“E preciso se representar
uma
grande cidade francesa no final do século XVIII, entre 1750 e
1780, não como uma unidade
territorial, mas como multiplicidades
emaranhadas de territórios heterogêneos e poderes rivais.
Paris, por exemplo, não
formava uma unidade territorial, uma região em que se exercia um
único poder. Mas um conjunto de
poderes senhoriais detidos por leigos, pela Igreja, por comunidades religiosas e corporações,
poderes estes com autonomia e jurisdição próprias. E, além disso,
ainda existiam os representantes
do poder estatal: o representante do rei, o intendente de polícia,
os representantes dos poderes
parlamentares. O rio Sena, por exemplo, e suas margens, estava sob a soberania do prévôt des
marchands. Mas bastava ultrapassar essas margens para se estar sob outra jurisdição, a do
lugar−tenente de polícia ou a do parlamento.
Ora, na segunda metade do
século XVIII, se colocou o problema da unificação do poder
urbano. Sentiu−se necessidade, ao
menos nas grandes cidades, de constituir a cidade como unidade, de organizar o corpo urbano de
modo coerente, homogêneo, dependendo de um poder único e bem regulamentado.
E isso por várias razões.
Em primeiro lugar, certamente, por razões econômicas. Na medida em que a cidade se torna um
importante lugar de mercado que unifica as relações comerciais,
não simplesmente a nível de uma
região, mas a nível da nação e mesmo internacional, a
multiplicidade
de jurisdição e de poder
torna−se intolerável. A indústria nascente, o fato de que a
cidade não é somente um lugar de mercado,
mas um lugar de produção, faz com que se recorra a mecanismos de regulação homogêneos e
coerentes.
A segunda razão é
política. O desenvolvimento das cidades, o aparecimento de uma
população operária pobre que vai
tornar−se, no século XIX, o proletariado, aumentará as tensões
políticas no interior da cidade. As
relações entre diferentes pequenos grupos − corporações,
ofícios, etc.−, que se opunham uns aos outros,
mas se equilibravam e se neutralizavam, começam a se simplificar em uma espécie de afrontamento
entre rico e pobre, plebe e burguês, que se manifesta através de agitações e sublevações
urbanas cada vez mais numerosas e freqüentes. As chamadas revoltas de subsistência, o fato de
que, em um momento de alta de preços ou baixa de salários, os mais pobres, não mais podendo se
alimentar, saqueiam celeiros, mercados, docas e entrepostos, são
fenômenos que, mesmo não
sendo inteiramente novos, no século XVIII, ganham intensidade cada vez maior e conduzirão às
grandes revoltas contemporâneas da Revolução Francesa.
De maneira esquemática
pode−se dizer que até o século XVII, na Europa, o grande perigo
social vinha do campo. Os
camponeses paupérrimos, no momento de más colheitas ou dos
impostos, empunhavam a foice e iam
atacar os castelos ou as cidades. As revoltas do século XVII foram revoltas camponesas. As
revoltas urbanas nelas de incluíam. No final do século XVIII, ao
contrário,
as revoltas camponesas
entram em regressão, acalmam−se em conseqüência da elevação
do nível de vida dos
camponeses e a revolta urbana torna−se cada vez mais freqüente com
a formação de uma plebe em
vias de se proletarizar. Daí a necessidade de um poder político
capaz de esquadrinhar esta
população urbana.
E então que aparece e se
desenvolve uma atividade de medo, de angústia diante da cidade.
Cabanis, filósofo do final
do século XVIII, dizia, por exemplo, a respeito da cidade: "Todas
as vezes que homens se reúnem, seus
costumes se alteram; todas as vezes que se reúnem em lugares fechados, se alteram seus
costumes e sua saúde". Nasce o que chamarei medo urbano, medo
da cidade, angústia diante da
cidade que vai se caracterizar por vários elementos: medo das
oficinas e
fábricas que estão se
construindo, do amontoamento da população, das casas altas demais,
da população numerosa demais;
medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais
numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; medo dos esgotos, das caves sobre as quais são
construídas as casas que estão sempre correndo o perigo de
desmoronar.
Tem−se, assim, certo
número de pequenos pânicos que atravessaram a vida urbana das
grandes cidades do século XVIII,
especialmente de Paris. Darei o exemplo do "Cemitério dos
Inocentes" que existia no centro de
Paris, onde eram jogados, uns sobre os outros, os cadáveres das
pessoas que não eram bastante ricas
ou notáveis para merecer ou poder pagar um túmulo individual. O
amontoamento no interior do
cemitério era tal que os cadáveres se empilhavam acima do muro do claustro e caíam do lado de
fora. Em torno do claustro, onde tinham sido construídas casas, a pressão devido ao
amontoamento de cadáveres foi tão grande que as casas desmoronaram
e os esqueletos se espalharam em
suas caves provocando pânico e talvez mesmo doenças. Em todo caso, no espírito das
pessoas da época, a infecção causada pelo cemitério era tão
forte que, segundo elas, por causa da
proximidade dos mortos, o leite talhava imediatamente, a água apodrecia, etc. Este pânico
urbano é característico deste cuidado, desta inquietude político−sanitária que
se forma à medida em que se desenvolve o tecido urbano.
Para dominar esses fenômenos
médicos e políticos que inquietam tão fortemente a população
das cidades, particularmente a
burguesia, que medidas serão tomadas? Intervém um curioso
mecanismo que se podia esperar, mas que não entra no esquema
habitual dos historiadores da
medicina. Qual foi a reação da classe burguesa que, sem exercer o
poder, detido pelas autoridades
tradicionais, o reivindicava? Ela lançou mão de um modelo de
intervenção muito bem estabelecido mas
raramente utilizado. Trata−se do modelo médico e político da
quarentena.
Desde o fim da Idade Média,
existia, não só na França mas em todos os países da Europa, um regulamento de urgência,
como se chamaria em termos contemporâneos, que devia ser aplicado quando a peste ou uma doença
epidêmica violenta aparecesse em uma cidade. Em que consistia
esse plano de urgência?
1o) Todas as pessoas deviam
permanecer em casa para serem localizadas em um único lugar. Cada família em sua casa e,
se possível, cada pessoa em seu próprio compartimento. Ninguém se movimenta.
2o) A cidade devia ser
dividida em bairros que se encontravam sob a responsabilidade de uma autoridade designada para
isso. Esse chefe de distrito tinha sob suas ordens inspetores que deviam durante o dia
percorrer as ruas, ou permanecer em suas extremidades, para verificar
se alguém saia de seu local.
Sistema, portanto, de vigilância generalizada que dividia,
esquadrinhava
o espaço urbano.
3o) Esses vigias de rua ou
de bairro deviam fazer todos os dias um relatório preciso ao
prefeito da cidade para informar tudo
que tinham observado. Sistema, portanto, não somente de vigilância, mas de registro
centralizado.
4o) Os inspetores deviam
diariamente passar em revista todos os habitantes da cidade. Em
todas as ruas por onde passavam,
pediam a cada habitante para se apresentar em determinada janela, de modo que pudessem
verificar, no registro−geral, que cada um estava vivo. Se, por
acaso, alguém não aparecia,
estava, portanto, doente, tinha contraído a peste era preciso ir
buscá−lo e
colocá−lo fora da cidade
em enfermaria especial. Tratava−se, portanto, de uma revista
exaustiva dos vivos e dos mortos.
5o) Casa por casa, se
praticava a desinfecção, com a ajuda de perfumes que eram
queimados. Esse esquema da quarentena
foi um sonho político−médico da boa organização sanitária das cidades, no século XVIII.
Houve fundamentalmente dois grandes modelos de organização médica na história ocidental: o
modelo suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste. Na
Idade Média, o leproso era alguém
que, logo que descoberto, era expulso do espaço comum, posto fora dos muros da cidade, exilado
em um lugar confuso onde ia misturar sua lepra à lepra dos outros.
O mecanismo da exclusão era o
mecanismo do exílio, da purificação do espaço urbano.
Medicalizar alguém era mandá−lo para
fora e, por conseguinte, purificar os outros. A medicina era uma
medicina de exclusão. O
próprio internamento dos loucos, malfeitores, etc., em meados do
século XVII, obedece ainda a esse
esquema. Em compensação, existe um outro grande esquema político−médico que foi
estabelecido, não mais contra a lepra, mas contra a peste. Neste
caso, a medicina não exclui, não
expulsa em uma região negra e confusa. O poder político da
medicina consiste em distribuir os
indivíduos uns ao lado dos outros, isolá−los, individualizá−los,
vigiá−los um a um, constatar o estado
de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço
esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por
um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos. Tem−se, portanto, o velho
esquema médico de reação á lepra que é de exclusão, de exílio,
de forma religiosa, de
purificação da cidade, de bode expiatório. E o esquema suscitado
pela peste; não mais a exclusão, mas o
internamento; não mais o agrupamento no exterior da cidade, mas, ao contrário, a análise
minuciosa da cidade, a análise individualizante, o registro
permanente; não mais um modelo religioso,
mas militar. É a revista militar e não a purificação religiosa
que serve,
fundamentalmente, de modelo
longínquo para esta organização político−médica.
A medicina urbana com seus
métodos de vigilância, de hospitalização, etc., não é mais do
que um aperfeiçoamento, na segunda
metade do século XVIII, do esquema político−médico da
quarentena que tinha sido realizado no
final da Idade Média, nos séculos XVI e XVII. A higiene pública é
uma variação sofisticada do
tema da quarentena e é dai que provém a grande medicina urbana que aparece na segunda metade do
século XVIII e se desenvolve sobretudo na França.Em que consiste essa
medicina urbana?
Essencialmente em três
grandes objetivos:
1o) Analisar os lugares de
acúmulo e amontoamento de tudo que, no espaço urbano, pode provocar doença, lugares de
formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos. São essencialmente os
cemitérios. E assim que aparecem, em torno dos anos 1740 − 1750,
protestos contra o amontoamento dos
cemitérios e, mais ou menos em 1780, as primeiras grandes emigrações de cemitérios
para a periferia da cidade. E nesta época que aparece o cemitério
individualizado, isto é, o
caixão individual, as sepulturas reservadas para as famílias, onde
se escreve o nome de cada um.
Crê−se, freqüentemente,
que foi o cristianismo quem ensinou a sociedade moderna o culto dos mortos. Penso de maneira
diferente. Nada na teologia cristã levava a crer ser preciso
respeitar o cadáver enquanto tal. O
Deus cristão é bastante Todo−Poderoso para poder ressuscitar os
mortos mesmo quando misturados em
um ossuário. Em compensação, a individualização do cadáver, do caixão e do túmulo aparece
no final do século XVIII por razões não teológico−religiosas de
respeito ao cadáver, mas
político−sanitárias de respeito aos vivos. Para que os vivos
estejam ao abrigo da influência nefasta dos
mortos, é preciso que os mortos sejam tão bem classificados quanto
os vivos ou melhor, se possível. E
assim que aparece na periferia das cidades, no final do século
XVIII, um verdadeiro exército de
mortos tão bem enfileirados quanto uma tropa que se passa em
revista. Pois é preciso esquadrinhar,
analisar e reduzir esse perigo perpetuo que os mortos constituem.
Eles vão, portanto, ser
colocados no campo e em regimento, uns ao lado dos outros, nas
grandes planícies que circundam as
cidades. Não uma idéia cristã, mas
médica, política. Melhor prova é que, quando se pensou na
transferência do Cemitério dos Inocentes,
de Paris, apelou−se para Fourcroy, um dos grandes químicos do
final do século XVIII, a fim de
saber o que se devia fazer contra a influência desse cemitério. E
o
químico que pede a
transferência do cemitério. E o químico, enquanto estuda as
relações entre o organismo vivo e o ar que se
respira, que é encarregado desta primeira policia médica urbana sancionada pelo exílio dos
cemitérios. Outro exemplo é o caso dos matadouros que também estavam situados no centro
de Paris e que se decidiu, depois de consultada a Academia de Ciências, colocar nos
arredores de Paris, a oeste, em La Villette. Portanto, o primeiro
objetivo da medicina urbana é a análise das regiões de
amontoamento, de confusão e de perigo no
espaço urbano.
2o) A medicina urbana tem um
novo objeto: o controle da circulação. Não da circulação dosindivíduos, mas das coisas
ou dos elementos, essencialmente a água e o ar. Era uma velha crença do
século XVIII que o ar tinha uma influência direta sobre o
organismo, por veicular miasmas ou porque
as qualidades do ar frio, quente, seco ou úmido em demasia se comunicavam ao organismo ou,
finalmente, porque se pensava que o ar agia diretamente por ação mecânica, pressão direta
sobre o corpo. O ar, então, era considerado um dos grandes fatores patógenos. Ora, como manter
as qualidades do ar em uma cidade, fazer com que o ar seja sadio, se ele existe como que
bloqueado, impedido de circular, entre os muros, as casas, os
recintos, etc? Dai a necessidade de abrir
longas avenidas no espaço urbano, para manter o bom estado de saúde da população.
Vai−se, portanto, pedir a comissões da Academia de Ciências, de
médicos,
de químicos, etc., para
opinar sobre os melhores métodos de arejamento das cidades. Um dos casos mais conhecidos foi a
destruição de casas que se encontravam nas pontes das cidades. Por causa do amontoamento, do
preço do terreno, durante a Idade Média e mesmo nos séculos XVII
e XVIII, casas de moradia
foram construídas nas pontes. Considerou−se, então, que essas
casas
impediam a circulação do
ar em cima dos rios, retinham ar úmido entre suas margens e foram sistematicamente
destruídas. Marmontel chegou mesmo a calcular quantas mortes foram economizadas com a
destruição de três casas em cima do Pont Neuf quatrocentas pessoas
por ano, vinte mil em cinqüenta
anos, etc. Organizam−se, portanto, corredores de ar, como também corredores de água. Em
Paris, em 1767, de modo bastante precoce, um arquiteto chamado
Moreau propôs um plano
diretor para a organização das margens e ilhas do Sena que foi
aplicado até o começo do século
XIX, entendendo−se que a água devia, com sua corrente, lavar a
cidade dos miasmas que, sem isso,
aí permaneceriam. A medicina urbana tem,
portanto, como segundo objeto o controle e o estabelecimento de uma
boa circulação da água e do
ar.
3o) Outro grande objeto da
medicina urbana é a organização do que chamarei distribuições e seqüências. Onde colocar
os diferentes elementos necessários à vida comum da cidade? E o problema da posição
recíproca das fontes e dos esgotos ou dos barcos−bombeadores e
dos barcos−lavanderia. Como
evitar que se aspire água de esgoto nas fontes onde se vai buscar
água de beber; como evitar que o
barco−bombeador, que traz água de beber para a população, não
aspire água suja pelas
lavanderias vizinhas? Essa desordem foi considerada, na segunda
metade do século XVIII,
responsável pelas principais doenças epidêmicas das cidades. Daí
a elaboração do 1o plano hidrográfico de
Paris, em 1742, intitulado Exposé d'un plan hidrographíque de la
ville de Paris, primeira pesquisa
sobre os lugares em que se pode dragar água que não tenha sido
suja
pelos esgotos e sobre
policia da vida fluvial. De tal modo que em 1789, quando começa a Revolução Francesa, a
cidade de Paris já tinha sido esquadrinhada por uma polícia médica
urbana que tinha estabelecido o fio
diretor do que uma verdadeira organização de saúde da cidade
deveria realizar.
Um ponto, entretanto, não
tinha sido tocado até o final do século XVIII, que diz respeito ao
conflito entre a medicina e os outros
tipos de poder: a propriedade privada. A política autoritária com respeito á propriedade
privada, à habitação privada não foi esboçada no século XVIII a
não ser sob um aspecto: as caves. As
caves, que pertencem ao proprietário da casa, são regulamentadas quanto a seu uso e quanto às
galerias que podem ser construídas. Este é o problema da
propriedade do subsolo, no
século XVIII, colocado a partir da tecnologia mineira. A partir do momento em que se soube
construir minas em profundidade, colocou−se o problema de saber a quem elas pertenciam.
Elaborou−se uma legislação autoritária sobre a apropriação do
subsolo que
estipulava, em meados do
século XVIII, que o subsolo não pertencia ao proprietário do solo,
mas ao Estado e ao rei. Foi
assim que o subsolo privado parisiense foi controlado pelas
autoridades coletivas, enquanto a
superfície, ao menos no que concerne à propriedade privada, não o
foi. Os espaços comuns, os lugares
de circulação, os cemitérios, os ossuários, os matadouros foram controlados, o mesmo não
acontecendo com a propriedade privada antes do século XIX. A burguesia que, para sua
segurança política e sanitária, pretendia o controle da cidade,
não podia ainda contradizer a
legislação sobre a propriedade que ela reivindicava, procurava
estabelecer, e só conseguirá impor no
momento da Revolução Francesa. Daí, portanto, o caráter sagrado
da
propriedade privada e a
inércia de todas as políticas médicas urbanas com relação à
propriedade privada.
A medicalização da cidade,
no século XVIII, é importante por várias razões:
1o) Por intermédio da
medicina social urbana, a prática médica se põe diretamente em
contato com ciências extra−médicas,
fundamentalmente a química. Desde o período confuso em que
Paracelso e Van Helmont procuravam
estabelecer as relações entre medicina e química, não houve mais verdadeiras relações entre
as duas. Foi precisamente pela análise do ar, da corrente de ar,
das condições de vida e de
respiração que a medicina e a química entraram em contato.
Fourcroy e Lavoisier se interessaram
pelo problema do organismo por intermédio do controle do ar urbano.
A inserção da prática
médica em um corpus de ciência físico−química se fez por
intermédio da urbanização. A passagem
para uma medicina científica não se deu através da medicina
privada,
individualista, através de
um olhar médico mais atento ao indivíduo. A inserção da medicina
no funcionamento geral do
discurso e do saber científico se fez através da socialização da
medicina, devido ao estabelecimento de
uma medicina coletiva, social, urbana. A isso se deve a importância
da medicina urbana.
2o) A medicina urbana não é
verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma medicina das coisas:
ar, água, decomposições, fermentos; uma medicina das condições de vida e do meio de
existência. Esta medicina das coisas já delineia, sem empregar
ainda a palavra, a noção de meio
que os naturalistas do final do século XVIII, como Cuvier,
desenvolverão.
A relação entre organismo
e meio será feita simultaneamente na ordem das ciências naturais e
da medicina, por intermédio da
medicina urbana. Não se passou da análise do organismo à análise
do meio ambiente. A medicina
passou da análise do meio à dos efeitos do meio sobre o organismo
e finalmente à análise do
próprio organismo. A organização da medicina foi importante para
a
constituição da medicina
científica.
3o) Com ela aparece, pouco antes
da Revolução Francesa, uma noção que terá uma importância considerável para a
medicina social: a noção de salubridade. Uma das decisões logo
tomadas pela Assembléia Constituinte, em
1790 ou 1791, foi, por exemplo, a criação de comitês de
salubridade dos departamentos e
principais cidades. Salubridade não é a mesma
coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do meio e seus elementos constitutivos, que
permitem a melhor saúde possível. Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a
melhor saúde possível dos indivíduos. E é correlativamente a ela
que
aparece a noção de higiene
pública, técnica de controle e de modificação dos elementos
materiais do meio que são suscetíveis
de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde. Salubridade e insalubridade são o estado
das coisas e do meio enquanto afetam a saúde; a higiene pública −
no séc. XIX, a noção
essencial da medicina social francesa − é o controle
político−científico deste
meio.
Vê−se, assim, como se
está bastante longe da medicina de Estado, tal como é definida na Alemanha, pois se trata de
uma medicina muito mais próxima das pequenas comunidades, das cidades, dos bairros, como
também não é ainda dotada de nenhum instrumento especifico de poder. O problema da
propriedade privada, princípio sagrado, impede que esta medicina
seja dotada de um poder forte.
Mas, se ela perde em poder para a Staatsmedizin alemã, ganha certamente em fineza de
observação, na cientificidade das observações feitas e das
práticas estabelecidas. Grande parte
da medicina científica do século XIX tem origem na experiência
desta medicina urbana que se
desenvolve no final do século XVIII.
III − A terceira direção
da medicina social pode ser sucintamente analisada através do
exemplo inglês.
A medicina dos pobres, da
força de trabalho, do operário não foi o primeiro alvo da medicina
social, mas o último. Em primeiro
lugar o Estado, em seguida a cidade e finalmente os pobres e trabalhadores foram objetos
da medicalização. O que é característico da
medicina urbana francesa é a habitação privada não ser tocada e
o pobre, a plebe, o povo não
ser claramente considerado um elemento perigoso para a saúde da população. O pobre, o
operário, não é analisado como os cemitérios, os ossuários, os
matadouros,
etc.
Por que os pobres não foram
problematizados como fonte de perigo médico, no século XVIII? Existem várias razões para
isso: uma é de ordem quantitativa: o amontoamento não era ainda
tão grande para que a pobreza
aparecesse como perigo. Mas existe uma razão mais importante: é
que o pobre funcionava no
interior da cidade como uma condição da existência urbana. Os
pobres da
cidade eram pessoas que
realizavam incumbências, levavam cartas, se encarregavam de
despejar o lixo, apanhar móveis
velhos, trapos, panos velhos e retirá−los da cidade,
redistribui−los, vendê−los, etc. Eles
faziam parte da instrumentalização dá vida urbana. Na época, as
casas não eram numeradas, não havia
serviço postal e quem conhecia a cidade, quem detinha o saber
urbano em sua
meticulosidade, quem assegurava várias funções fundamentais da
cidade, como o transporte de água e a
eliminação de dejetos, era o pobre. Na medida em que faziam parte
da paisagem urbana, como os
esgotos e a canalização, os pobres não podiam ser postos em
questão, não podiam ser vistos como
um perigo. No nível em que se colocavam, eles eram bastante úteis.
Foi somente no segundo terço
do século XIX, que o pobre apareceu como perigo. As razões são várias:
1o) Razão política.
Durante a Revolução Francesa e, na Inglaterra, durante as grandes
agitações sociais do. começo do
século XIX, a população pobre tornou−se uma força política
capaz de se revoltar ou pelo menos, de
participar de revoltas.
2o) No século XIX
encontrou−se um meio de dispensar, em parte, os serviços prestados
pela população, com o
estabelecimento, por exemplo, de um sistema postal e um sistema de carregadores, o que produziu
uma série de revoltas populares contra esses sistemas que retiravam dos mais pobres o pão e a
possibilidade de viver.
3o) A cólera de 1832, que
começou em Paris e se propagou por toda a Europa, cristalizou em
torno da população proletária
ou plebéia uma série de medos políticos e sanitários. A partir
dessa época, se decidiu dividir o espaço
urbano em espaços pobres e ricos. A coabitação em um mesmo tecido urbano de pobres e ricos foi
considerada um perigo sanitário e político para a cidade, o que
ocasionou a organização de
bairros pobres e ricos, de habitações ricas e pobres. O poder
político começou então a atingir o
direito da propriedade e da habitação privadas. Foi este o momento
da grande redistribuição, no
II Império Francês, do espaço urbano parisiense.
Estas são as razões pelas
quais, durante muito tempo a plebe urbana não foi considerada um perigo médico e, a partir
do século XIX isso acontece.
É na Inglaterra, país em
que o desenvolvimento industrial, e por conseguinte o desenvolvimento
do proletariado, foi o mais
rápido e importante, que aparece uma nova forma de medicina social.
Isso não significa que não se
encontrem na Inglaterra projetos de medicina de Estado, de estilo
alemão, Chadwick, por exemplo, se
inspirou bastante nos métodos alemães para a elaboração de seus
projetos, em torno de 1840.
Além disso, Ramsay escreveu em 1846 um livro chamado Health and sickness of town populations
que retoma o conteúdo da medicina urbana francesa.
E essencialmente na Lei dos
pobres que a medicina inglesa começa a tornar−se social, na
medida em que o conjunto dessa
legislação comportava um controle médico do pobre. A partir do
momento em que o pobre se beneficia
do sistema de assistência, deve, por isso mesmo, se submeter a vários controles médicos.
Com a Lei dos pobres aparece, de maneira ambígua, algo importante
na
história da medicina
social: a idéia de uma assistência controlada, de uma intervenção
médica que é tanto uma maneira de
ajudar os mais pobres a satisfazer suas necessidades de saúde, sua pobreza não permitindo que
o façam por si mesmos, quanto um controle pelo qual as classes
ricas ou seus representantes no
governo asseguram a saúde das classes pobres e, por conseguinte, a proteção das classes
ricas. Um cordão sanitário autoritário é estendido no interior
das cidades entre ricos e pobres: os
pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou
sem grande despesa e os ricos
garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos originários
da
classe pobre.
Vê−se, claramente, a
transposição, na legislação médica, do grande problema político
da burguesia nesta época: a
que preço, em que condições e como assegurar sua segurança
política. A legislação médica
contida na Lei dos pobres corresponde a esse processo. Mas esta lei e
a assistência−proteção,
assistência−controle que ela implica, foi somente o primeiro
elemento de um
complexo sistema cujos
outros elementos só aparecem mais tarde, em torno de 1870, com os grandes fundadores da
medicina social inglesa, principalmente John Simon, que completaram
a legislação médica da Lei
dos pobres com a organização de um serviço autoritário, não de
cuidados médicos, mas de controle
médico da população.
Trata−se dos sistemas de
health service, de health officers que começaram na Inglaterra em
1875 e eram, mais ou menos, mil
no final do século XIX. Tinham por função:
1o) Controle da
vacinação, obrigando os diferentes
elementos da população a se vacinarem.
2o) Organização do
registro das epidemias e doenças capazes
de se tornarem epidêmicas, obrigando as pessoas à declaração de doenças perigosas.
3o)
Localização de lugares insalubres e eventual destruição desses
focos de
insalubridade. O health
service é o segundo elemento que prolonga a Lei dos pobres. Enquanto
a Lei dos pobres comportava um
serviço médico destinado ao pobre enquanto tal, o health service tem como características
não só atingir igualmente toda a população, como também, ser constituído por médicos
que dispensam cuidados médicos que não são individuais, mas têm
por objeto a população em
geral, as medidas preventivas a serem tomadas e, como na medicina urbana francesa, as coisas,
os locais, o espaço social, etc.
Ora, quando se observa como
efetivamente funcionou o health service vê−se que era um modo de completar, ao nível
coletivo, os mesmos controles garantidos pela Lei dos pobres. A
intervenção nos locais insalubres, as
verificações de vacina, os registros de doenças tinham de fato por
objetivo
o controle das classes mais
pobres.
E esta a razão pela qual o
controle médico inglês, garantido pelos health officers suscitou,
desde sua criação, uma série de
reações violentas da população, de resistência popular, de
pequenas insurreições anti−médicas
na Inglaterra da 2o metade do século XIX.
Essas resistências médicas
foram indicadas por Mckeown em uma série de artigos na revista Public Law, em 1967. Creio
que seria interessante analisar, não somente na Inglaterra, mas em diversos países do mundo,
como essa medicina, organizada em forma de controle da população pobre, suscitou
resistências. E, por exemplo, curioso constatar que os grupos de
dissidência
religiosa, tão numerosos
nos países anglo−saxões, de religião protestante, tinham
essencialmente por objetivo, nos séculos
XVII e XVIII, lutar contra a religião de Estado e a intervenção do
Estado em matéria religiosa. Ora,
o que reaparece, no século XIX, são grupos de dissidência
religiosa, de diferentes formas, em
diversos países, que têm agora por objetivo lutar contra a
medicalização, reivindicar o direito das
pessoas não passarem pela medicina oficial, o direito sobre seu
próprio corpo, o direito de viver,
de estar doente, de se curar e morrer como quiserem. Esse desejo de escapar da medicalização
autoritária é um dos temas que marcaram vários grupos
aparentemente
religiosos, com vida intensa
no final do século XIX e ainda hoje. Nos países católicos a
coisa foi diferente. Que significado tem a peregrinação de Lourdes,
desde o final do século XIX até
hoje, para os milhões de peregrinos pobres que ai vão todos os
anos, senão uma espécie de resistência
difusa à medicalização autoritária de seus corpos e doenças? Em
lugar de ver nessas práticas
religiosas um fenômeno residual de crenças arcaicas ainda não desaparecidas, não serão
elas uma forma atual de luta política contra a medicalização
autoritária, a socialização da medicina,
o controle médico que se abate essencialmente sobre a população pobre; não serão essas
lutas que reaparecem nessas formas aparentemente arcaicas, mesmo se seus instrumentos são
antigos, tradicionais e supõem um sistema de crenças mais ou menos abandonadas? O vigor dessas
práticas, ainda atuais, é ser uma reação contra essa social medicine, medicina dos
pobres, medicina a serviço de uma classe, de que a medicina social
inglesa é um exemplo.
De maneira geral, pode−se
dizer que, diferentemente da medicina urbana francesa e da medicina de Estado da Alemanha do
século XVIII, aparece, no século XIX e sobretudo na Inglaterra,
uma medicina que é
essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais
pobres para torná−las mais aptas ao
trabalho e menos perigosas às classes mais ricas. Essa fórmula da medicina
social inglesa foi a que teve futuro, diferentemente da medicina
urbana e
sobretudo da medicina de
Estado. O sistema inglês de Simon e seus sucessores possibilitou,
por um lado, ligar três coisas:
assistência médica ao pobre, controle de saúde da força de
trabalho e esquadrinhamento geral da
saúde pública, permitindo às classes mais ricas se protegerem dos perigos gerais. E, por outro
lado, a medicina social inglesa, esta é sua originalidade, permitiu
a
realização de três
sistemas médicos superpostos e coexistentes; uma medicina
assistencial destinada aos mais pobres,
uma medicina administrativa encarregada de problemas gerais como a vacinação, as epidemias,
etc., e uma medicina privada que beneficiava quem tinha meios para pagá−la. Enquanto o
sistema alemão da medicina de Estado era pouco flexível e a
medicina urbana francesa era um
projeto geral de controle sem instrumento preciso de poder, o
sistema inglês possibilitava a
organização de uma medicina com faces e formas de poder diferentes segundo se tratasse da
medicina assistencial, administrativa e privada, setores bem
delimitados que permitiram, durante o
final do século XIX e primeira metade do século XX, a existência
de um esquadrinhamento médico
bastante completo.
“
O Nascimento da Medicina
Social, Michel Foucault.