quinta-feira, 2 de outubro de 2014

" Será suficiente aqui que eu tome como fundamento aquilo que deve ser reconhecido por todos, a saber, que todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas e que todos tendem a buscar o que lhes é útil, estando conscientes disso. Com efeito, disso se segue, em primeiro lugar, que, por estarem conscientes de suas volições e de seus apetites, os homens se crêem livres, mas nem em sonho pensam nas causas que os dispõem a ter essas vontades e esses apetites, porque as ignoram. Segue-se, em segundo lugar, que os homens agem, em tudo, em função de um fim, quer dizer, em função da coisa útil que apetecem. É por isso que, quanto às coisas acabadas, eles buscam, sempre, saber apenas as causas finais, satisfazendo-se, por não terem qualquer outro motivo para duvidar, em saber delas por ouvir dizer. Se, entretanto, não puderem saber dessas causas por ouvirem de outrem, só lhes resta o recurso de se voltarem para si mesmos e refletirem sobre os fins que habitualmente os determinam a fazer coisas similares e, assim, necessariamente, acabam por julgar a inclinação alheia pela sua própria. Como, além disso, encontram, tanto em si mesmos, quanto fora de si, não poucos meios que muito contribuem para a consecução do que lhes é útil, como, por exemplo, os olhos para ver, os dentes para mastigar, os vegetais e os animais para alimentar-se, o sol para iluminar, o mar para fornecer-lhes peixes, etc., eles são, assim, levados a considerar todas as coisas naturais como se fossem meios para sua própria utilidade. E por saberem que simplesmente encontraram esses meios e que não foram eles que assim os dispuseram, encontraram razão para crer que deve existir alguém que dispôs esses meios para que eles os utilizassem. Tendo, pois, passado a considerar as coisas como meios, não podiam mais acreditar que elas tivessem sido feitas por seu próprio valor. Em vez disso, com base nos meios de que
costumam dispor para seu próprio uso, foram levados a concluir que havia um ou mais governantes da natureza, dotados de uma liberdade humana, que tudo
haviam providenciado para eles e para seu uso tinham feito todas as coisas. E,
por nunca terem ouvido falar nada sobre a inclinação desses governantes, eles
igualmente tiveram que julgá-la com base na sua, sustentando, como conseqüência, que os deuses governam todas as coisas em função do uso humano, para que os homens lhes fiquem subjugados e lhes prestem a máxima reverência. Como conseqüência, cada homem engendrou, com base em sua própria inclinação, diferentes maneiras de prestar culto a Deus, para que Deus o considere mais que aos outros e governe toda a natureza em proveito de seu cego desejo e de sua insaciável cobiça. Esse preconceito transformou-se, assim, em superstição e criou profundas raízes em suas mentes, fazendo com que cada um dedicasse o máximo de esforço para compreender e explicar as causas finais de todas as coisas. Mas, ao tentar demonstrar que a natureza nada faz em vão (isto é, não faz nada que não seja para o proveito humano), eles parecem ter demonstrado apenas que, tal como os homens, a natureza e os deuses também deliram.
Peço-lhes que observem a que ponto se chegou! Ao lado de tantas coisas
agradáveis da natureza, devem ter encontrado não poucas que são desagradá-
veis, como as tempestades, os terremotos, as doenças, etc.. Argumentaram,
por isso, que essas coisas ocorriam por causa da cólera dos deuses diante das
ofensas que lhes tinham sido feitas pelos homens, ou diante das faltas cometi-
das nos cultos divinos. E embora, cotidianamente, a experiência contrariasse
isso e mostrasse com infinitos exemplos que as coisas cômodas e as incômodas
ocorrem igualmente, sem nenhuma distinção, aos piedosos e aos ímpios, nem
por isso abandonaram o inveterado preconceito. Foi-lhes mais fácil, com efeito,
colocar essas ocorrências na conta das coisas que desconheciam e cuja utilida-
de ignoravam, continuando, assim, em seu estado presente e inato de ignorân-
cia, do que destruir toda essa sua fabricação e pensar em algo novo. Deram,
por isso, como certo que os juízos dos deuses superavam em muito a compreen-
são humana. Essa razão teria sido, sozinha, realmente suficiente para que a
verdade ficasse para sempre oculta ao gênero humano, se a matemática, que
se ocupa não de fins, mas apenas das essências das figuras e de suas proprie-
dades, não tivesse mostrado aos homens outra norma de verdade. Seria possí-
vel assinalar, além da matemática, ainda outras razões (seria supérfluo enume-
rá-las aqui) que podem ter levado os homens a tomarem consciência desses
preconceitos comuns, conduzindo-os ao verdadeiro conhecimento das coisas.
Creio, com isso, ter explicado suficientemente o primeiro ponto que anun-
ciei. Mas para demonstrar, agora, que a natureza não tem nenhum fim que
lhe tenha sido prefixado e que todas as causas finais não passam de ficções
humanas, não será necessário argumentar muito. Creio, com efeito, que
isso já foi suficientemente estabelecido, tanto pela exposição das causas e
dos fundamentos, nos quais, como mostrei, esse preconceito tem sua ori-
gem, quanto pela prop. 16 e pelos corol. 1 e 2 da prop. 32, bem como, ainda,
por todas as demonstrações em que provei que tudo, na natureza, procede de
uma certa necessidade eterna e de uma perfeição suprema. Mas afirmo, ainda,
que essa doutrina finalista inverte totalmente a natureza, pois considera como
efeito aquilo que é realmente causa e vice-versa. Além disso, converte em
posterior o que é, por natureza, anterior. Enfim, transforma em imperfeito o que
é supremo e perfeitíssimo. Com efeito (deixemos de lado os dois primeiros
pontos, por serem evidentes por si mesmos), como se deduz das prop. 21, 22 e
23, o efeito mais perfeito é o que é produzido por Deus imediatamente, e uma
coisa é tanto mais imperfeita quanto mais requer causas intermediárias para
ser produzida. Mas se as coisas que são produzidas por Deus imediatamente
tivessem sido feitas para que Deus cumprisse um fim seu, então essas coisas
feitas por último e em função das quais as primeiras teriam sido feitas, seriam
necessariamente as melhores de todas. Além disso, essa doutrina suprime a
perfeição de Deus, pois se ele age em função de um fim, é porque necessaria-
mente apetece algo que lhe falta. E embora os teólogos e os metafísicos distin-
gam entre o fim de falta [para preencher uma falta própria] e o fim de assimi-
lação [para satisfazer uma necessidade alheia], eles reconhecidamente afirmam,
entretanto, que Deus fez todas as coisas em função de si mesmo e não em
função das coisas a serem criadas, pois, além de Deus, não podem assinalar
nenhuma outra coisa em função da qual, antes do ato de criação, ele tivesse
agido. São, assim, necessariamente forçados a admitir que Deus não dispunha
daqueles seres em proveito dos quais ele supostamente poderia ter querido e
desejado providenciar os referidos meios, conclusão que é evidente por si mes-
ma. É preciso não deixar de mencionar que os partidários dessa doutrina, os
quais, ao atribuir um fim às coisas, quiseram dar mostras de sua inteligência,
introduziram um novo modo de argumentação para prová-la, a saber, a redução
não ao impossível, mas à ignorância, o que mostra que essa doutrina não tinha
nenhum outro meio de argumentar. Com efeito, se, por exemplo, uma pedra
cair de um telhado sobre a cabeça de alguém, matando-o, é da maneira seguin-
te que demonstrarão que a pedra caiu a fim de matar esse homem: se a pedra
não caiu, por vontade de Deus, com esse fim, como se explica que tantas
circunstâncias (pois, realmente, é com freqüência que se juntam, simultanea-
mente, muitas circunstâncias) possam ter se juntado por acaso? Responderás,
talvez, que isso ocorreu porque ventava e o homem passava por lá. Mas eles
insistirão: por que ventava naquele momento? E por que o homem passava por
lá naquele exato momento? Se respondes, agora, que se levantou um vento
naquele momento porque, no dia anterior, enquanto o tempo ainda estava cal-
mo, o mar começou a se agitar, e que o homem tinha sido convidado por um
amigo, eles insistirão ainda (pois as perguntas não terão fim): por que, então, o
mar estava agitado? E por que o homem tinha sido convidado justamente para
aquele momento? E assim por diante, não parando de perguntar pelas causas
das causas até que, finalmente, recorras ao argumento da vontade de Deus,
esse refúgio da ignorância. Assim, igualmente, quando observam a constru-
ção do corpo humano, ficam estupefatos e, por ignorarem as causas de
tamanha arte, concluem que foi construído não por arte mecânica, mas por
arte divina ou sobrenatural e igualmente por esta arte foi constituído, de tal
forma que uma parte não prejudique a outra. E é por isso que quem quer
que busque as verdadeiras causas dos milagres e se esforce por compreen-
der as coisas naturais como um sábio, em vez de se deslumbrar como um
tolo, é tido, aqui e ali, por herege e ímpio, sendo como tal proclamado por
aqueles que o vulgo adora como intérpretes da natureza e dos deuses. Pois
eles sabem que, uma vez suprimida a ignorância, desaparece também essa
estupefação, ou seja, o único meio que eles têm para argumentar e para
manter sua autoridade. Deixo, entretanto, isso de lado e passo ao ponto que
me dispus a tratar em terceiro lugar.
Depois de terem se persuadido de que tudo o que ocorre é em função deles,
os homens foram levados a julgar que o aspecto mais importante, em qual-
quer coisa, é aquele que lhes é mais útil, assim como foram levados a ter
como superiores aquelas coisas que lhes afetavam mais favoravelmente.
Como conseqüência, tiveram que formar certas noções para explicar a
natureza das coisas, tais como as de bem, mal, ordenação, confusão, calor,
frio, beleza, feiúra, etc., e, por se julgarem livres, foi que nasceram noções
tais como louvor e desaprovação, pecado e mérito. Examinarei essas últi-
mas mais adiante, depois que tiver me ocupado da natureza humana, limi-
tando-me aqui a examinar brevemente as primeiras. Tudo aquilo, pois, que
beneficia a saúde e favorece o culto de Deus eles chamaram de bem; o que
é contrário a isso chamaram de mal. E como aqueles que não compreen-
dem a natureza das coisas nada afirmam sobre elas, mas apenas as imagi-
nam, confundindo a imaginação com o intelecto, eles crêem firmemente
que existe uma ordenação nas coisas, ignorando tanto a natureza das coi-
sas quanto a sua própria. Com efeito, quando as coisas estão dispostas de
maneira tal que, quando nos são representadas pelos sentidos, podemos
facilmente imaginá-las e, conseqüentemente, facilmente recordá-las, dize-
mos que estão bem ordenadas; se ocorrer o contrário, dizemos que estão
mal ordenadas ou que são confusas. E como as coisas que podem ser
imaginadas facilmente são mais agradáveis do que as outras, os homens
preferem a ordenação à confusão, como se a ordenação fosse algo que,
independentemente de nossa imaginação, existisse na natureza. Dizem ain-
da que Deus criou todas as coisas ordenadamente, atribuindo, assim, sem
se darem conta, a imaginação a Deus, o que só faria sentido se eles quises-
sem dizer, talvez, que, em função da imaginação humana, Deus dispôs to-
das as coisas de maneira que elas pudessem ser mais facilmente imagina-
das. Provavelmente não é, para eles, nenhum problema a verificação de
infinitas coisas que superam de longe a nossa imaginação e um grande
número de outras que, por sua debilidade, deixam a nossa imaginação confusa.
Mas sobre tal ponto isso é suficiente. Quanto às outras noções, também não
passam de modos do imaginar, pelos quais a imaginação é diferentemente afe-
tada, e que, no entanto, são considerados pelos ignorantes como atributos prin-
cipais das coisas, porque acreditam, como já dissemos, que todas as coisas
foram feitas em função deles, e é com base na maneira como foram afetados
por uma coisa que dizem que a sua natureza é boa ou má, sã ou podre e
corrompida. Se, por exemplo, o movimento que os nervos recebem dos objetos
representados pelos olhos contribui para uma boa disposição do corpo, os obje-
tos que causaram tal movimento são chamados de belos, sendo chamados de
feios aqueles que provocam o movimento contrário. Aqueles que provocam o
sentido por meio do nariz são chamados de perfumados ou, então, de malchei-
rosos; por meio da língua, de doces e saborosos ou, então, de amargos e insípi-
dos; por meio do tato, de duros e ásperos ou, então, de moles e macios. E,
finalmente, daqueles que provocam os ouvidos diz-se que eles produzem baru-
lho ou, então, som ou harmonia, a qual fascinou tanto os homens que eles
acabaram por acreditar que Deus também se deleitava com ela, não tendo
faltado filósofos que estavam convencidos de que os movimentos celestes com-
punham uma harmonia. Tudo isso mostra suficientemente que cada um julga as
coisas de acordo com a disposição de seu cérebro, ou melhor, toma as afec-
ções de sua imaginação pelas próprias coisas. Por isso, não é de admirar (assi-
nalemos, de passagem também isso) que tenham surgido entre os homens tan-
tas controvérsias quanto as que experimentamos, delas surgindo, finalmente, o
ceticismo. Com efeito, embora os corpos humanos estejam em concordância
sob muitos aspectos, diferem, entretanto, sob muitos mais. Por isso, o que a um
parece bom, a outro parece mau; o que a um parece ordenado, a outro parece
confuso; o que a um é agradável, a outro é desagradável, e assim quanto às
outras noções, sobre as quais, entretanto, não insisto aqui, tanto por não ser este o local para discuti-las de forma explícita, quanto porque todos têm delas suficiente experiência. Pois, ditados como os seguintes estão na boca de todo mundo. Cada cabeça, uma sentença. A cada qual seu parecer lhe basta. Há tantos juízos, quantos são os gostos. Esses ditados mostram suficientemente
que os homens julgam as coisas de acordo com o estado de seu cérebro e que,
mais do que as compreender, eles as imaginam. Pois se as compreendessem,
então, mesmo que não as achassem atraentes, ao menos se convenceriam
delas todas, como mostra o exemplo da matemática.
Vemos, pois, que todas as noções que o vulgo costuma utilizar para explicar
a natureza não passam de modos do imaginar e não indicam a natureza das
coisas, mas apenas a constituição de sua própria imaginação. E como elas
têm nomes, como se fossem entes que existissem fora da imaginação, cha-
mo-as não entes de razão, mas entes de imaginação. E, assim, pode-se
facilmente refutar todos os argumentos que poderiam ser dirigidos contra
nós, com base em noções como essas. Costuma-se, com efeito, argumen-
tar da maneira que se segue. Se todas as coisas se seguiram da perfeitíssi-
ma natureza de Deus, de onde provêm, então, tantas imperfeições na natu-
reza, tais como a deterioração das coisas, ao ponto de se tornarem
malcheirosas, a feiúra que causa repugnância, a confusão, o mal, o pecado,
etc.? Mas isso é fácil, como acabei de dizer, de ser refutado. Pois a perfei-
ção das coisas deve ser avaliada exclusivamente por sua própria natureza e
potência: elas não são mais ou menos perfeitas porque agradem ou desa-
gradem os sentidos dos homens, ou porque convenham à natureza humana
ou a contrariem. Àqueles que, entretanto, perguntarem por que Deus não
criou os homens de maneira que eles se conduzissem exclusivamente pela
via da razão, respondo simplesmente: não foi por ter faltado a Deus matéria
para criar todos os tipos de coisas, desde aquelas com o mais alto grau até
àquelas com o mais baixo grau de perfeição. Ou, para falar mais apropria-
damente: foi porque as leis da natureza, sendo tão amplas, bastaram para
produzir todas as coisas que possam ser concebidas por um intelecto infini-
to, como demonstrei na prop. 16.
Esses são os preconceitos que me propus assinalar. Se restarem ainda outros
do mesmo gênero, cada um poderá, com um pouco de reflexão, corrigi-los. "

Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras, Baruch de Spinoza.
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