sexta-feira, 26 de setembro de 2014

    Brasília canta em seu hino: "Brasília, capital da esperança!". Uma cidade que nasceu moderna e arrojada arquitetonicamente pelas mãos de Oscar Niemeyer, que era o ápice do ufanismo patriótico do final dos anos 50, a década em que o Brasil ganhava o mundial de futebol na Suécia e, nas ruas, entoava-se "a taça do mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa". Simbolizou as esperanças de um novo país, um país aberto ao "novo", novo que se espalharia fatalmente ao restante do país, em contraste com o "velho". Entretanto, hoje, Brasília como esse sonho está morta, ou melhor, nasceu natimorta, virou uma cidade como qualquer outra, talvez refletindo os próprios sonhos frustrados do Brasil. Por quê?
    Marilena Chaui, no clássico "Brasil, mito fundador e sociedade autoritária", apresenta a atmosfera daquela época, no que ela chama de "verdeamarelismo". De acordo com ela, tal ideologia era originalmente advogada pelos grandes proprietários rurais, e advogava o mito do "país essencialmente agrário", isto é, um país cuja função era puramente agrária, sem qualquer chance de um dia se industrializar e competir com os países centrais. Daí o descaso e mesmo a aversão do governo da República Velha a qualquer tipo de industrialização incipiente. Com a derrubada da classe ruralista do poder por Vargas e a industrialização acelerando-se de 1930 para cá, tal ideologia foi substituída pelo nacional-desenvolvimentismo. Agora, o Brasil não é mais um país agrário, que devia depender conscientemente dos grandes países industriais, o Brasil agora deveria se industrializar numa "dependência tolerada", isto é, devíamos aceitar "por enquanto" a dependência tecnológica até, um dia, alcançarmos o mesmo estágio deles. Daí Juscelino Kubitschek e seu incentivo ao grande capital internacional para se estabelecer por aqui, nomeadamente as indústrias automobilísticas, símbolos do progresso (ainda hoje).  
    Brasília, portanto, era o coroamento desse nacional-desenvolvimentismo, o símbolo visível do "Brasil Grande", o Brasil prestes a se tornar uma potência mundial. De fato, foi erguida no meio do nada uma cidade inteira, e num tempo quase inacreditável, cerca de três anos, o que mostrava claramente a superioridade e a força do brasileiro perante o mundo, assim dizia o discurso oficial. Porém, todo esse discurso era equivocado, senão cínico, desde o berço.
   Primeiro porque, na região onde a futura capital iria ser construída, não havia nenhum deserto despovoado, sem ocupação humana e, portanto sem história, havia sim cidades, na verdade três cidades Luziânia, a mais antiga, Formosa, Planaltina e um núcleo rural que, mais tarde também viraria cidade, Brazlândia. Estudos indicam que a região do Distrito Federal já registrava ocupação humana há pelo menos 2000 anos. No período colonial, a região era cortada pela Estrada Real, isto é, o caminho que ia das minas de ouro de Mato Grosso e Goiás rumo ao Rio de Janeiro. Foi exatamente por este movimento que criaram-se tais cidades, além de outras igualmente importantes como Pirenópolis e a própria cidade de Goiás, terra de Cora Coralina.
    Mas isso não é tudo: a própria cidade já nasceu reproduzindo exatamente o mesmo país autoritário e opressor do qual fazia parte. Nada havia de idílico por aqui: milhares de operários, chamados candangos, eram vítimas diárias de uma praticamente semi-escravidão por parte das construtoras e dos políticos, que frequentemente os obrigava a trabalhar inclusive de madrugada (lembrem-se que naquele tempo, a luz elétrica ainda era praticamente um artigo de luxo), em turnos que não raro iam pelo dia e a noite ininterruptamente. Dezenas morreram em virtude das péssimas condições de trabalho, os sobreviventes (e aqui vai meu testemunho pessoal, eu, neto desses candangos) relatavam que era frequente operários caírem de dezenas de metros de altura e, assim que isso acontecia, os capatazes pegavam os corpos despedaçados dos infelizes, colocavam em carrinhos de mão e sepultavam em local ignorado, possivelmente onde hoje se localiza o bairro chamado Asa Norte, tal como os nazistas apenas alguns anos antes. Há inclusive lendas populares a relatarem que muitos eram simplesmente colocados nas paredes dos prédios tal como o Congresso Nacional e ali mesmo concretados e "sepultados". Mas não pensem que os candangos aceitavam tal coisa passivamente: das revoltas operárias, a mais famosa, chamada postumamente de "massacre da Pacheco Fernandes" (pois este era o nome de uma das construtoras) colocou em evidência toda a mentira do país ufanista. Nunca ouviu falar dela nos livros de história? é claro, o caso foi abafado rapidamente, e apenas sobrevive nas memorias dos feridos e sobreviventes. Ignora-se o quantidade de mortos mas, pelo testemunho deles, que sempre falam em "metralhadoras" e "caminhões-caçamba" para transportar os mortos, certamente não foram poucos. 
    Logo após a inauguração da "Capital da Esperança", o mundo inteiro prestou tributo à cidade nascedoira, o símbolo de uma nova era. A classe dominante brasileira orgulhou-se imensamente de "seu" feito extraordinário, como se fossem eles a colocarem a mão na massa. Era preciso agora colocar o plano em marcha. E qual era esse plano? muito simples: os operários, todos eles, deviam voltar para suas terras, e deixarem Brasília, porque no esquema a cidade foi feita unicamente para essa mesma classe dominante. Pobres, apenas os serviçais que trabalhassem para eles e fossem estritamente necessários. Ninguém pensou em como alojar os candangos trabalhadores DEPOIS da construção, pois realmente levavam a sério um plano tão ridículo, como se as pessoas fizessem suas vidas durante três anos e, do nada, largassem tudo apenas porque eles queriam. É nesse momento que o sonho de Brasília começou a ruir: os candangos resistiram o quanto puderam aos massacres e genocídios dessa elite para continuarem morando nos mesmos barracos, pejorativamente chamados de "invasões", que nada mais eram que os antigos acampamentos dos candangos enquanto construíam os prédios. Dezenas foram mortos e milhares foram expulsos, mas também milhares resistiram (e estão até hoje, formando bairros como Vila Planalto e Vila Telebrasília)  até que, por fim o governo, já o militar instalado a partir de 64, reconheceu que, tinha que ceder a tanta pressão popular, e começou a oferecer remanejamento aos antigos candangos e suas famílias para novas cidades, chamadas "cidades-satélites". Para lá foram (ou melhor, foram obrigados a ir) e enfim puderam ter seu cantinho. MAS havia um porém: o Plano Piloto (isto é, Brasília propriamente dita, o "avião" que aparece no mapa) devia ser reservado única e exclusivamente à classe rica, dito de outro modo: as cidades-satélites foram construídas a dezenas de quilômetros do centro da cidade, localizando-se a 20, 30, 40 ou mesmo a 60 km. A ditadura militar deixou como herança um verdadeiro Muro de Berlim, a separar os ricos dos pobres, hierarquizando e segregando a população dentro do mesmo Distrito Federal, não muito diferente da política do Apartheid sul-africano, como claramente visto no documentário "invasores ou excluídos", feito alguns anos atrás pelo pessoal da UNB (Universidade Nacional de Brasília).
    Qual o resultado dessa política para Brasília? uma cidade segregada por cor, classes sociais, por educação, enfim por muralhas invisíveis de exclusão. Ao mesmo tempo que Brasília possui o bairro mais rico do Brasil e até mesmo do mundo, o Lago Sul, reduto dos políticos e empresários mais abastados, possuímos mesmo ao lado favelas gigantescas como o Sol Nascente, que recentemente se tornou a maior favela da América do Sul, superando a Rocinha, no Rio de Janeiro.  Um dos sintomas mais claros disso é o que, mesmo em Brasília, é visto como algo positivo, porém, a meu ver, é extremamente negativo: o tombamento de Brasília como patrimônio da humanidade. Por que negativo? porque Brasília foi criada para ser e encarnar o novo, e o novo, essencialmente, é mutável, pois sempre está aberto a novas experiências. Portanto, se Brasília é o local do novo enquanto experiência, assim deveria ser, um grande laboratório a céu aberto. Mas não foi assim: a classe rica, deslumbrada pela "obra de suas mãos", numa cidade criada para ela, em suma, "perfeita", quis cristalizar para todo o sempre tal maravilha. E o tombamento assim pode ser entendido: como a cristalização de um determinado momento histórico da cidade para todo o sempre. Quiseram acordar de manhã e contemplar a beleza da vista da cidade. Só existe um porém: para desfrutarem da bela vista, era preciso retirar tudo que de desagradável pudesse maculá-la. E nada macula mais uma bela vista do que a visão terrífica de favelas. Solução? disse acima: construíram as satélites bem longe das vistas, a quilômetros e quilômetros de distância, aonde eles não pudessem ser vistos. Foram todos "escondidos". Uma verdadeira "limpeza étnica". De posse da arma do tombamento, agora tinham legitimidade para combater o avanço inevitável das favelas sobre a "beleza arquitetônica" da Capital da Esperança, e expulsá-las o mais longe possível. O tombamento, portanto, é um instrumento que visa auxiliar a guerra social e o extermínio (em todos os sentidos: educacional, intelectual, cultural etc) da periferia pela playboyzada.
    A cristalização de Brasília para atender os desejos da classe dominante, ignorando completamente as consequências futuras de tal desejo insano, só poderia levar a um resultado, constatado pela CODEPLAN (Companhia de Planejamento do DF): a imensa pressão populacional sobre o Distrito Federal. Pelos planos de Lúcio Costa, a previsão é que Brasília não tivesse mais do que 500 mil habitantes no ano 2000. Em 2013, o DF sozinho possui mais de 2 milhões e, se juntar com o "Entorno", isto é, as cidades goianas fora do território do Distrito Federal, dá seguramente mais de 3 milhões. E, segundo a CODEPLAN, apenas dentro do território do DF, 80% das habitações são "irregulares", um eufemismo para invasão de áreas públicas e parcelamento de áreas particulares, sem qualquer tipo de estudo de impacto ambiental ou um mínimo de planejamento urbano decente. A cristalização da cidade para que uma minúscula parcela pudesse aproveitá-la, ignorando os desejos e necessidades da imensa maioria invisibilizada, ou melhor, existente apenas quando precisa se deslocar mais de 100 km todos os dias para ir trabalhar no único lugar onde há trabalho, o centro de Brasília, gerando engarrafamentos gigantescos de manhã e à noite (um dia, Brasília foi dita como "a cidade que não tinha engarrafamentos", e é curioso notar como volta e meia sempre surge alguém a dizer que a culpa é dos pobres que "agora acham que podem comprar carro") criou uma verdadeira tragédia. Valparaíso, uma cidade do entorno, em uma recente reportagem, foi apontada como a região mais violenta do mundo, superando mesmo a América Central com seus índices assustadores de homicídios. Muito longe do utópico sonho de "Brasília, Capital da Esperança".
    Como se pode ver, o sonho dourado, no qual Brasília era a cereja no bolo, já não existe mais. Brasília, longe de representar um novo Brasil, agora está a caminho, se já não o fez, de se tornar como qualquer outra grande cidade brasileira, mergulhada na desigualdade e na violência social entre as classes. De qualquer forma, era impossível fazer algo novo com uma mentalidade antiga, uma mentalidade fortemente autoritária e conservadora herdado do nosso passado colonial, tal como Raimundo Faoro disse em "Os Donos do Poder", "colocando vinho novo em odres velhos", como diz a bíblia. Brasília fracassou e, com ela, o Brasil. Mas será o fracasso permanente? não. O fracasso faz parte da vida. Ele deve servir como lição para o futuro.

"Lembre-se dos dois benefícios do fracasso. Primeiro, se você fracassa, você aprende o que não funciona; e segundo, o fracasso dá a você a oportunidade para tentar um novo caminho."

Roger Von Oech

Fontes:

CHAUI, Marilena. Brasil, Mito fundador e sociedade autoritária.

O massacre da Pacheco Fernandes. Disponível em: <http://doc.brazilia.jor.br/Construcao/GEB-massacre-Pacheco-Fernandes.shtml>

Invasores ou excluídos completo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ic3Vms_4fDQ>.

Cidades do Entorno estão entre as mais perigosas do Brasil. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2013/07/18/interna_cidadesdf,377796/cidades-do-entorno-do-df-estao-entre-as-mais-perigosas-do-brasil.shtml>

Quase 80% das casas são irregulares. Disponível em: <http://www.jornaldebrasilia.com.br/noticias/cidades/500544/quase-80-das--casas-sao---irregulares/>

Fantástico do dia 29/05, Valparaíso de Goiás, entre as mais violentas do mundo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fNQfnzEChno>



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