quinta-feira, 26 de junho de 2014

Ultramontanismo: as origens do neoconservadorismo no Brasil

Frequentemente, nos deparamos por aí com afirmações e linhas de pensamento que, à primeira vista, podem parecer produto de mentes insanas, psicopáticas ou simplesmente ignorantes. Assim, por exemplo, o pastor Marcos Feliciano e suas afirmações de que os africanos são um povo amaldiçoado por Deus através de Noé e que, portanto, esta é a causa das catástrofes e tragédias que se abatem diariamente por lá. Ou afirmações de um cara que não pouca gente louva como o maior filósofo brasileiro contemporâneo, inclusive significativamente parte do meio acadêmico, Olavo de Carvalho, que afirma que a teoria da gravitação universal está errada, inclusivamente sua irmã mais nova, a teoria da relatividade, que é o sol que gira em torno da terra, que a coca-cola é feita com fetos humanos, que é o PT é uma espécie de grande satã a la Khomeini, que há uma conspiração comunista mundial etc. Ou o Lobão, conhecido músico, que um dia desses disse que a ditadura militar arrancou apenas umas unhazinhas e já está, coisa de somenos importância. Para as pessoas que estudam e vão atrás pra saber das coisas, esses e outros elementos podem causar um choque porque, aparentemente, eles saíram do nada, são uma espécie de anomalia no mundo em que reinam os conceitos de democracia e direitos humanos, parecem ter saído diretamente da idade média, em suma, não deveriam existir. Mas acontece que não é bem assim.
Na verdade, essas linha de pensamento, que poderíamos perfeitamente chamar de conservadorismo, tem uma origem. Na verdade verdadeira, eles são os legítimos representantes de nosso passado, o qual tentamos esquecer a todo custo. Tudo começou lá atraś, com a Revolução Francesa. Ela foi o divisor de águas entre uma antiga e uma nova mentalidade. Escravidão, servidão, absolutismo monárquismo, discriminações raciais, étnicas, sociais, fanatismo religioso, tudo isso, visto como coisas naturais e ordenadas pela natureza e pelas divindades, começou um influxo lento, mas constante, castigado pelo bombardeamento de novas ideias de igualdade, liberdade, fraternidade, liberdade de expressão, de crença, de pensamento, de imprensa, de trabalho, de associação, de ir e vir, entre dezenas de outros direitos que, antes eram simplesmente impensáveis para nossos ancestrais. Ora, é evidente que nosso atual mundo tem muita coisa ruim, e muito daquelas antigas práticas está em plenos pulmões ao redor do mundo e mesmo no Brasil. Mas é inegável que, nos últimos 200 e tal anos, estamos incrivelmente melhores em nossas condições de vida que nossos tataravós.
A antiga linha de pensamento foi derrotada, mas não desapareceu. Continuou sobrevivendo em setores da sociedade fiéis, e agora saudosistas do antigo passado, romantizado e tratado como um período lindo e maravilhoso. Não é à toa que a expressão "no meu tempo não era assim" é frequentemente usada por seus adeptos ainda hoje. Um dos setores mais importantes, cujas ideias continuaram praticamente intactas, foi na religião cristã, protestantes e seus netos pentecostais, católicas e outras igrejas. Particularmente na igreja católica, esse conservadorismo se fortaleceu aos poucos, dado que uma das consequências da revolução foi a hostilidade frente a ela enquanto instituição, vista como anacrônica, ultrapassada e baluarte do antigo regime dos Bourbons (na França) e, portanto, a igreja tomou como inimigos mortais todas estas ideias novas, se jogando nos braços do conservadorismo sem qualquer exame crítico mais sério. Conservadorismo e doutrina católica se fundiaram numa simbiose. Foi nesse ambiente que surgiu, ou melhor, ressurgiu, um movimento dentro dela denominado Ultramontanismo. Esse movimento defendia que cabia à igreja se opor as todas estas ideias novas, entendidas como artifício e embustes do demônio, como guardiã da sã doutrina, identificada com o que de pior a igreja havia herdado em seus 2000 anos de história. Em suma, ela se entendia como estando em guerra contra um mundo em decadência, pecaminoso e dominado pelo diabo e suas "estradas para o inferno", como apropriadamente declarou Gregório XVI ao proibir ferrovias em Roma e nos Estados Pontifícios, e a única salvação era a própria igreja. Uma instituição em guerra contra o mundo moderno. Uma dessas ideias que herdou do império romano foi o conceito de monarquia absoluta, no qual a igreja funcionava hierarquicamente, de modo que havia alguém que estava no topo da hierarquia, aquele que julga a todos, e por ninguém é julgado, exceto por Deus mesmo. Esta pessoa é o Romano Pontífice, nome oficial do que conhecemos como "papa". Ele detém o poder total e absoluto sobre todos e cada um dos fiéis católicos. No século XIX, o século em que o ultramontanismo veio com força, a total centralização do poder papal foi sacramentada pelo concílio Vaticano I, que declarou o sumo pontífice como infalível, literalmente, em matérias doutrinárias da igreja. A situação, dentro da igreja católica, permanece exatamente igual desde esse tempo até os dias atuais.
Essa noção de "bastião contra o mundo moderno" calou fundo em países extremamente católicos como o Brasil, desde já acostumados ao secular absolutismo monárquico dos reis e do clero e seu violento autoritarismo. Mas o mundo não para, nem nunca parou, e a ciência e a tecnologica seguiram seu caminho, até chegarmos aos nossos moderníssimos celulares snapdragon, dual-core, quad-core, touchscreen etc. À medida que a tecnologia e a ciência foram tomando conta, seu antigo discurso de que tudo é do demônio, outrora tão persuassivo exatamente porque baseado na ignorância de como a natureza funcionava e na pura superstição, foi caindo não apenas em descrédito, mas também no ridículo, de modo que até mesmo eles, fustigados por todos os lados, acabaram aceitando que as ferrovias e a iluminação a gás não eram assim tão demoníacas como tinham suposto.
No Brasil, porém, esta forma de pensamento se expandiu para além da igreja católica, e se espalhou para outros setores da sociedade, entrando em simbiose com nosso conhecido pensamento racista e violentamente discriminatório e excludente, que separa rigidamente ricos e pobres, cada um seu lugar, sem qualquer chance de convivência entre um e outro exceto a relação patrão-empregado. Ela veio junto com o primeiro europeu que pisou por aqui mas, como o Brasil sempre imita o que vem de fora, rapidamente se espalhou por aqui e reforçou todos estes preconceitos que a classe dominante já nutria há tempos. É daí que saem todos aqueles que eu nomeei no primeiro parágrafo, além de Maria Marin, presidente da CBF, Pondé, Paulo Maluf, Dom Luís Gastão, príncipe herdeiro do império brasileiro, João Ricardo Moderno, presidente da academia brasileira de filosofia, raquel sheherazade, marcos feliciano, Jair bolsonaro e mais uma infindável lista. Eles, na verdade, não são uma anomalia dentro de um mundo democrático e com direitos humanos assegurados na constituição, são simplesmente os últimos representantes do passado obscuro da humanidade que, devido ao fato de sermos um país predominantemente semi-analfabeto, ainda fazem muito sucesso por aqui, já que 70% do país não tem a menor condição de ler e interpretar um simples recorte de jornal, que dirá o que passa na TV, com suas conhecidas técnicas simplórias de convencimento do público.
Acredito que estamos num ponto de nossa história enquanto país semelhante ao da França no período imediatamente anterior à revolução francesa, ou ao dos Estados Unidos durante a guerra de secessão. Um ponto em que temos duas opções: ou desperdiçarmos novamente a chance de sermos um país grande e com um ótimo nível de vida para todos, sem grandes desigualdades sociais, e continuamos a sermos um país de mente provinciana, fechada, satisfeita em sermos uma grande roça tamanho família com capitães do mato e capatazes e coroneis e sacerdotes, todos nos dizendo o que temos que fazer, ou abrirmos a porta do futuro tendo coragem de olhar para nosso próprio passado e presente, nos aceitar como somos e fazermos um futuro melhor sem racismo, sem homofobia, sem fanatismo religioso nem político, nem genocídios em favelas com os branquinhos do condomínio de luxo aplaudindo e dando medalha para o policial que mais mata por mês. Se fizermos isso, investiremos pesado em educação, em ciências e em filosofia. E todos estes que resquícios de nosso sombrio passado, que ainda têm um grau razoável de poder em nossos corações e mentes (e na política), desaparecerão e finalmente ocuparão o lugar em que já deveriam estar, em algum livro empoeirado de história do Brasil.

Eduardo Viveiros.

Ultramontanismo: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_ultramontanismo.htm
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