sexta-feira, 19 de junho de 2015

SOBRE A TEOLOGIA CRISTÃ, OU COMO A FILOSOFIA GREGA FOI ESTUPRADA PELOS CRISTIANISMO

"O maior problema, contudo, ao qual foi submetida a obra aristotélica, encontra sua causa no tortuoso percurso linguístico e cultural do qual ela foi objeto até atingir a Europa cristã.
Apesar do enorme interesse despertado pela descoberta dos textos acroamáticos ou esotéricos em meados do século I a.c., o mundo culto ocidental (então, a Europa) logo foi tomado pela fé cristã e a seguir pela cristianização oficial estabelecida pela igreja, mesmo ainda sob o Império Romano.
A cristianização do Império romano permitiu aos poderosos Padres da Igreja incluir a filosofia grega no contexto da manifestação pagã, convertendo o eu cultivo em prática herética. A filosofia aristotélica foi condenada e seu estudo posto na ilegalidade. Entretanto, com a divisão do Império romano em 385 a.D., o corpus aristotelicum, composto por Andrônico de Rodes, foi levado de Roma para Alexandria.
Foi no Império romano do Oriente (Império bizantino) que a obra de Aristóteles voltou a ser regularmente lida, apreciada e finalmente traduzida...para o árabe (língua semita, que, como sabemos, não entretém qualquer afinidade com o grego) a partir do século X.
Portanto, o PRIMEIRO Aristóteles TRADUZIDO foi o dos grandes filósofos árabes, particularmente Avicena (Ibn Sina, morto em 1036) e Averróis (Ibn Roschd, falecido em 1198),ambos exegetas de Aristóteles, sendo o último considerado o mais importante dos PERIPATÉTICOS ÁRABES da Espanha, e NÃO o da latinidade representada fundamentalmente por Sto. Tomás de Aquino.
Mas, voltando no tempo, ainda no século III, os Padres da Igreja (homens de ferro, como Tertuliano, decididos a consolidar institucionalmente o cristianismo oficial a qualquer custo), concluíram que a filosofia helênica, em lugar de ser combatida, poderia revelar-se um poderoso instrumento para a legitimação e fortalecimento intelectual da doutrina cristã. Porém, de que filosofia grega dispunham em primeira mão? somente do neoplatonismo e do estoicismo, doutrinas filosóficas gregas que, de fato, se mostravam conciliáveis com o cristianismo, especialmente o último, que experimentara uma séria continuidade romana graças a figuras como Sêneca, Epíteto e o imperador Marco Aurélio Antonino.
Sob os protestos dos representantes do neoplatonismo (Porfírio, Jâmblico, Proclo etc.), ocorreu uma apropriação do pensamento grego por parte da igreja. Situação delicadíssima para os últimos filósofos gregos que, se por um lado podiam perder suas cabeças por sustentar a distinção e/ou oposição do pensamento grego ao cristianismo, por outro tinham que admitir o fato de muitos de seus próprios discípulos estarem se convertendo a este, inclusive através de uma tentativa de compatibilizá-lo não só com Platão, como também com Aristóteles, de modo a torná-los "aceitáveis" para a igreja.
Assim, aquilo que ousaremos chamar de APROPRIAÇÃO DO PENSAMENTO GREGO foi encetado inicialmente pelos próprios discípulos dos neoplatônicos, e se consubstanciou na conciliação do cristianismo (mais exatamente a teologia cristã que principiava a ser construída e estruturada naquela época) primeiramente com o platonismo via neoplatonismo e depois com o aristotelismo, não tendo sido idsso pioneiros nem os grandes vultos da patrística (São Justinio, Clemente de Alexandria, Orígenes e mesmo Sto. Agostinho) relativamente a Platão, nem aqueles da escolástica (John Scot Erigene e Sto Tomás de Aquinio) relativamente a Aristóteles.
A primeira consequência desse "remanejamento" filosófico foi nivelar Platão e Aristóteles. Afinal, não se tratava de estudar a fundo e exaustivamene os grandes sistemas filosóficos gregos - os pragmáticos Padres da Igreja viam o vigoroso pensamento helênico meramente como um precioso veículo a atender seu objetivo, ou seja, propiciar fundamento e conteúdo filosófico à incipiente teologia cristã.
Os discípulos cristãos dos neoplatônicos não tiveram, todavia, acesso aos manuscritos originais do corpus aristotelicum.
Foi através da conquista militar da península ibérica e da região do mar Mediterrâneo pelas tropas cristãs, inclusive durante as cruzadas, que os cristãos voltaram a ter contato com as obras do Estagirita, precisamente por intermédio os INFIÉIS, ou seja, tiveram acesso às TRADUÇÕES E PARÁFRASES árabes (e mesmo hebraicas) a que nos referimos anteriormente.
A partir do século XII começaram a surgir as primeiras traduções latinas (latim erudito) da obra de Aristóteles. Conclusão: o Aristóteles linguística e culturamente original durante séculos jamais frequentou a Europa medieval.
Tanto Andrônico de Rodes, no século I a.C., ao estabelecer o CORPUS ARISTOTELICUM, quanto o neoplatônico Porfírio no século III ressaltaram nesse corpus o órganon (série de tratados dedicados à lógica, ou melhor, à Analítica, no dizer de Aristóteles) e sustentaram a ampla divergência doutrinária entre os pensamentos de Platão e Aristóteles. Os discípulos cristãos dos neoplatônicos, a partir da alvorada do século III, deram realce à lógica, à física e à retórica, e levaram a cabo a proeza certamente falaciosa de conciliar os dois maiores filósofos da Grécia. Qunto aos estócios romanos, também prestigiaram a lógica aristotélica, mas deram destaqu à ética, não nivelando Aristóteles a Platão, mas os aproximando.
O fato é que a igreja obteve pleno êxito no seu intento, graças à inteligência e sensibilidade agudas de homens como o bispo de Tagasta, Aurélio Agostino (Sto Agostinho) (354 - 430 d.C.)e o dominicano oriundo de Nápoles, Tomás de Aquino (Sto. Tomás) (1224 - 1274), que se revelaram vigorosos e fecundos teólogos, superando o papel menor de meros intérpretes e APROVEITADORES das originalíssimas concepções gregas.
Quanto a Aristóteles, a igreja foi muito mais além e transformou o IL FILOSOFO (como Aquino o chamava) na suma e única autoridade do conhecimento, com o que, mais uma vez, utilizava o pensamento grego para alicerçar os dogmas da cristandade e, principalmente, respaldar e legitimar sua intensa atividade política oficial e extraoficial, caracterizada pelo autoritarismo e a centralização do poder em toda a Europa.
Se, por um lado, o Estagirita se sentiria certamente lisonjeado com tal posição, por outro, quem conhece seu pensamento sabe que também certamente questionaria o próprio CONCEITO de autoridade exclusiva do conhecimento. (BINI, 2010, p. 19 - 22).
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