sexta-feira, 3 de julho de 2015


GUERNICA

"Dir-lhes-ás: juro por mim mesmo, diz o Senhor, tratar-vos-ei como vos ouvi dizer. Vossos cadáveres cairão nesse deserto. Todos vós que fostes recenseados da idade de vinte anos para cima, e que murmurastes contra mim, não entrareis na terra onde jurei estabelecer-vos, exceto Caleb, filho de Jefoné, e Josué, filho de Nun. Todavia, introduzirei nela os vossos filhinhos, dos quais dizíeis que seriam a presa do inimigo, e eles conhecerão a terra que desprezastes. Quanto a vós, os vossos cadáveres ficarão nesse deserto, onde os vossos filhos guardarão os seus rebanhos durante quarenta anos, pagando a pena de vossas infidelidades, até que vossos cadáveres apodreçam no deserto. Explorastes a terra em quarenta dias; tantos anos quantos foram esses dias pagareis a pena de vossas iniqüidades, ou seja, durante quarenta anos, e vereis o que significa ser objeto de minha vingança. Eu, o Senhor, o disse. Eis como hei de tratar essa assembléia rebelde que se revoltou contra mim. Eles serão consumidos e mortos nesse deserto!”

Êxodo 14, 28 - 35.

Década de 80. A chamada década perdida. E o nome é elogioso: Nessa década, o Brasil não se perdeu. Foi DESTRUÍDO. Teve o pescoço partido tal como Seyia na guerra galáctica. Quebrou-se em mil pedaços, como uma bola de cristal jogada ao chão. Foi arrasado, devastado, como um país que se rendeu ao final de uma longa guerra sangrenta, algo somente comparável ao que os alemães chamam de Stunde Null (zero hora em alemão), nome dado à meia-noite do dia 08 de maio de 1945, o dia em que a capitulação das forças nazistas entrou em vigor. Um país em ruínas. (Conferir: http://www.valor.com.br/…/278…/mae-de-todas-crises-do-brasil).
Mas as consequências econômicas, embora importantes e sempre lembradas em primeiro lugar quando recorda-se esse tempo, nada são perante as consequências sociais dessa matança. Refiro-me à geração de crianças e jovens nascidas nessa época, vítimas traumatizadas das maiores taxas de desnutrição infantil do mundo, da maior desigualdade social do planeta, de uma das formas mais violentas de racismo do globo, vítimas de altíssimas taxas de trabalho escravo infantil desde o nascimento, obrigadas a beberem lama de poças d'água compartilhados com cães sarnentos e ratazanas do tamanho de gatos, vindos diretamente de bueiros da casa dos playboys, e a brincarem de futebol em lixões, entre montes de lixo hospitalar e produtos radioativos como césio 137, a aspirar desde bebês o ar carregado de poeira vermelha das vielas que um dia seriam conhecidas como ruas, obrigadas a terem como almoço e janta, além da farinha cozinhada pela mãe, a refeição da escola, mas apenas quando os políticos não haviam-nas furtado para comprar um carro zero KM como presente de aniversário de 18 anos do futuro genocida hoje no congresso nacional e na FIESP, isto é, quase nunca. Esta geração, a geração a qual ninguém precisa lhes dizer o que é o inferno porque já o viram com seus próprios olhos, esta geração é a minha geração, a que hoje vai lá pelos 30 e tal anos, solteiros, casados ou separados a algum tempo e com filhos ainda muito pequenos. É esta geração que está atualmente no comando dos destinos do país, não na política, claro, mas trabalhando, pagando seus impostos, apresentando programas de TV, dando aulas em escolas públicas e privadas, cantando em shows e casas noturnas, compondo músicas, fazendo trabalhos voluntários, escrevendo livros, artigos de jornal, fazendo pães quentes toda manhã na padaria, atendendo os clientes no bordel, indo atrás de bandidos em viaturas toda noite nas ruas, colocando capuzes e o ferro na cinta para roubar e sequestrar na madrugada com os parças, pedindo esmolas nas ruas, esperando o ônibus 4 da manhã na paragem, durmindo nos engarrafamentos dentro deles na volta para casa. As coisas aparentemente parecem normais e rotineiras, como sempre foram. Mas não são.
Não conseguimos ver agora, mas aquelas marcas deixadas pela década perdida foram profundas, muito mais do que conseguimos imaginar. Somos todos uma geração TRAUMATIZADA pela fome, pela peste e pela guerra, as três pragas simbólicas do apocalipse, somos diferentes de todas as outras. Somos todos uma geração narcisista, egoísta, personalista. Uma geração profundamente abalada pelas pancadas violentíssimas da vida, por isso pessimista e fatalista. Uma geração que cresceu vendo os maus-exemplos triunfarem sobre os bons. Aliás, é melhor dizer: uma geração que cresceu sem ver exemplo algum, nem de bom nem de mal. Apenas o Nada. Uma geração que cedo descobriu que estudar de nada vale, pois por mais que se estude e se esforce, jamais subirá na vida se você não tiver uma "peixada", bons contactos e um padrinho poderoso a dar-lhe apoio. Uma geração que, por isso, aprendeu a desprezar o estudo como algo de alérgico, de ruim, de bastardo, de inútil e, como brinde, também aprendeu a desprezar o senso crítico, por culpa própria, mas muito mais por culpa de um plano milimetricamente calculado e executado pela proibição da filosofia e sociologia na educação, para que em seu lugar entrasse a Educação Moral e Cívica, trunfo mais poderoso que a doente ditadura militar, na época apenas pressentindo seu fim, conseguiu preservar incólume até bastante recentemente, mesmo depois de já estarmos numa democracia há anos. Uma geração contraditória em tudo. Uma geração Coca-Cola. Em suma, uma geração profundamente DESILUDIDA ("Meus herois morreram de overdose, meus inimigos estão no poder", Cazuza). Os destroços dos "sonhos, que foram todos vendidos, tão barato que eu nem acredito". Uma geração AMALDIÇOADA.
Mas AMALDIÇOADA por quem? por qual motivo? quem seria tal tirano cruel e desumano, a condenar uma geração inteira a APODRECER NO DESERTO? seria esta MALDIÇÃO justa para seres inocentes que apenas tiveram o azar de nascer na hora errada, na HORA DA ESTRELA (Clarice Lispector)? Não há respostas. Apenas o eco de nossas próprias vozes, nos rochedos, ao longe [....].
Estamos condenados a morrer, a morrer "neste vasto e terrível deserto, cheio de serpentes ardentes e escorpiões, terra árida e sem água" (Deuteronômio 8, 15). Todos nós. Ninguém escapará. "Todavia, introduzirei nela os vossos filhinhos, dos quais dizíeis que seriam a presa do inimigo, e eles conhecerão a terra que desprezastes. " Sim, serão nossos filhinhos pequenos de hoje que verão a Terra Prometida, a terra onde mana leite e mel. Não nós. Serão eles, seus netos e tataranetos que, um dia, verão um país muito melhor, mais justo e mais humano. Um país em que um homossexual não mais será assassinado a sangue frio com uma barra de ferro por andar de mãos dadas com o namorado pela madrugada. Um país onde os assassinos não serão carregados em triunfo pelas ruas ao serem absolvidos por inexistir a Lei contra a Homofobia. Um país em que você não será assassinada pelo outrora grande amor de sua vida com um faca, que ele a usará para desossá-la e jogar seus restos mortais na represa. Um país onde as filhas desta mulher não crescerão ouvindo que "mulher que apanha do marido é vagabunda, é porque gosta de apanhar". Um país em que você não será torturado e esquartejado ao voltar do serviço de pedreiro porque a polícia achou que vocẽ era bandido por causa da sua cor. Um país onde a mídia não terá programas em horário nobre louvando a ação dos racistas com o jingle "bandido bom é bandido morto." Mas, para que isso aconteça, é preciso antes pavimentar o caminho para que eles encontrem tudo encaminhado na medida do possível quando passarmos o bastão. É preciso manter a chama que Prometeu deu-nos, o objeto sagrado furtado aos deuses, todos nós a quem nos foi dado ver de longe a Terra Prometida, como Moisés, a nós cremos nos direitos humanos. É preciso terminar nossa missão como Aioros terminou, depois de enfrentar aqueles que pretendiam matar a Deusa da Sabedoria, da Coragem, da Justiça e da Inspiração:
- As forças do Mal estão no santuário, e juraram matar este ser inocente, proteja-o!
- Arrisquei minha vida ao trazer o bebê até aqui [...], muitos dos cavaleiros, fascinados pelo poder do Mal, se puseram à disposição do novo Mestre [...] eu não poderei ir mais longe [...], por favor, cuide dessa menina até ela crescer [....], esta menina é a reencarnação da deusa Athena que Deus envia sempre que o Mal domina o mundo [...] mais cedo ou mais tarde, cavaleiros muito corajosos vão lutar ao lado da deusa Athena para garantir a segurança dela [...] eles lutarão até a morte para salvar o planeta dos horrores que o ameaçam [...] deverão esforçar-se sem descanso para que sejam dignos do nome de Cavaleiros do Zodíaco, e mereçam um dia vestir a armadura de ouro....
Quanto a nós, aqueles que possuem consciência da terrível dor que trazemos no peito, só nos resta fazer como Moisés:
"Subiu Moisés das planícies de Moab ao monte Nebo, ao cimo do Fasga, defronte de Jericó. O Senhor mostrou-lhe toda a terra, desde Galaad até Dã, todo o Neftali, a terra de Efraim e de Manassés, todo o território de Judá até o mar ocidental, o Negeb, a planície do Jordão, o vale de Jericó, a cidade das palmeiras, até Segor. O Senhor disse-lhe: Eis a terra que jurei a Abraão, a Isaac e a Jacó dar à sua posteridade. Viste-a com os teus olhos, mas não entrarás nela. E Moisés, o servo do Senhor, morreu ali na terra de Moab, como o Senhor decidira. E ele o enterrou no vale da terra de Moab, defronte de Bet-Fogor, e ninguém jamais soube o lugar do seu sepulcro. Moisés tinha cento e vinte anos no momento de sua morte: sua vista não se tinha enfraquecido, e o seu vigor não se tinha abalado." (Deuteronômio 34, 1 - 7). "Cobriram-lhe as trevas os olhos" (Ilíada).

Eduardo Viveiros, Filósofo.

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