vossa Mercê". Quando o usamos, significa que estamos a considerar a pessoa como sendo, de alguma forma, superior a nós, seja em questão de idade, seja em questão de nível social, seja sob outra forma. Ainda hoje, em Portugal, tal pronome é usado nesse sentido apenas. Quando se é íntimo de alguém ou se quer soar como próximo, familiar, usa-se o "tu" que, para nós, só encontramos na linguagem bíblica ("Vós sois, Senhor, o Poderoso de Jacó"). Antes do branqueamento europeu do século XIX, a imensa maioria da população era composta por negros, escravos ou libertos. Para se referir a qualquer branco, rico ou não, senhor ou estranho, usavam o "vosmecê" (lembrem da novela Xica da Silva), depois "você". Nós, descendentes desses escravos, recebemos esse linguajar como herança de séculos de exploração de nossos antepassados, que se infiltrou inclusive na alta classe, destoando totalmente de Portugal. Mas, como essa hierarquização social já foi naturalizada, de modo que está diante de nossos olhos e não a vemos, ou melhor, a negamos, tendemos a achar natural referir-se a todos como "você". Mas ela está aí e é fácil de constatar porque sempre implica violência: na infância ("sou contra a lei da palmada, criança não tem querer, e se contestar tem que apanhar!"), na adolescência ("Aluno não tem que mandar em nada, o professor é quem manda e sabe tudo, aluno tem que ficar calado!"), na vida adulta ("aqui quem manda sou eu, o patrão, empregado não tem que dar pitaco em nada"), e por fim na velhice ("os aposentados são vagabundos", disse o FHC na presidência). Militarização da segurança pública, violência policial, oposição conservadora da playboyzada contra a ascensão social dos mais pobres, ao bolsa-família, ao prouni, ao mais médicos, recusa em dividir espaço no aeroporto, na universidade etc com eles, cassação da cidadania brasileira a quem recebe benefícios sociais, tudo isso são apenas sintomas dessa hierarquização, onde o rico sabe o seu lugar na sociedade, e é encima, e o pobre também, e é embaixo, e um não se mistura com o outro, exceto profissionalmente (relações patrão-empregado, cliente-empregado) entretanto desde o plano real tal hierarquização vem sendo solapada, e os ricos sentem seu terriótorio cada vez mais invadido pelos de baixo, até o ponto da esquizofrenia total, fácil de constatar na internet com teorias como o Brasil estando prestes a ser invadido e anexado por Cuba, os EUA pela Coreia do Norte, manifestações pedindo um golpe militar, o PT tramando um golpe comunista a qualquer momento, o MEC estando sob controle de uma sinistra conspiração judaico-comunista do clube de Bildeberg, cada professor de filosofia e história desse país ser um doutrinador disfarçado do comunismo/marximo, como a Viviane Mosé disse um dia desses na CBN etc.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

"Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como “cultura senhorial”, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e as simetrias são sempre
transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. Enfim, quando a desigualdade é muita marcada, a relação social assume a forma nua da opressão física e/ou psíquica. A divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a
sociedade sob o signo da nação una e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a constituem. Porque temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político.
Quais os traços mais marcantes dessa sociedade autoritária? Resumidamente, diremos ser os seguintes:
- estruturada pela matriz senhorial da Colônia, disso decorre a maneira exemplar em que faz operar o princípio liberal da igualdade formal dos indivíduos perante a lei, pois no liberalismo vigora a idéia de que alguns são mais iguais do que outros. As divisões sociais são naturalizadas em
desigualdades postas como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, negros, índios, imigrantes, migrantes e idosos), e as diferenças, também naturalizadas, tendem a aparecer ora como desvios da norma (no caso das diferenças étnicas e de gênero), ora como perversão ou monstruosidade (no caso dos homossexuais, por exemplo). Essa naturalização, que esvazia a gênese
histórica da desigualdade e da diferença, permite a naturalização de todas as formas visíveis e invisíveis de violência, pois estas não são percebidas como tais;
- estruturada a partir das relações privadas, fundadas no mando e na obediência, disso decorre a recusa tácita (e às vezes explícita) de operar com os direitos civis e a dificuldade para lutar por direitos substantivos e, portanto, contra formas de opressão social e econômica: para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. Por esse motivo, as leis são
necessariamente abstratas e aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para ser transgredidas e não para ser cumpridas nem, muito menos, transformadas;
- a indistinção entre o público e o privado não é uma falha ou um atraso que atrapalham o progresso nem uma tara de sociedade subdesenvolvida ou dependente ou emergente (ou seja, lá o nome que se queira dar a um país capitalista periférico). Sua origem, como vimos há pouco, é histórica, determinada pela doação, pelo arrendamento ou pela compra das terras da Coroa, que, não dispondo de recursos para enfrentar sozinha a tarefa colonizadora, deixou-a nas mãos dos particulares, que, embora sob o comando legal do monarca e sob o monopólio econômico da metrópole, dirigiam senhorialmente seus domínios e dividiam a autoridade administrativa com o
estamento burocrático. Essa partilha do poder torna-se, no Brasil, não uma ausência do Estado (ou uma falta de Estado), nem, como imaginou a ideologia da “identidade nacional”, um excesso de Estado para preencher o vazio deixado por uma classe dominante inepta e classes populares atrasadas ou alienadas, mas é a forma mesma de realização da política e de organização do
aparelho do Estado em que os governantes e parlamentares “reinam” ou, para usar a expressão e Faoro, “são donos o poder”, mantendo com os cidadãos relações pessoais de favor, clientela e tutela, e praticam a corrupção sobre os fundos públicos. Do ponto de vista dos direitos, há um encolhimento do espaço público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do
espaço privado.
- realizando práticas alicerçadas em ideologias de longa data, como as do nacionalismo militante apoiado no “caráter nacional” ou na “identidade nacional”, que mencionamos anteriormente, somos uma formação social que desenvolve ações e imagens com força suficiente para bloquear o trabalho dos conflitos e das contradições sociais, econômicas e políticas, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Isso não significa que conflitos e contradições sejam ignorados, e sim que recebem uma significação precisa: são sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece como resposta única a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral.
Em suma, a sociedade auto-organizada, que expõe conflitos e contradições, é claramente percebida como perigosa para o Estado (pois este é oligárquico) e para o funcionamento “racional” do mercado (pois este só pode operar graças ao ocultamento da divisão social). Em outras palavras, a classe dominante brasileira é altamente eficaz para bloquear a esfera pública das ações sociais e da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, isto é, uma ignorância quanto ao funcionamento republicano e democrático, e sim um conjunto positivo de ações determinadas que
traduzem uma maneira também determinada de lidar com a esfera da opinião: de um lado, os mass media monopolizam a informação, e, de outro, o discurso do poder define o consenso como unanimidade, de sorte que a discordância é posta como perigo, atraso ou obstinação vazia;
- por estar determinada, em sua gênese histórica, pela “cultura senhorial”34 e estamental que preza a fidalguia e o privilégio e que usa o consumo de luxo como instrumento de demarcação da distância social entre as classes, nossa sociedade tem o fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se depreende do uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível
pertinência de sua atribuição (o caso mais corrente sendo o uso de “doutor” quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior e “doutor” é o substituto imaginário para antigos títulos de nobreza), ou da manutenção de criadagem doméstica, cujo número indica aumento (ou diminuição) de prestígio e de status, ou, ainda, como se nota na grande valorização dos diplomas que credenciam atividades não-manuais e no conseqüente desprezo pelo trabalho manual, como se vê no enorme descaso pelo salário mínimo, nas trapaças no cumprimento dos insignificantes direitos trabalhistas existentes e na culpabilização dos desempregados pelo desemprego, repetindo indefinidamente o padrão de comportamento e de ação que operava, desde a Colônia, para a desclassificação dos homens livres pobres. A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a existência de milhões de crianças sem infância - conforme definição de José de Souza Martins - e a exploração do trabalho dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos milhões de desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos miseráveis. A existência de crianças sem infância é vista como tendência natural dos pobres à vadiagem, à mendicância e à  criminalidade. Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e à ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham fora, se não forem professoras, enfermeiras ou assistentes sociais, são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.
O Brasil ocupa o terceiro lugar mundial em índice de desemprego, gasta por volta de 90 bilhões de reais por ano em instrumentos de segurança privada e pública, ocupa o segundo lugar mundial nos índices de concentração da renda e de má distribuição da riqueza, mas ocupa o oitavo lugar mundial em termos do Produto Interno Bruto. A desigualdade na distribuição da renda - 2% possuem 98% da renda nacional, enquanto 98% possuem 2% dessa renda - não é percebida como forma dissimulada de apartheid social ou como socialmente inaceitável, mas é considerada natural e normal, ao mesmo tempo que explica por que o “povo ordeiro e pacífico” dispende anualmente fortunas em segurança, isto é, em instrumentos de proteção contra os excluídos da riqueza social.
Em outras palavras, a sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes. O autoritarismo social, que, enquanto “cultura senhorial”, naturaliza as desigualdades e exclusões socioeconômicas, vem exprimir-se no modo de funcionamento da política. Quando se observa a história econômica do país, periodizada segundo a ascensão e o declínio dos ciclos econômicos e, portanto, segundo a subida e a queda de poderes regionais, e quando se observa a história política do país, em que o poderio regional é continuamente contrastado com o poder central, que ameaça as regiões para assegurar a suposta racionalidade e necessidade da centralização, tem-se uma pista para compreender por que os partidos políticos são associações de famílias rivais ou clubs privés das oligarquias regionais. Esses partidos arrebanham a classe média regional e nacional em torno do imaginário autoritário, isto é, da ordem (que na verdade nada mais é do que o ocultamento dos conflitos entre poderes regionais e poder central, e ocultamento dos
conflitos gerados pela divisão social das classes sociais), e do imaginário providencialista, isto é, o progresso. Mantêm com os eleitores quatro tipos principais de relações: a de cooptação, a de favor e clientela, a de tutela e a da promessa salvacionista ou messiânica.
Posta no momento em que o mito fundador produz a sagração do governante, a política se oculta sob a capa da representação teológica, oscilando entre a sacralização e a adoração do bom governante e a satanização e a execração do mau governante. Isso não impede, porém, que, com clareza meridiana, as classes populares percebam o Estado como “o poder dos outros” - a expressão
é de Teresa Caldeira - e tendam a vê-lo apenas sob a face do poder Executivo, os poderes Legislativo e Judiciário ficando reduzidos ao sentimento de que o primeiro é corrupto e o segundo, injusto. A identificação do Estado com o Executivo, a desconfiança em face do Legislativo (cujas atribuições e funções não estão claras para ninguém, e cuja venalidade escandaliza, levando a difundir-se a idéia de que seria melhor não o ter) e o medo despertado pelo poder Judiciário (por ser a seara exclusiva dos letrados ou doutores, secreto e incompreensível), somados ao autoritarismo social e ao imaginário teológico-político, instigam o desejo permanente e um Estado forte para a “salvação
nacional”. Isso e reforçado pelo fato de que a classe dirigente instalada no aparato estatal percebe a sociedade como inimiga e perigosa, e procura bloquear as iniciativas dos movimentos sociais, sindicais e populares."

Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, Marilena Chaui.


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

                                                    Reflexões Avulsas

Querem saber quais são as coisas mais importantes e prioritárias nesse país? observem a constituição. Primeiro de tudo o Estado (títulos III ao V, mais da metade do texto!), daí a imensa e parasitária burocracia e complexidade por exemplo para abrir uma empresa e pagar impostos. O país vive para o Estado, não o Estado para o país; depois a atividade econômica (título VII), que incluem banqueiros e grandes empresários bilionários. Sem a corrupção, propinas e suas "doações eleitorais" aos partidos, é impossível a parasitária burocracia estatal se manter, ao mesmo tempo que é impossível ser empresário bilionário e aparecer na Forbes sem fraudar quase todas a licitações estatais e mamar nas tetas das dezenas de incentivos estatais na forma de subsídios e financiamentos facilitados; só lá no final, no distante título VIII, é que aparece a ordem social, com a "preocupação" com a saúde, a educação, cultura, desportos etc. Vejam que o recado é claro: a "ordem social" não é prioridade no Brasil, quando muito aparece no fim da fila e olhe lá. Só vai ficar com as migalhas de atenção e dinheiro que porventura sobrar das áreas mais importantes. Vendo por essa ótica, não parece mais estranho que a saúde fique jogadas aos cantos dos hospitais, a educação seja na base do mimeógrafo como na minha cidade, os presídios não recuperem ninguém, pelo contrário, são masmorras, que os idosos sejam desrespeitados pelos mais novos, que seja visto como normal crianças serem espancadas e xingadas de filha da puta pelo pai e mãe, que ninguém goste da lei da palmada, que a cultura e o esporte, mesmo o profissional e olímpico, não tenham apoio algum etc, concordam?

Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

sábado, 6 de setembro de 2014

                                             O Poder do Voto Nulo

    Frequentemente, ataca-se o voto nulo como uma opção inválida de voto. Diz-se que ele é inútil, pois nenhum resultado fará na contagem dos votos, ou diz-se que ele na verdade é um auxílio à eleição de ladrões na política. Portanto, não passa de burrice e besteira. O que tem de verdade nisso tudo?
    De fato, o voto nulo é inútil no sistema eleitoral brasileiro; ele não conta como voto válido, assim como a opção "branco". Portanto, não importa a quantidade de votos brancos e nulos, se houver um único voto válido que seja, esta eleição será considerada válida. Tal diz a lei. E daí? devemos lembrar que esta regra foi criada pelos políticos e para os políticos, obviamente visando seus interesses pessoais. Então, eles não poderiam se dar ao luxo de deixar uma brecha dessas escancarada por aí, pois o sistema deve ser armado  de tal maneira que não haja qualquer chance de defesa ao eleitor, tal como um homem apunhalado quando jaz caído na terra. Isso explica por exemplo o voto obrigatório, porque se se der chance de ir ou não votar ao eleitor, seria preciso aumentar enormemente o valor das propinas pagas, para "convencê-lo" a ir votar. Obrigando-o, tudo que é preciso é usar de técnicas simples de manipulação, com cartazes, propaganda etc para fazê-lo votar em alguém, porque ele por lei já está arrestado para a urna. O sistema se autopreserva a si mesmo.
    Bom, mas se se está forçado a ir ter com a urna, ao menos temos escolha: podemos votar em alguém ou não. De acordo com alguns, só existe a opção de votar em alguém pois, se não se votar (em alguém), você ajuda a eleger os piores candidatos, pois estará renunciando a esta "opção" de votar em alguém. Que espécie de lógica é esta? primeiro: Em QUALQUER ESCOLHA, existem duas opções: a opção de fazer ou não fazer. Isso é imutável, vale para qualquer escolha. É simplesmente ridículo descartar a opção de não fazer, e exigir validade apenas à opção de fazer. Se qualquer uma dessas duas opções for cortada, então já não é escolha, é obrigação. A Igreja Católica afirma que o celibato clerical é uma "escolha", no entanto, no rito latino, se alguém quiser ser padre, é OBRIGADO a ser celibatário. Como é possível o celibato ser uma escolha se você não têm a opção de ser padre e não-celibatário? torna-se portanto mera obrigação, chamem como quiserem. Da mesma forma o voto: para ser de fato uma escolha, é imprescindível você ter a opção de votar em alguém ou não votar em ninguém. Logo, o voto nulo ou mesmo branco é não apenas justo, como indispensável para uma verdadeira opção consciente.
    Mas, como dito acima, o voto nulo não conta como voto válido, logo na prática é totalmente inócuo. Será? embora a lei formada à revelia do cidadão descarte sua "utilidade", será mesmo "inútil"? digo que não. Ainda que tenham despojado o voto de qualquer consequência prática, lei alguma pode retirar sua, a meu ver, principal "utilidade": o simbolismo. O simbolismo é dizer: "Ei, eu não concordo com estas escolhas que deram-me para votar, portanto não votarei em ninguém. Melhor ainda, não concordo com o próprio sistema eleitoral e RECUSO-ME A PARTICIPAR." Este é o simbolismo do voto nulo: anulando, você está recusando-se a participar do atual sistema, um sistema no qual os candidatos são dados prontos e acabados, pois foram todos escolhidos pelos partidos, sem qualquer tipo de participação popular verdadeira a não ser a choldra de figurões na convenção. Você se recusa a apenas ter que escolher pessoas que outros (interesses) escolheram para você.  Você se recusa a participar de um sistema eleitoral criado pelo general Golbery do Couto e Silva, esse câncer plantado no coração da democracia na época da ditadura, e que não sofreu qualquer mudança mais substancial em quase 30 anos de liberdade democrática. E, isso, lei alguma pode proibir o simbolismo poderoso do voto nulo, por mais que tentem.
    O voto nulo, portanto, foi mutilado desde o berço por ameaçar todo o sistema eleitoral, feito sob medida para ladrões e malfeitores se perpetuarem na política. Porém, por mais que tentassem, jamais conseguiram retirar o simbolismo dele. Continuamos então com uma escolha, arranhada, mas verdadeira: podemos escolher alguém para ser o salvador da pátria, crendo ingenuamente que o problema está na ética pessoal do candidato, e não num sistema em que, não importa o quão ética é a pessoa, ela é obrigada a ser corromper porque o sistema assim exige, e sermos ingênuos a vida inteira, ou podemos aceitar a dura e fria realidade de que é o sistema, e não as pessoas, que está errada desde o início, sendo portanto "ingenuidade pedir àqueles que detém o poder para que mudem o poder" (Giordano Bruno).

Fontes

O Príncipe, Maquiavel.
Discurso sobre a Servidão Voluntária, La Boétie.
http://super.abril.com.br/cultura/adianta-votar-nulo-446574.shtml

terça-feira, 26 de agosto de 2014

"    Vultos negros agachavam-se, deitavam-se, sentavam-se entre as árvores, encostados nos troncos, grudados no chão, meio visíveis, meio ocultos na penumbra, com todas as atitudes de dor, abandono e desespero. Outra mina explodiu no penhasco, seguida de um leve tremor de terra sob os pés. O trabalho estava em andamento. O trabalho! E esse era o lugar para onde alguns dos ajudantes haviam se retirado para morrer.
    Estavam morrendo devagar - era evidente. Não eram inimigos, não eram criminosos, e agora era como se fossem seres de outro mundo - não passavam de escuras sombras, doentes e famintas, amontoadas confusamente na penumbra esverdeada. Trazidos de todos os recantos da costa, com toda a legalidade dos contratos temporários, perdidos num ambiente inóspito, alimentados com comida estranha, adoeciam, tornavam-se ineficientes, sendo-lhes então permitido rastejar para longe e descansar. Essas formas moribundas eram livres como o ar - e quase diáfanas de tão magras. Comecei por distinguir o brilho de olhos sob as árvores. Depois, olhando para baixo, enxerguei um rosto próximo a minha mão. Um negro feixe de ossos ergueram-se, e os olhos afundados voltaram-se para mim, enormes e vagos, numa espécie de cegueira, uma branca oscilação no fundo das órbitas, que se apagava devagar. O homem parecia jovem - quase um garoto - mas os senhores sabem que com eles é difícil precisar. Não me ocorreu fazer mais nada além de oferecer-lhe um de meus bons biscoitos suecos que tinha no bolso. Os dedos fecharam-se vagarosamente sobre ele e assim ficaram - não houve outro movimento, nem outro olhar. Ele havia amarrado um pedaço de tecido branco de lã no pescoço - por quê? Onde o arranjara? Era um emblema - um ornamento - um talismã - ato propiciatório? havia, enfim, alguma ideia ligada a ele? Causava espanto ver, em torno de seu pescoço negro, aquele pedaço de tecido branco de lã vindo de além-mar.
    Perto da mesma árvore, mais dois feixes de ossos agudos estavam sentados com as pernas cruzadas para cima. Um, com o queixo apoiado nos joelhos, olhava para o vazio, de um jeito intolerável e assutador: seu irmão fantasma descansava a testa, como que vencido por um grande cansaço; e os demais encontravam-se dispersos em todo tipo de pose contorcida, como num quadro de algum massacre ou de vítimas de uma epidemia. Enquanto eu permanecia ali, paralisado pelo horror, uma dessas criaturas apoiou-se sobre as mãos e os joelhos e caminhou de quatro até o rio para beber. Utilizou as mãos para saciar a sede, então sentou à luz do sol, cruzando as canelas na frente, e depois de um tempo deixou a cabeça toda cair sobre o osso do peito."

O Coração das Trevas, Joseph Conrad.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_Livre_do_Congo


sábado, 23 de agosto de 2014

"A conquista da Terra, o que na maior parte significa tirá-la daqueles que têm uma fisionomia diferente ou narizes ligeiramente mais achatados do que os nosso, não é uma coisa bonita quando você olha demais para ela. (...)"

"Recordo que, certa vez, encontramos um barco de guerra ancorado na costa. Não havia sequer um barraco lá, e estava bombardeando a mata. Aparentemente, os franceses estavam empenhados em mais uma de suas guerras pelos arredores. Seu pavilhão drapejava flácido como um trapo.; as bocas dos canhões de seis polegadas estendiam-se à frente ao longo de todo o casco inferior; as ondas densas e escorregadias balançavam-no preguiçosamente para cima e para baixo, fazendo oscilar seus finos mastros. Na imensidão vazia de terra, céu e mar, lá estava ele, incompreensível, bombardeando o continente. Bum!, soava uma das armas de seis polegadas; uma chama breve dardejava e esmaecia, desprendendo uma fumacinha branca que logo desaparecia, um projétil diminuto dava um fraco estalido - e nada acontecia. Nada poderia acontecer. Havia um toque de insanidade no procedimento, uma sensação de comicidade lúgubre no que estava se passando, E não se dissipou quando alguém a bordo assegurou-me sinceramente de que havia ali um acampamento de nativos - chamava-os de inimigos! - oculto em algum ponto da selva.(...)"

O Coração das Trevas, Joseph Conrad.

domingo, 3 de agosto de 2014

"Exposição perante a massa

A transformação do modo de exposição pela técnica da reprodução é visível também na política. A crise da democracia poder ser interpretada como uma crise nas condições de exposição do político profissional. As democracias expõem o político de forma imediata, em pessoa, diante de certos representantes. O Parlamento é seu público. Mas, com as inovações nos aparelhos de gravação, que permitem ao orador durante a sua fala ser ouvido por um número ilimitado de pessoas e, pouco depois, ser visto por um número ilimitado de pessoas, a exposição do político diante dos aparelhos passa ao primeiro plano, Com isso os parlamentos se atrofiam, juntamente com o teatro, o rádio e o cinema não modificam apenas a função do intérprete profissional, mas também a função de quem se representa a si mesmo diante desses dois veículos de comunicação, como é o caso do político, O sentido dessa transformação é o mesmo no ator de cinema e no político, qulquer que seja a diferença entre suas tarefas especializadas. Seu objetivo é tornar "mostráveis", sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las, da mesma forma como o esporte o fizera antes, sob certas condições naturais. Esse fenômeno determina um novo processo de seleção, uma seleção diante do aparelho, do qual emergem, como vencedores, o campeão, o astro e o ditador. "

A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1º versão), Walter Benjamin, 1935 / 1936


sábado, 26 de julho de 2014

O Califado Evangélico

     Deu na TV um dia desses que o chefe da Igreja Universal, Edir Macedo, está prestes a construir uma réplica "bíblica" do templo de Salomão, aquele famoso templo mencionado no livro primeiro de Reis. Também passou outra notícia, dessa vez no Oriente Médio, de que um grupo terrorista denominado Estado Islâmico do Iraque e Levante (EIIL) tomou partes do território da Síria e do Iraque, mudou seu nome para Estado Islâmico e seu líder, Abu Bakr Al-Bagdhadi, declarou-se "califa".
     O que é um "califa"? é um título honorífico do mundo muçulmano, conferido ao governante de um estado islâmico regido pela Sharia, a lei islâmica. Ele deve ser descendente do profeta Maomé, para os xiitas, ou legítimo sucessor, fosse parente ou não, para os sunitas. Em outras, palavras, califa seria, grosso modo, o que o imperador do sacro império romano-germânico foi no ocidente, isto é, o representante de Deus na Terra para governar o Estado, o mundo secular. Se ele é o representante de Alá na terra, então todos os muçulmanos, por suposto, tẽm o dever de obedecê-lo, daí porque ele exigiu que todos os islâmicos fossem jurar obediência a ele. O último califa reconhecido pela generalidade do mundo islâmico foi o califa Abdul Mejid II, o último sultão do Império Otomano, hoje república da Turquia.
      Ora, e o que têm a ver Edir Macedo com isto tudo? simples. Há um gigantesco simbolismo nesse templo evangélico. O templo de Salomão era considerado o lugar mais sagrado do judaísmo, e o rei que o construiu, Salomão, passou à história como o modelo de rei ideal, o mais importante de todos os reis israelitas, o messias (do hebraico moshiach, significando "ungido", assim era aplicada originalmente esta palavra, como um título real). Reconstruindo o templo de Salomão, a mensagem de Edir Macedo é clara: doravante, todo o simbolismo do templo de Salomão foi restaurado. Assim como o antigo templo, o novo deve ser e será o principal templo cristão de todo o Brasil (ele é 4 vezes maior que a basílica de Aparecida). Assim como Salomão, o novo Salomão, aquele que é o ungido do Senhor, o mais sábio entre os homens, também ressurgiu, e atende pelo nome de Edir Macedo. Não há modéstia aqui: Este templo simboliza a reivindicação cabal da liderança sobre todo o mundo evangélico, quiçá sobre todo o mundo cristão no país. Portanto, da mesma forma que ao califa Al-Bagdhadi, é exigida obediência incondicional ao novo Salomão por parte de todos os evangélicos, da mesma forma que todo Israel devia curvar-se às ordens do rei dos reis, único e legítimo representante de Deus na terra, aquele que é apto a guiar o novo Israel, assim como o califa, diretamente escolhido por Deus para reinar e trazer o reino de Deus. E, assim como Al-Bagdhadi, está iniciado um novo califado, uma nova era no meio religioso evangélico. Aquela barba é um sinal disso: ele disse que era um voto em favor da construção do templo, mas é inegável que é uma tentativa de capturar esta imagem de Salomão, o personagem o qual todos lembram imediatamente de um senhor velho e barbudo, como todos os profetas do antigo testamento. É um grande teatro, na verdade.
     Ambos os dois, o califado islâmico e o retorno do monarca ungido pelo Senhor com seu templo, marcam um ponto de viragem. Com efeito, ambos os acontecimentos são o símbolo da ingerência cada vez maior da religião na política, no oriente com o fundamentalismo islâmico, e no ocidente com o fundamentalismo cristão. Onde isto vai nos levar? não há como saber. Mas atenção: é o tipo de acontecimento sem muita repercussão na hora hodierna, mas histórico no futuro. Então, gravem bem na memória, será muito útil para entendermos nosso futuro, seja ele sombrio ou luminoso.

Eduardo Viveiro, filósofo

quarta-feira, 16 de julho de 2014

"Claire Parnet: E o respeito aos Direitos Humanos que está tão em voga hoje em dia? É o contrário do devir revolucionário, não?
Gilles Deleuze: A respeito dos Direitos Humanos, tenho vontade de dizer um monte de coisas feias. Isso tudo faz parte deste pensamento molenga daquele período pobre de que falamos. É puramente abstrato. O que quer dizer “Direitos Humanos”? É totalmente vazio. É exatamente o que estava tentando dizer há pouco sobre o desejo. O desejo não consiste em erguer um objeto e dizer: “Eu desejo isto”. Não se deseja a liberdade. Isso não tem valor algum. Existem determinadas situações como, por exemplo, a da Armênia. É um exemplo bem diferente. Qual é a situação por lá? Corrijam-me se estiver errado, mas não mudará muita coisa. Há este enclave em outra república soviética, este enclave armênio. Uma República Armênia. Esta é a situação. Primeira coisa. Há o massacre. Aqueles turcos ou sei lá o quê…
Claire Parnet: Os Azeris.
Gilles Deleuze: Pelo que se sabe atualmente, suponho que seja isso: o massacre dos armênios mais uma vez no enclave. Os armênios se refugiam em sua República. Corrija-me se estiver errado. E aí, ocorre um terremoto. Parece uma história do Marquês de Sade. Esses pobres homens passaram pelas piores provas, vindas dos próprios homens e, mal chegam a um local protegido, é a vez da natureza entrar em ação. E aí, vêm me falar de Direitos Humanos. É conversa para intelectuais odiosos, intelectuais sem idéia. Notem que essas Declarações dos Direitos Humanos não são feitas pelas pessoas diretamente envolvidas: as sociedades e comunidades armênias. Pois para elas não se trata de um problema de Direitos Humanos. Qual é o problema? Eis um caso de agenciamento. O desejo se faz sempre através de um agenciamento. O que se pode fazer para eliminar este enclave ou para que se possa viver neste enclave? É uma questão de território. Não tem nada a ver com Direitos Humanos, e sim com organização de território. Suponho que Gorbatchev tente safar-se desta situação. Como ele vai fazer para que este enclave armênio não seja entregue aos turcos que o cercam? Não é uma questão de Direitos Humanos, nem de justiça, e sim de jurisprudência. Todas as abominações que o homem sofreu são casos e não desmentidos de direitos abstratos. São casos abomináveis. Pode haver casos que se assemelhem, mas é uma questão de jurisprudência. O problema armênio é um problema típico de jurisprudência extraordinariamente complexo. O que fazer para salvar os armênios e para que eles próprios se salvem desta situação louca em que, ainda por cima, ocorre um terremoto? Terremoto este que também tem seus motivos: construções precárias, feitas de forma incorreta. Todos são casos de jurisprudência. Agir pela liberdade e tornar-se revolucionário é operar na área da jurisprudência! A justiça não existe! Direitos Humanos não existem! O que importa é a jurisprudência. Esta é a invenção do Direito. Aqueles que se contentam em lembrar e recitar os Direitos Humanos são uns débeis mentais! Trata-se de criar, não de se fazer aplicar os Direitos Humanos. Trata-se de inventar as jurisprudências em que, para cada caso, tal coisa não será mais possível. É muito diferente. Vou dar um exemplo de que gosto muito, pois é o único meio de fazer com que se entenda o que é a jurisprudência. As pessoas não entendem nada! Nem todas… Eu me lembro da época em que foi proibido fumar nos táxis. Antes, se fumava nos táxis. Até que foi proibido. Os primeiros motoristas de táxi que proibiram que se fumasse no carro causaram um escândalo, pois havia motoristas fumantes. Eles reclamaram. E um advogado… Eu sempre fui um apaixonado pela jurisprudência. Se não tivesse feito Filosofia, teria feito Direito. Mas não Direitos Humanos. Teria feito jurisprudência, porque é a vida! Não há Direitos Humanos, há direitos da vida. Muitas vezes, a vida se vê caso a caso. Mas eu estava falando dos táxis. Um sujeito não queria ser proibido de fumar em um táxi e processa os táxis. Eu me lembro bem, pois li os considerandos do julgamento. O táxi foi condenado. Hoje em dia, nem pensar! Diante do mesmo processo, o cara é que seria condenado. Mas, no início, o táxi foi condenado sob o seguinte considerando: quando alguém pega um táxi, ele se torna locatário. O usuário do táxi é comparado a um locatário que tem o direito de fumar em sua casa, direito de uso e abuso. É como se eu alugasse um apartamento e a proprietária me proibisse de fumar em minha casa. Se sou locatário, posso fumar em casa. O táxi foi assimilado a uma casa sobre rodas da qual o passageiro era o locatário. Dez anos depois, isso se universalizou. Quase não há táxi em que se possa fumar. O táxi não é mais assimilado a uma locação de apartamento, e sim a um serviço público. Em um serviço público, pode-se proibir de fumar. A Lei Veil. Tudo isso é jurisprudência. Não se trata de direito disso ou daquilo, mas de situações que evoluem. E lutar pela liberdade é realmente fazer jurisprudência. O exemplo da Armênia me parece típico. Os Direitos Humanos… Ao invocá-los, quer dizer que os turcos não têm o direito de massacrar os armênios. Sim, não podem. E aí? O que se faz com esta constatação? São um bando de retardados. Ou devem ser um bando de hipócritas. Este pensamento dos Direitos Humanos é filosoficamente nulo. A criação do Direito não são os Direitos Humanos. A única coisa que existe é a jurisprudência. Portanto, é lutar pela jurisprudência.
Claire Parnet: Quero voltar a uma coisa…
Gilles Deleuze: Ser de esquerda é isso. Eu acho que é criar o direito. Criar o direito.  
Claire Parnet: Voltamos à pergunta sobre a filosofia dos Direitos Humanos. Este respeito pelos Direitos Humanos é uma negação de Maio de 1968 e uma negação do Marxismo. Você não repudiou Marx, pois não foi comunista e ainda o tem como referência. E você foi uma das raras pessoas a evocar Maio de 68 sem dizer que foi uma mera bagunça. O mundo mudou. Gostaria que falasse mais sobre Maio de 68.  
Gilles Deleuze: Sim! Mas foi dura ao dizer que fui um dos raros, pois há muita gente. Basta olhar à nossa volta, entre nossos amigos, ninguém renegou 68. Claire Parnet: Sim, mas são nossos amigos.
Gilles Deleuze: Mesmo assim, há muita gente. São muitos os que não rejeitaram Maio de 68. Mas a resposta é simples. Maio de 68 é a intrusão do devir. Quiseram atribuir este fato ao reino do imaginário. Não é nada imaginário, é uma baforada de realidade em seu estado mais puro. De repente, chega a realidade. E as pessoas não entenderam e perguntavam: “O que é isso?” Finalmente, gente real. As pessoas em sua realidade. Foi prodigioso! O que eram as pessoas em sua realidade? Era o devir. Podia haver alguns devires ruins. É claro que alguns historiadores não entenderam bem, pois acredito tanto na diferença entre História e devir. Foi um devir revolucionário, sem futuro de revolução. Alguns podem zombar disso. Ou zombam depois que passou. O que tomou as pessoas foram fenômenos de puro devir. Mesmo os devires-animal, mesmo os devires-criança, mesmo os devires-mulher dos homens, mesmo os devires-homem das mulheres… Tudo isso faz parte de uma área tão particular na qual estamos desde o início de nossas questões. O que é exatamente um devir? É a intrusão do devir em Maio de 1968.
Claire Parnet: Você teve um devir-revolucionário naquele momento?
Gilles Deleuze: O seu sorriso parece mostrar bem a sua ironia… Prefiro que me pergunte o que é ser de esquerda. É mais discreto do que devir-revolucionário.
Claire Parnet: Então, vou perguntar de outra forma. Entre seu civismo de homem de esquerda e seu devir-revolucionário, como você faz? O que é ser de esquerda para você?
Gilles Deleuze: Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é um governo de esquerda. Não é que não existam diferenças nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que esta situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: “Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?” E ser de esquerda é o contrário. É perceber… Dizem que os japoneses percebem assim. Não vêem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro, eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois, o continente… europeu, por exemplo… depois a França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte.
Claire Parnet: Mas os japoneses não são um povo de esquerda…  
Gilles Deleuze: Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal. Estão à esquerda. Primeiro, vê-se o horizonte e sabe-se que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode mais durar. Não é possível esta injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com que o Terceiro Mundo… Ser de esquerda é saber que os problemas do Terceiro Mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser, ou melhor, é devir-minoria, pois é sempre uma questão de devir. Não parar de devir-minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe – até quando se vota, não se trata apenas da maior quantidade que vota em favor de determinada coisa – a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem neste padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho, etc. As mulheres vão contar e intervir nesta maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a este padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir-mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir-animal. As crianças também têm um devir-criança. Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários. 
Claire Parnet: Só os homens não têm devir homem.
Gilles Deleuze: Não, pois é um padrão majoritário. É vazio. O homem macho, adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto dos processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidassaber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidas."

Abecedário de Deleuze (documentário), Gilles Deleuze.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

"No décimo segundo anos após esses acontecimentos, Megacles, enfrentando dificuldades num conflito de facções, abriu negociações com Pisístrato e, propondo que este desposasse sua filha, trouxe-o de volta, empregando um expediente antiquado e extremamente simples. Começando por fazer correr um boato de que Atena estava trazendo Pisístrato de volta, descobriu uma mulher, alta e bela, de acordo com Heródoto pertencente ao demo de Paeânia, embora conforme outros relatos uma florista tŕacia de Colito, de nome Fie, trajou-a para que se assemelhasse a uma deusa e a trouxe à cidade com Pisístrato. Este surgiu na cidade dirigindo uma biga com a tal mulher em pé ao seu lado, A população, tomada de pasmo, acolheu-os reverentemente."

Constituição de Atenas, Aristóteles.

terça-feira, 1 de julho de 2014

A religião e a igreja: especulações sobre o relacionamento destas com o pensamento comtemporâneo 

Muita gente costuma confundir o conceito de religião e igreja, trocando um pelo outro. São diferentes. Igreja é um termo aplicado exclusivamente ao cristianismo. Ninguém fala em "igreja sufista" no islamismo, mas "seita", "ramificação" ou qualquer outra coisa equivalente. Igreja, e seus equivalentes, é um conjunto de pessoas que professam doutrinas mais ou menos idênticas entre si. Há um certo grau de coesão. Assim, existe a igreja católica, com um conjunto mais ou menos coeso de doutrina sobre a torá, a bíblia judaica, e seu messianismo. Porém, não há uma doutrina única e idêntica em todo lugar, o que há é uma doutrina "oficial", aquela do catecismo, e outras "piratas", que saem fora do catecismo, ou pelo menos assim são consideradas pelo grupo dominante dentro dela. Já houveram inumeras doutrinas diferentes dentro do catolicismo, e ainda há, como a teologia da libertação. Leonardo Boff, por exemplo, se considera católico, mas muitos não o consideram. Isso é igreja. Religião é a reunião de várias igrejas, com determinados princípios também mais ou menos comuns, de modo que dê pra agrupá-las. Portanto, o que há é uma religião cristã, mas várias igrejas como a católica, a assembleia, TJ etc. Mas, se dentro da igreja, há divergências entre princípios e crenças, muito mais há na religião. Os testemunhas de jeová não acreditam na divindade de Jesus, mas a igreja batista sim. O mesmo se dá com outras religiões, como a muçulmana, que tem xiitas, sunitas, drusos etc, que seriam o equivalente de nossas igrejas aqui no mundo cristão.
Nesse sentido, religião é um importante campo do conhecimento humano, mas não confundam, conhecimento aqui não equivale a uma certeza absoluta, como o senso comum geralmente encara, a religião foi uma das tentativas, talvez a mais antiga, da humanidade em reconhecer e controlar as forças naturais e a si mesmo. Obviamente, olhando com os olhos de hoje, pode parecer bastante primitivo a explicação de Tomás de Aquino sobre o sêmen, já que temos hoje a biologia que a explica muito bem. Porém, foi uma tentativa válida, e que contribuiu em sua época, para que tivéssemos a explicação científica correta como hoje. A religião pode ser considerada a infância da ciência e irmã da filosofia, da mesma forma que ninguém se considera um imbecil porque, quando criança, acreditava que o o irmão tinha vindo no bico da cegonha. Era apenas uma forma "primitiva" de conhecimento sobre a reprodução humana, plenamente válida naquela época. É nesse sentido que Nietzsche diagnosticou a "morte de Deus", Deus esse enquanto explicação última para o funcionamento da natureza, agora substituído pela ciência.
Porém, não podemos cair no erro do cientificismo, a saber, considerar a ciência como detentora de uma(s) verdade(s) total(is) e absoluta(s). Fazer isso equivaleria a concordar com o fanatismo religioso, cujo fundamento é exatamente esse, a absolutização da religião enquanto única verdade, logicamente a dele. Tudo que sabemos cientificamente falando corresponde a cerca de 2% do universo. O resto é chamada matéria escura, do qual nada sabemos ainda. É aí que entra o sobrenatural. Sobre + natural, significa além do natural, além do que conhecemos como mundo natural, algo que nós não conhecemos. Tudo que nós não sabemos pode ser dito como sendo "sobrenatural". Assim, por exemplo, a composição das estrelas poderia ser considerada sobrenatural, mas se tornou natural quando passamos a ter condições de afirmar, com grande grau de certeza, do que elas são compostas.
O que podemos ainda aprender com a religião, ao meu ver, é exatamente essa noção do para-além do conhecido, por definição não sabemos o que não conhecemos, e a religião "dá um chute" do que pode ter por lá, sem qualquer base senão a fé que, na definição da carta aos hebreus, "fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê", isto é, basicamente um "chute". Ela nos lembra sempre que somos limitados em nosso conhecimento. Se é certa a resposta, logo o tempo e nossas investigações responderão. Mas sempre é importante nunca esquecermos que, por mais avançados que somos, é muito provável que nós jamais consigamos conhecer tudo, e portanto podemos esperar tudo do desconhecido, não os deuses criados até hoje pelo ser humano, cujas inconsistências lógicas saltam aos olhos, impossibilitando-os de existirem, mas talvez algo próximo ou não do que costumamos chamar de deus. Enfim, mesmo depois de tanto tempo, Sócrates e seu "só sei que nada sei" ainda nos está pegando.

Eduardo Viveiros.
"Os gregos estavam reunidos no istmo e haviam resolvido, com um decreto, que se agregariam a Alexandre, na guerra contra os Persas. Alexande foi nomeado chefe da expedição, e recebeu as visitas de uma multidão de estadistas e de filósofos, que iam felicitá-lo pela escolha dos gregos. Ele esperava que Diógenes de Sinope, que vivia em Corinto, fizesse outro tanto, Mas, como Diógenes mostrasse que absolutamente não se preocupava com ele, ficando tranquilo no Cranium, foi ele mesmo visitá-lo. Diógenes estava deitado ao sol: e, quando viu chegar uma multidão tão grande que o procurava, levantou-se um pouco e fixou o olhar em Alexandre. Alexandre cumprimenta-o e pergunta-lhe se precisa de alguma coisa: "Sim - responde Diógenes - afasta-te um pouco do meu sol". Essa resposta - dizem - impressionou vivamente Alexandre. O desprezo que lhe mostrou Diógenes inspirou-lhe uma alta ideia da grandeza de alma deste homem; e, na volta, ouvindo seus oficiais zombar de Diógenes: "Para mim - disse - se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes.""

Plutarco, Vidas Paralelas.
O califado islâmico x O Sacro Império Romano-germânico

     "Depois de avanço no Iraque, ramificação da Al Qaeda declara califado no Iraque". link da notícia: http://br.reuters.com/article/worldNews/idBRKBN0F40X020140629?sp=true.  Aí está, o primeiro califado islâmico dos tempos modernos. A primeira vitória realmente positiva e importante desses últimos 30 anos de fundamentalismo religioso no Ocidente ou Oriente. Os evangélicos fundamentalistas também parecem avançar nessa direção nos E.U.A., no Brasil e outros lugares, ganham cada vez mais terreno na política. Choque de civilizações? não creio. Creio sim há um só movimento de fundamentalismo religioso que abarca o mundo todo, sob diferentes expressões, pentecostalismo no Ocidente, islamismo no Oriente Médio, Hinduísmo na índia. A meu ver, é uma reação à racionalidade ocidental predominante por aqui e por lá (Boko Haram, grupo terrorista nigeriano, significa "a educação ocidental é um pecado"), muito semelhante ao avanço do fundamentalismo cristão no início da idade média, que levou ao colapso e a destruição de quase toda a ciência e filosofia pagã greco-romana, simbolizada pela destruição da biblioteca de Alexandria, do qual só sobraram restos esparsos. A questão a saber é se, repetindo a história, conseguirão destruir a ciência e a filosofia tal como naquela época, e entraremos numa nova idade média, ou se dessa vez será diferente? creio que não. E a razão é a internet: ao contrário daquele tempo, o conhecimento hoje está muito bem preservado no mundo virtual, e é virtualmente impossível destruírem-no todo de uma vez, pois ele não se concentra num único lugar, e sim está espalhado em milhares de servidores alocados pelo mundo todo. Além disso, não há apenas 50 ou 100 cópias das obras, e sim bilhões, de modo que, se destruírem uma, milhões têm a chance de sobreviverem esquecidas por aí, em meios diversos, como no P2P, blogs, 4Shared etc, e a arquitetura da internet é tal que não pode ser destruída de uma vez, a menos que todos os países do mundo concordem com isso, o que é praticamente impossível, dado os interesses específicos de cada político dos 200 e tantos países independentes que existem. Então, o conhecimento certamente vai sobreviver. Mas será que vai ganhar? só vendo para crer. Mas a perspectiva diria ser otimista: dados dizem que o mundo vem se tornando menos violento e menos supersticioso desde pelo menos o fim da idade média. Parece que, lentamente, a racionalidade vai vencendo a superstição religiosa, movimento que ganhou impulso grande com o iluminismo e a revolução francesa, e muito acelerado no século XIX e XX. Um sintoma disso é o mundo árabe: olhando para ele, é inegável a sua semelhança com a Europa medieval até pelo menos o século XVIII. Porém, há sinais claros de que há em gestação dentro deles um movimento em prol da racionalidade e do pensamento científico, os quais redescobre cada vez mais seu passado esquecido de avanço humanista e científico de antes do século XVI. A primavera árabe foi um desses sintomas, assim como a falta de ressonância do pensamento fundamentalista muçulmano como o ISIL entre a maioria da população, majoritamente muçulmana moderada, não obstante a violência e repressão dos radicais islâmicos. O secularismo islâmico ganhou força depois dessa primavera em vários lugares. Embora atualmente fortemente reprimido em vários lugares, como no Egito, o movimento de crescimento do secularismo parece ser evidente. Não há que se esperar que de repente, esta cultura secular se implante por lá, basta observar que os vencedores das eleições após os conflitos da primavera, foram os partidos religiosos como a irmandade muçulmana. Entretanto, as perspectivas são boas: o secularismo ocidental vem exercendo grande influência sobre o secularismo islâmico, dentro de um contexto de globalização e aproximação de diversas civilizações entre si, muitas vezes instantaneamente pelo Skype ou Gmail. Mas, note-se bem: o secularismo islâmico, embora influenciado pelo ocidental, é independente, gestado legítimamente dentro do pensamento islamita. Não é simplesmente uma importação do Ocidente, como alegado pelos conservadores. Vejamos o que vem por aí. 
 
Eduardo Viveiros
 
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