"O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos."
Simone de Beauvoir
Porque no Brasil é tão frequente tal coisa, isto é, um pobre a cerrar fileiras com a playboyzada, popularmente conhecidos como "direita pão com ovo", ao invés de tomarem consciência de serem classe oprimida e se unirem como tal? ou um negro contra os movimentos negros, ou um gay contra os movimentos gays (E eleitores de Marcos Feliciano e do Bolsonaro)? Isso não é um fenômeno exclusivamente daqui do Brasil, acontece no mundo todo. No entanto, por aqui, há uma boa explicação histórica. Acompanhem:
" É preciso ainda lembrar a instituição da alforria. Escravos buscavam sua liberdade de várias formas. A mais radical era a fuga, complementada com a organização de quilombos, locais de organização social alternativa ao mundo das leis escravistas que existiram até mmesmo em cidades como o RIo de Janeiro. Com o passar do século XIX, marcado pela pressão internacional e pelas lutas locais pela abolição, a alforria toma lugar de destaque como meio de obter liberdade.
A alforria tinha várias feições. Os veículos formais podiam ser uma declaração registrada em cartório, um testamento, uma declaração privada escrita ou até mesmo o registro de batismo, quando o senhor libertava o recém-nascido. Mas as condições da alforria eram muito variadas, podendo gerar uma série de constrangimentos sociais. Podia haver uma alforria incondicional, que libertava o sujeito sem mais; podia ser comprada, com o escravo ou alguma entidade abolicionista apagando ao dono um valor estipulado por este como indenização pelo valor do bem que era o escravo; havia também uma modalidade intermediária, a coartação, em que o escravo recebia o benefício de trabalhar por conta própria até acumular o dinheiro com que poderia comprar sua liberdade (era chamado "escravo de ganho"); e havia a alforria condicional, que limitava a liberdade concedida mediante obrigação do alforriado de continuar prestando serviços a seu dono até a morte deste, por exemplo.
Até a altura de 1860, todas as alforrias eram revogáveis, se é que dá para imaginar tal horror: um sujeito comprava sua liberdade, com esforço, ou era contemplado pela sorte de ser alforriado por uma velha senhora, digamos, e no dia seguinte sua condição podia ser revertida, por simples ato do antigo dono. Isso significa que até aquela década um escravo liberto nunca se livrava do fantasma do cativeiro. Por outro lado, havia alforrias concedidas contra a vontade do senhor: se o escravo conseguisse provar que sua servidão era ilegal, podia acionar o aparelho judiciário para ver cumprida a lei, Isso sem contar as alforrias por serviços, por exemplo na guerra.
Era nas cidades que os escravos tinham maiores chances de obter alforria, especialmente os que trabalhavam nas casas, os escravos domésticos. As mulheres tinham mais chances de obter a alforria do que os homens, e parece que mulatos e pardos conseguiam o benefício mais do que os negros. FINALMENTE, VALE LEMBRAR QUE A ALFORRIA FUNCIONAVA TAMBÉM COMO UM ELEMENTO DE PRESSÃO IDEOLÓGICA SOBRE O ESCRAVO, QUE COM A PERSPECTIVA DE GANHAR A LIBERDADE TENDIA A TER COMPORTAMENTO DÓCIL, SUBMISSO, COMO FORMA DE CAPTAR A BENEVOLÊNCIA, QUE PORÉM PODIA NÃO VIR.
Essa trama complexa de possibilidades dá uma boa ideia de como era a relação entre negros, mulatos e brancos, entre escravos e senhores, entre alforriados e livres no Rio de Janeiro de então,. Pode-se imaginar o quanto valia o favor, o "jeitinho", a subserviência, que poderiam render benefícios que chegavam até a alforria, mas que não garantiam nada, pois o poder ods proprietários era absoluto."
Luís Augusto Fischer, Panorama do Rio de Janeiro: alguns elementos para compreeender o mundo de Machado de Assis (Quincas Borba, editora LP & M).
Se considerarmos que a imensa maioria, senão todo o povo brasileiro é descendente de negros africanos escravizados e trazidos à força da África durante cinco séculos, então fica fácil deduzir que, formados na mentalidade dócil e subserviente para com o senhor branco (que é a origem direta da nossa classe dominante), nossos antepassados aprenderam desde sempre que, em vez de se unirem enquanto grupo oprimido perante o grupo opressor, o que era o "certo" a fazer era se submeter incondicionalmente ao opressor, visando "agradá-lo" em tudo para que então "merecesse" benevolência e um bom tratamento de sua parte. Foram levados a crer que, se fizessem o serviço direitinho, podiam até mesmo ganhar o mais cobiçado troféu: a liberdade. Agradar ao opressor também significa, necessariamente, opor-se a qualquer um que indicasse um outro caminho, nomeadamente a revolta e o assassinato dos opressores. Deduzimos que é daí, então, que vem a percepção geral de que o povo brasileiro é pacífico e "ordeiro", isto é, até se é permitido fazer-se mudanças ou reformas, mas tudo estritamente dentro da "ordem", jamais indo às raias da violência, por mais legítima que seja. E, seguindo com isto o caminho "aprovado" pela classe opressora, compreende-se o secular medo manifestado por praticamente todos os pensadores brasileiros até hoje, quase todos saídos das hostes da classe rica, no qual o uso da palavra "anarquia" abunda, anarquia essa que nada mais é do que o povo resolvendo os problemas fora do script ditado por eles, como guerras ou revoluções. Aí está a origem da total falta de solidariedade dentro da própria classe oprimida e de uma conscientização mais ampla sobre sua condição.
Desenvolvendo mais tal pensamento, pode-se dizer que o escravo não apenas se submetia ao seu senhor; ele sempre tentou imitá-los, pois os via como superiores a si mesmo, portanto como modelos. Sabe-se historicamente que a imensa maioria dos escravos, se libertados e de alguma forma tornando-se abastados, a primeira coisa que faziam era comprar outros escravos, símbolos de status numa sociedade calcada na escravidão. Veja-se só o espetáculo: negros escravizados escravizando outros negros escravizados. Isso também repercute nos dias atuais: é comum alguém que, alguns anos atrás mal tendo o que comer, agora faz parte do que comumente se denomina "nova classe média", isto é, pessoas que ascenderam socialmente a um patamar de vida superior ao que tinha anteriormente. Porém, passados a vida toda a terem como modelos de ser bem-sucedido a classe rica, não querem apenas terem o que comer ou vestir, querem IMITÁ-LOS. Isso significa ajuntar durante anos ou pedir emprestado ao banco para comprar um carro caríssimo, como o famoso Camaro amarelo, um celular custosamente astronômico, roupas caras etc, enfim, coisas que supostamente perante a sociedade tornariam a pessoa membro da classe rica, um playboy, ainda que, por mais que a situação econômica tenha melhorado, na realidade a pessoa está muito distante de ter reais condições de adquirir. Não apenas ao nível material: a pessoa começa a se comportar como se fosse membro da classe abastada. Passa então a reproduzir exatamente o mesmo pensamento daquelas pessoas, sem qualquer noção crítica do contexto completamente diferente em que tais e quais vivem. E, com isso, ou desconhecem ou fingem desconhecer que, agindo assim, estão agindo contra si mesmas. Quando um playboy fala que bandido bom é bandido morto, por exemplo, o que ele quer dizer é que o perfil de bandido dele, isto é, preto, pobre e morador de cortiços e favelas, devem ser caçados impiedosamente como animais pela polícia e, se estiverem longe das câmeras, assassinados sem dó. Aqui não interessa nem um pouco se a pessoa é realmente criminosa ou não, o que interessa é o perfil: se ela se encaixar no perfil, então automaticamente há grandes possibilidades de ela ser um bandido em potencial e, pelo sim pelo não, é melhor meter uma bala na cabeça que está tudo certo. O oprimido, ansioso por imitar e ser aceito no meio da classe opressora, aceita de chofre tal pensamento, imaginando que este é o passaporte para entrar lá, a felicidade suprema, ignorando ou fingindo ignorar que ele está na verdade concordando em ser discriminado, espancado ou mesmo morto por aqueles a quem ele vê como heróis e modelos. Aqui está a explicação para a "nova classe média", que recentemente foi responsável por eleger figuras emblemáticas da playboyzada como Bolsonaro e Fraga, terem opiniões muitas vezes ultrajantes a respeito de si mesmos.
É claro que, obviamente há muitas outras causas que concorrem para opiniões extremamente conservadores dentro da favela e do cortiço, como a doutrinação nazifascista da educação moral e cívica da ditadura, o próprio processo de formação do Brasil, o conceito de estamento patrimonialista transplantado da península ibérica para cá, o catolicismo medieval também aqui naturalizado etc. Entretanto, com este fato histórico, quero apenas mostrar um desses muitos aspectos que contribuem enormemente para entendermos o pensamento da generalidade do povo brasileiro em geral, especialmente porque vejo muita gente às vezes em choque, sem entender direito como é possível pobres traírem sua própria classe social e comungarem com a playboyzada do condomínio de luxo em opiniões que visam claramente seu próprio extermínio, como a violência policial. Espero que agora isto fique mais claro, e não nos surpreendamos tanto ao ver um gay a apoiar Silas Malafaia, por exemplo.
terça-feira, 21 de outubro de 2014
quinta-feira, 2 de outubro de 2014
" Será suficiente aqui que eu tome como fundamento aquilo que deve ser reconhecido por todos, a saber, que todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas e que todos tendem a buscar o que lhes é útil, estando conscientes disso. Com efeito, disso se segue, em primeiro lugar, que, por estarem conscientes de suas volições e de seus apetites, os homens se crêem livres, mas nem em sonho pensam nas causas que os dispõem a ter essas vontades e esses apetites, porque as ignoram. Segue-se, em segundo lugar, que os homens agem, em tudo, em função de um fim, quer dizer, em função da coisa útil que apetecem. É por isso que, quanto às coisas acabadas, eles buscam, sempre, saber apenas as causas finais, satisfazendo-se, por não terem qualquer outro motivo para duvidar, em saber delas por ouvir dizer. Se, entretanto, não puderem saber dessas causas por ouvirem de outrem, só lhes resta o recurso de se voltarem para si mesmos e refletirem sobre os fins que habitualmente os determinam a fazer coisas similares e, assim, necessariamente, acabam por julgar a inclinação alheia pela sua própria. Como, além disso, encontram, tanto em si mesmos, quanto fora de si, não poucos meios que muito contribuem para a consecução do que lhes é útil, como, por exemplo, os olhos para ver, os dentes para mastigar, os vegetais e os animais para alimentar-se, o sol para iluminar, o mar para fornecer-lhes peixes, etc., eles são, assim, levados a considerar todas as coisas naturais como se fossem meios para sua própria utilidade. E por saberem que simplesmente encontraram esses meios e que não foram eles que assim os dispuseram, encontraram razão para crer que deve existir alguém que dispôs esses meios para que eles os utilizassem. Tendo, pois, passado a considerar as coisas como meios, não podiam mais acreditar que elas tivessem sido feitas por seu próprio valor. Em vez disso, com base nos meios de que
costumam dispor para seu próprio uso, foram levados a concluir que havia um ou mais governantes da natureza, dotados de uma liberdade humana, que tudo
haviam providenciado para eles e para seu uso tinham feito todas as coisas. E,
por nunca terem ouvido falar nada sobre a inclinação desses governantes, eles
igualmente tiveram que julgá-la com base na sua, sustentando, como conseqüência, que os deuses governam todas as coisas em função do uso humano, para que os homens lhes fiquem subjugados e lhes prestem a máxima reverência. Como conseqüência, cada homem engendrou, com base em sua própria inclinação, diferentes maneiras de prestar culto a Deus, para que Deus o considere mais que aos outros e governe toda a natureza em proveito de seu cego desejo e de sua insaciável cobiça. Esse preconceito transformou-se, assim, em superstição e criou profundas raízes em suas mentes, fazendo com que cada um dedicasse o máximo de esforço para compreender e explicar as causas finais de todas as coisas. Mas, ao tentar demonstrar que a natureza nada faz em vão (isto é, não faz nada que não seja para o proveito humano), eles parecem ter demonstrado apenas que, tal como os homens, a natureza e os deuses também deliram.
Peço-lhes que observem a que ponto se chegou! Ao lado de tantas coisas
agradáveis da natureza, devem ter encontrado não poucas que são desagradá-
veis, como as tempestades, os terremotos, as doenças, etc.. Argumentaram,
por isso, que essas coisas ocorriam por causa da cólera dos deuses diante das
ofensas que lhes tinham sido feitas pelos homens, ou diante das faltas cometi-
das nos cultos divinos. E embora, cotidianamente, a experiência contrariasse
isso e mostrasse com infinitos exemplos que as coisas cômodas e as incômodas
ocorrem igualmente, sem nenhuma distinção, aos piedosos e aos ímpios, nem
por isso abandonaram o inveterado preconceito. Foi-lhes mais fácil, com efeito,
colocar essas ocorrências na conta das coisas que desconheciam e cuja utilida-
de ignoravam, continuando, assim, em seu estado presente e inato de ignorân-
cia, do que destruir toda essa sua fabricação e pensar em algo novo. Deram,
por isso, como certo que os juízos dos deuses superavam em muito a compreen-
são humana. Essa razão teria sido, sozinha, realmente suficiente para que a
verdade ficasse para sempre oculta ao gênero humano, se a matemática, que
se ocupa não de fins, mas apenas das essências das figuras e de suas proprie-
dades, não tivesse mostrado aos homens outra norma de verdade. Seria possí-
vel assinalar, além da matemática, ainda outras razões (seria supérfluo enume-
rá-las aqui) que podem ter levado os homens a tomarem consciência desses
preconceitos comuns, conduzindo-os ao verdadeiro conhecimento das coisas.
Creio, com isso, ter explicado suficientemente o primeiro ponto que anun-
ciei. Mas para demonstrar, agora, que a natureza não tem nenhum fim que
lhe tenha sido prefixado e que todas as causas finais não passam de ficções
humanas, não será necessário argumentar muito. Creio, com efeito, que
isso já foi suficientemente estabelecido, tanto pela exposição das causas e
dos fundamentos, nos quais, como mostrei, esse preconceito tem sua ori-
gem, quanto pela prop. 16 e pelos corol. 1 e 2 da prop. 32, bem como, ainda,
por todas as demonstrações em que provei que tudo, na natureza, procede de
uma certa necessidade eterna e de uma perfeição suprema. Mas afirmo, ainda,
que essa doutrina finalista inverte totalmente a natureza, pois considera como
efeito aquilo que é realmente causa e vice-versa. Além disso, converte em
posterior o que é, por natureza, anterior. Enfim, transforma em imperfeito o que
é supremo e perfeitíssimo. Com efeito (deixemos de lado os dois primeiros
pontos, por serem evidentes por si mesmos), como se deduz das prop. 21, 22 e
23, o efeito mais perfeito é o que é produzido por Deus imediatamente, e uma
coisa é tanto mais imperfeita quanto mais requer causas intermediárias para
ser produzida. Mas se as coisas que são produzidas por Deus imediatamente
tivessem sido feitas para que Deus cumprisse um fim seu, então essas coisas
feitas por último e em função das quais as primeiras teriam sido feitas, seriam
necessariamente as melhores de todas. Além disso, essa doutrina suprime a
perfeição de Deus, pois se ele age em função de um fim, é porque necessaria-
mente apetece algo que lhe falta. E embora os teólogos e os metafísicos distin-
gam entre o fim de falta [para preencher uma falta própria] e o fim de assimi-
lação [para satisfazer uma necessidade alheia], eles reconhecidamente afirmam,
entretanto, que Deus fez todas as coisas em função de si mesmo e não em
função das coisas a serem criadas, pois, além de Deus, não podem assinalar
nenhuma outra coisa em função da qual, antes do ato de criação, ele tivesse
agido. São, assim, necessariamente forçados a admitir que Deus não dispunha
daqueles seres em proveito dos quais ele supostamente poderia ter querido e
desejado providenciar os referidos meios, conclusão que é evidente por si mes-
ma. É preciso não deixar de mencionar que os partidários dessa doutrina, os
quais, ao atribuir um fim às coisas, quiseram dar mostras de sua inteligência,
introduziram um novo modo de argumentação para prová-la, a saber, a redução
não ao impossível, mas à ignorância, o que mostra que essa doutrina não tinha
nenhum outro meio de argumentar. Com efeito, se, por exemplo, uma pedra
cair de um telhado sobre a cabeça de alguém, matando-o, é da maneira seguin-
te que demonstrarão que a pedra caiu a fim de matar esse homem: se a pedra
não caiu, por vontade de Deus, com esse fim, como se explica que tantas
circunstâncias (pois, realmente, é com freqüência que se juntam, simultanea-
mente, muitas circunstâncias) possam ter se juntado por acaso? Responderás,
talvez, que isso ocorreu porque ventava e o homem passava por lá. Mas eles
insistirão: por que ventava naquele momento? E por que o homem passava por
lá naquele exato momento? Se respondes, agora, que se levantou um vento
naquele momento porque, no dia anterior, enquanto o tempo ainda estava cal-
mo, o mar começou a se agitar, e que o homem tinha sido convidado por um
amigo, eles insistirão ainda (pois as perguntas não terão fim): por que, então, o
mar estava agitado? E por que o homem tinha sido convidado justamente para
aquele momento? E assim por diante, não parando de perguntar pelas causas
das causas até que, finalmente, recorras ao argumento da vontade de Deus,
esse refúgio da ignorância. Assim, igualmente, quando observam a constru-
ção do corpo humano, ficam estupefatos e, por ignorarem as causas de
tamanha arte, concluem que foi construído não por arte mecânica, mas por
arte divina ou sobrenatural e igualmente por esta arte foi constituído, de tal
forma que uma parte não prejudique a outra. E é por isso que quem quer
que busque as verdadeiras causas dos milagres e se esforce por compreen-
der as coisas naturais como um sábio, em vez de se deslumbrar como um
tolo, é tido, aqui e ali, por herege e ímpio, sendo como tal proclamado por
aqueles que o vulgo adora como intérpretes da natureza e dos deuses. Pois
eles sabem que, uma vez suprimida a ignorância, desaparece também essa
estupefação, ou seja, o único meio que eles têm para argumentar e para
manter sua autoridade. Deixo, entretanto, isso de lado e passo ao ponto que
me dispus a tratar em terceiro lugar.
Depois de terem se persuadido de que tudo o que ocorre é em função deles,
os homens foram levados a julgar que o aspecto mais importante, em qual-
quer coisa, é aquele que lhes é mais útil, assim como foram levados a ter
como superiores aquelas coisas que lhes afetavam mais favoravelmente.
Como conseqüência, tiveram que formar certas noções para explicar a
natureza das coisas, tais como as de bem, mal, ordenação, confusão, calor,
frio, beleza, feiúra, etc., e, por se julgarem livres, foi que nasceram noções
tais como louvor e desaprovação, pecado e mérito. Examinarei essas últi-
mas mais adiante, depois que tiver me ocupado da natureza humana, limi-
tando-me aqui a examinar brevemente as primeiras. Tudo aquilo, pois, que
beneficia a saúde e favorece o culto de Deus eles chamaram de bem; o que
é contrário a isso chamaram de mal. E como aqueles que não compreen-
dem a natureza das coisas nada afirmam sobre elas, mas apenas as imagi-
nam, confundindo a imaginação com o intelecto, eles crêem firmemente
que existe uma ordenação nas coisas, ignorando tanto a natureza das coi-
sas quanto a sua própria. Com efeito, quando as coisas estão dispostas de
maneira tal que, quando nos são representadas pelos sentidos, podemos
facilmente imaginá-las e, conseqüentemente, facilmente recordá-las, dize-
mos que estão bem ordenadas; se ocorrer o contrário, dizemos que estão
mal ordenadas ou que são confusas. E como as coisas que podem ser
imaginadas facilmente são mais agradáveis do que as outras, os homens
preferem a ordenação à confusão, como se a ordenação fosse algo que,
independentemente de nossa imaginação, existisse na natureza. Dizem ain-
da que Deus criou todas as coisas ordenadamente, atribuindo, assim, sem
se darem conta, a imaginação a Deus, o que só faria sentido se eles quises-
sem dizer, talvez, que, em função da imaginação humana, Deus dispôs to-
das as coisas de maneira que elas pudessem ser mais facilmente imagina-
das. Provavelmente não é, para eles, nenhum problema a verificação de
infinitas coisas que superam de longe a nossa imaginação e um grande
número de outras que, por sua debilidade, deixam a nossa imaginação confusa.
Mas sobre tal ponto isso é suficiente. Quanto às outras noções, também não
passam de modos do imaginar, pelos quais a imaginação é diferentemente afe-
tada, e que, no entanto, são considerados pelos ignorantes como atributos prin-
cipais das coisas, porque acreditam, como já dissemos, que todas as coisas
foram feitas em função deles, e é com base na maneira como foram afetados
por uma coisa que dizem que a sua natureza é boa ou má, sã ou podre e
corrompida. Se, por exemplo, o movimento que os nervos recebem dos objetos
representados pelos olhos contribui para uma boa disposição do corpo, os obje-
tos que causaram tal movimento são chamados de belos, sendo chamados de
feios aqueles que provocam o movimento contrário. Aqueles que provocam o
sentido por meio do nariz são chamados de perfumados ou, então, de malchei-
rosos; por meio da língua, de doces e saborosos ou, então, de amargos e insípi-
dos; por meio do tato, de duros e ásperos ou, então, de moles e macios. E,
finalmente, daqueles que provocam os ouvidos diz-se que eles produzem baru-
lho ou, então, som ou harmonia, a qual fascinou tanto os homens que eles
acabaram por acreditar que Deus também se deleitava com ela, não tendo
faltado filósofos que estavam convencidos de que os movimentos celestes com-
punham uma harmonia. Tudo isso mostra suficientemente que cada um julga as
coisas de acordo com a disposição de seu cérebro, ou melhor, toma as afec-
ções de sua imaginação pelas próprias coisas. Por isso, não é de admirar (assi-
nalemos, de passagem também isso) que tenham surgido entre os homens tan-
tas controvérsias quanto as que experimentamos, delas surgindo, finalmente, o
ceticismo. Com efeito, embora os corpos humanos estejam em concordância
sob muitos aspectos, diferem, entretanto, sob muitos mais. Por isso, o que a um
parece bom, a outro parece mau; o que a um parece ordenado, a outro parece
confuso; o que a um é agradável, a outro é desagradável, e assim quanto às
outras noções, sobre as quais, entretanto, não insisto aqui, tanto por não ser este o local para discuti-las de forma explícita, quanto porque todos têm delas suficiente experiência. Pois, ditados como os seguintes estão na boca de todo mundo. Cada cabeça, uma sentença. A cada qual seu parecer lhe basta. Há tantos juízos, quantos são os gostos. Esses ditados mostram suficientemente
que os homens julgam as coisas de acordo com o estado de seu cérebro e que,
mais do que as compreender, eles as imaginam. Pois se as compreendessem,
então, mesmo que não as achassem atraentes, ao menos se convenceriam
delas todas, como mostra o exemplo da matemática.
Vemos, pois, que todas as noções que o vulgo costuma utilizar para explicar
a natureza não passam de modos do imaginar e não indicam a natureza das
coisas, mas apenas a constituição de sua própria imaginação. E como elas
têm nomes, como se fossem entes que existissem fora da imaginação, cha-
mo-as não entes de razão, mas entes de imaginação. E, assim, pode-se
facilmente refutar todos os argumentos que poderiam ser dirigidos contra
nós, com base em noções como essas. Costuma-se, com efeito, argumen-
tar da maneira que se segue. Se todas as coisas se seguiram da perfeitíssi-
ma natureza de Deus, de onde provêm, então, tantas imperfeições na natu-
reza, tais como a deterioração das coisas, ao ponto de se tornarem
malcheirosas, a feiúra que causa repugnância, a confusão, o mal, o pecado,
etc.? Mas isso é fácil, como acabei de dizer, de ser refutado. Pois a perfei-
ção das coisas deve ser avaliada exclusivamente por sua própria natureza e
potência: elas não são mais ou menos perfeitas porque agradem ou desa-
gradem os sentidos dos homens, ou porque convenham à natureza humana
ou a contrariem. Àqueles que, entretanto, perguntarem por que Deus não
criou os homens de maneira que eles se conduzissem exclusivamente pela
via da razão, respondo simplesmente: não foi por ter faltado a Deus matéria
para criar todos os tipos de coisas, desde aquelas com o mais alto grau até
àquelas com o mais baixo grau de perfeição. Ou, para falar mais apropria-
damente: foi porque as leis da natureza, sendo tão amplas, bastaram para
produzir todas as coisas que possam ser concebidas por um intelecto infini-
to, como demonstrei na prop. 16.
Esses são os preconceitos que me propus assinalar. Se restarem ainda outros
do mesmo gênero, cada um poderá, com um pouco de reflexão, corrigi-los. "
Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras, Baruch de Spinoza.
costumam dispor para seu próprio uso, foram levados a concluir que havia um ou mais governantes da natureza, dotados de uma liberdade humana, que tudo
haviam providenciado para eles e para seu uso tinham feito todas as coisas. E,
por nunca terem ouvido falar nada sobre a inclinação desses governantes, eles
igualmente tiveram que julgá-la com base na sua, sustentando, como conseqüência, que os deuses governam todas as coisas em função do uso humano, para que os homens lhes fiquem subjugados e lhes prestem a máxima reverência. Como conseqüência, cada homem engendrou, com base em sua própria inclinação, diferentes maneiras de prestar culto a Deus, para que Deus o considere mais que aos outros e governe toda a natureza em proveito de seu cego desejo e de sua insaciável cobiça. Esse preconceito transformou-se, assim, em superstição e criou profundas raízes em suas mentes, fazendo com que cada um dedicasse o máximo de esforço para compreender e explicar as causas finais de todas as coisas. Mas, ao tentar demonstrar que a natureza nada faz em vão (isto é, não faz nada que não seja para o proveito humano), eles parecem ter demonstrado apenas que, tal como os homens, a natureza e os deuses também deliram.
Peço-lhes que observem a que ponto se chegou! Ao lado de tantas coisas
agradáveis da natureza, devem ter encontrado não poucas que são desagradá-
veis, como as tempestades, os terremotos, as doenças, etc.. Argumentaram,
por isso, que essas coisas ocorriam por causa da cólera dos deuses diante das
ofensas que lhes tinham sido feitas pelos homens, ou diante das faltas cometi-
das nos cultos divinos. E embora, cotidianamente, a experiência contrariasse
isso e mostrasse com infinitos exemplos que as coisas cômodas e as incômodas
ocorrem igualmente, sem nenhuma distinção, aos piedosos e aos ímpios, nem
por isso abandonaram o inveterado preconceito. Foi-lhes mais fácil, com efeito,
colocar essas ocorrências na conta das coisas que desconheciam e cuja utilida-
de ignoravam, continuando, assim, em seu estado presente e inato de ignorân-
cia, do que destruir toda essa sua fabricação e pensar em algo novo. Deram,
por isso, como certo que os juízos dos deuses superavam em muito a compreen-
são humana. Essa razão teria sido, sozinha, realmente suficiente para que a
verdade ficasse para sempre oculta ao gênero humano, se a matemática, que
se ocupa não de fins, mas apenas das essências das figuras e de suas proprie-
dades, não tivesse mostrado aos homens outra norma de verdade. Seria possí-
vel assinalar, além da matemática, ainda outras razões (seria supérfluo enume-
rá-las aqui) que podem ter levado os homens a tomarem consciência desses
preconceitos comuns, conduzindo-os ao verdadeiro conhecimento das coisas.
Creio, com isso, ter explicado suficientemente o primeiro ponto que anun-
ciei. Mas para demonstrar, agora, que a natureza não tem nenhum fim que
lhe tenha sido prefixado e que todas as causas finais não passam de ficções
humanas, não será necessário argumentar muito. Creio, com efeito, que
isso já foi suficientemente estabelecido, tanto pela exposição das causas e
dos fundamentos, nos quais, como mostrei, esse preconceito tem sua ori-
gem, quanto pela prop. 16 e pelos corol. 1 e 2 da prop. 32, bem como, ainda,
por todas as demonstrações em que provei que tudo, na natureza, procede de
uma certa necessidade eterna e de uma perfeição suprema. Mas afirmo, ainda,
que essa doutrina finalista inverte totalmente a natureza, pois considera como
efeito aquilo que é realmente causa e vice-versa. Além disso, converte em
posterior o que é, por natureza, anterior. Enfim, transforma em imperfeito o que
é supremo e perfeitíssimo. Com efeito (deixemos de lado os dois primeiros
pontos, por serem evidentes por si mesmos), como se deduz das prop. 21, 22 e
23, o efeito mais perfeito é o que é produzido por Deus imediatamente, e uma
coisa é tanto mais imperfeita quanto mais requer causas intermediárias para
ser produzida. Mas se as coisas que são produzidas por Deus imediatamente
tivessem sido feitas para que Deus cumprisse um fim seu, então essas coisas
feitas por último e em função das quais as primeiras teriam sido feitas, seriam
necessariamente as melhores de todas. Além disso, essa doutrina suprime a
perfeição de Deus, pois se ele age em função de um fim, é porque necessaria-
mente apetece algo que lhe falta. E embora os teólogos e os metafísicos distin-
gam entre o fim de falta [para preencher uma falta própria] e o fim de assimi-
lação [para satisfazer uma necessidade alheia], eles reconhecidamente afirmam,
entretanto, que Deus fez todas as coisas em função de si mesmo e não em
função das coisas a serem criadas, pois, além de Deus, não podem assinalar
nenhuma outra coisa em função da qual, antes do ato de criação, ele tivesse
agido. São, assim, necessariamente forçados a admitir que Deus não dispunha
daqueles seres em proveito dos quais ele supostamente poderia ter querido e
desejado providenciar os referidos meios, conclusão que é evidente por si mes-
ma. É preciso não deixar de mencionar que os partidários dessa doutrina, os
quais, ao atribuir um fim às coisas, quiseram dar mostras de sua inteligência,
introduziram um novo modo de argumentação para prová-la, a saber, a redução
não ao impossível, mas à ignorância, o que mostra que essa doutrina não tinha
nenhum outro meio de argumentar. Com efeito, se, por exemplo, uma pedra
cair de um telhado sobre a cabeça de alguém, matando-o, é da maneira seguin-
te que demonstrarão que a pedra caiu a fim de matar esse homem: se a pedra
não caiu, por vontade de Deus, com esse fim, como se explica que tantas
circunstâncias (pois, realmente, é com freqüência que se juntam, simultanea-
mente, muitas circunstâncias) possam ter se juntado por acaso? Responderás,
talvez, que isso ocorreu porque ventava e o homem passava por lá. Mas eles
insistirão: por que ventava naquele momento? E por que o homem passava por
lá naquele exato momento? Se respondes, agora, que se levantou um vento
naquele momento porque, no dia anterior, enquanto o tempo ainda estava cal-
mo, o mar começou a se agitar, e que o homem tinha sido convidado por um
amigo, eles insistirão ainda (pois as perguntas não terão fim): por que, então, o
mar estava agitado? E por que o homem tinha sido convidado justamente para
aquele momento? E assim por diante, não parando de perguntar pelas causas
das causas até que, finalmente, recorras ao argumento da vontade de Deus,
esse refúgio da ignorância. Assim, igualmente, quando observam a constru-
ção do corpo humano, ficam estupefatos e, por ignorarem as causas de
tamanha arte, concluem que foi construído não por arte mecânica, mas por
arte divina ou sobrenatural e igualmente por esta arte foi constituído, de tal
forma que uma parte não prejudique a outra. E é por isso que quem quer
que busque as verdadeiras causas dos milagres e se esforce por compreen-
der as coisas naturais como um sábio, em vez de se deslumbrar como um
tolo, é tido, aqui e ali, por herege e ímpio, sendo como tal proclamado por
aqueles que o vulgo adora como intérpretes da natureza e dos deuses. Pois
eles sabem que, uma vez suprimida a ignorância, desaparece também essa
estupefação, ou seja, o único meio que eles têm para argumentar e para
manter sua autoridade. Deixo, entretanto, isso de lado e passo ao ponto que
me dispus a tratar em terceiro lugar.
Depois de terem se persuadido de que tudo o que ocorre é em função deles,
os homens foram levados a julgar que o aspecto mais importante, em qual-
quer coisa, é aquele que lhes é mais útil, assim como foram levados a ter
como superiores aquelas coisas que lhes afetavam mais favoravelmente.
Como conseqüência, tiveram que formar certas noções para explicar a
natureza das coisas, tais como as de bem, mal, ordenação, confusão, calor,
frio, beleza, feiúra, etc., e, por se julgarem livres, foi que nasceram noções
tais como louvor e desaprovação, pecado e mérito. Examinarei essas últi-
mas mais adiante, depois que tiver me ocupado da natureza humana, limi-
tando-me aqui a examinar brevemente as primeiras. Tudo aquilo, pois, que
beneficia a saúde e favorece o culto de Deus eles chamaram de bem; o que
é contrário a isso chamaram de mal. E como aqueles que não compreen-
dem a natureza das coisas nada afirmam sobre elas, mas apenas as imagi-
nam, confundindo a imaginação com o intelecto, eles crêem firmemente
que existe uma ordenação nas coisas, ignorando tanto a natureza das coi-
sas quanto a sua própria. Com efeito, quando as coisas estão dispostas de
maneira tal que, quando nos são representadas pelos sentidos, podemos
facilmente imaginá-las e, conseqüentemente, facilmente recordá-las, dize-
mos que estão bem ordenadas; se ocorrer o contrário, dizemos que estão
mal ordenadas ou que são confusas. E como as coisas que podem ser
imaginadas facilmente são mais agradáveis do que as outras, os homens
preferem a ordenação à confusão, como se a ordenação fosse algo que,
independentemente de nossa imaginação, existisse na natureza. Dizem ain-
da que Deus criou todas as coisas ordenadamente, atribuindo, assim, sem
se darem conta, a imaginação a Deus, o que só faria sentido se eles quises-
sem dizer, talvez, que, em função da imaginação humana, Deus dispôs to-
das as coisas de maneira que elas pudessem ser mais facilmente imagina-
das. Provavelmente não é, para eles, nenhum problema a verificação de
infinitas coisas que superam de longe a nossa imaginação e um grande
número de outras que, por sua debilidade, deixam a nossa imaginação confusa.
Mas sobre tal ponto isso é suficiente. Quanto às outras noções, também não
passam de modos do imaginar, pelos quais a imaginação é diferentemente afe-
tada, e que, no entanto, são considerados pelos ignorantes como atributos prin-
cipais das coisas, porque acreditam, como já dissemos, que todas as coisas
foram feitas em função deles, e é com base na maneira como foram afetados
por uma coisa que dizem que a sua natureza é boa ou má, sã ou podre e
corrompida. Se, por exemplo, o movimento que os nervos recebem dos objetos
representados pelos olhos contribui para uma boa disposição do corpo, os obje-
tos que causaram tal movimento são chamados de belos, sendo chamados de
feios aqueles que provocam o movimento contrário. Aqueles que provocam o
sentido por meio do nariz são chamados de perfumados ou, então, de malchei-
rosos; por meio da língua, de doces e saborosos ou, então, de amargos e insípi-
dos; por meio do tato, de duros e ásperos ou, então, de moles e macios. E,
finalmente, daqueles que provocam os ouvidos diz-se que eles produzem baru-
lho ou, então, som ou harmonia, a qual fascinou tanto os homens que eles
acabaram por acreditar que Deus também se deleitava com ela, não tendo
faltado filósofos que estavam convencidos de que os movimentos celestes com-
punham uma harmonia. Tudo isso mostra suficientemente que cada um julga as
coisas de acordo com a disposição de seu cérebro, ou melhor, toma as afec-
ções de sua imaginação pelas próprias coisas. Por isso, não é de admirar (assi-
nalemos, de passagem também isso) que tenham surgido entre os homens tan-
tas controvérsias quanto as que experimentamos, delas surgindo, finalmente, o
ceticismo. Com efeito, embora os corpos humanos estejam em concordância
sob muitos aspectos, diferem, entretanto, sob muitos mais. Por isso, o que a um
parece bom, a outro parece mau; o que a um parece ordenado, a outro parece
confuso; o que a um é agradável, a outro é desagradável, e assim quanto às
outras noções, sobre as quais, entretanto, não insisto aqui, tanto por não ser este o local para discuti-las de forma explícita, quanto porque todos têm delas suficiente experiência. Pois, ditados como os seguintes estão na boca de todo mundo. Cada cabeça, uma sentença. A cada qual seu parecer lhe basta. Há tantos juízos, quantos são os gostos. Esses ditados mostram suficientemente
que os homens julgam as coisas de acordo com o estado de seu cérebro e que,
mais do que as compreender, eles as imaginam. Pois se as compreendessem,
então, mesmo que não as achassem atraentes, ao menos se convenceriam
delas todas, como mostra o exemplo da matemática.
Vemos, pois, que todas as noções que o vulgo costuma utilizar para explicar
a natureza não passam de modos do imaginar e não indicam a natureza das
coisas, mas apenas a constituição de sua própria imaginação. E como elas
têm nomes, como se fossem entes que existissem fora da imaginação, cha-
mo-as não entes de razão, mas entes de imaginação. E, assim, pode-se
facilmente refutar todos os argumentos que poderiam ser dirigidos contra
nós, com base em noções como essas. Costuma-se, com efeito, argumen-
tar da maneira que se segue. Se todas as coisas se seguiram da perfeitíssi-
ma natureza de Deus, de onde provêm, então, tantas imperfeições na natu-
reza, tais como a deterioração das coisas, ao ponto de se tornarem
malcheirosas, a feiúra que causa repugnância, a confusão, o mal, o pecado,
etc.? Mas isso é fácil, como acabei de dizer, de ser refutado. Pois a perfei-
ção das coisas deve ser avaliada exclusivamente por sua própria natureza e
potência: elas não são mais ou menos perfeitas porque agradem ou desa-
gradem os sentidos dos homens, ou porque convenham à natureza humana
ou a contrariem. Àqueles que, entretanto, perguntarem por que Deus não
criou os homens de maneira que eles se conduzissem exclusivamente pela
via da razão, respondo simplesmente: não foi por ter faltado a Deus matéria
para criar todos os tipos de coisas, desde aquelas com o mais alto grau até
àquelas com o mais baixo grau de perfeição. Ou, para falar mais apropria-
damente: foi porque as leis da natureza, sendo tão amplas, bastaram para
produzir todas as coisas que possam ser concebidas por um intelecto infini-
to, como demonstrei na prop. 16.
Esses são os preconceitos que me propus assinalar. Se restarem ainda outros
do mesmo gênero, cada um poderá, com um pouco de reflexão, corrigi-los. "
Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras, Baruch de Spinoza.
sexta-feira, 26 de setembro de 2014
Brasília canta em seu hino: "Brasília, capital da esperança!". Uma cidade que nasceu moderna e arrojada arquitetonicamente pelas mãos de Oscar Niemeyer, que era o ápice do ufanismo patriótico do final dos anos 50, a década em que o Brasil ganhava o mundial de futebol na Suécia e, nas ruas, entoava-se "a taça do mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa". Simbolizou as esperanças de um novo país, um país aberto ao "novo", novo que se espalharia fatalmente ao restante do país, em contraste com o "velho". Entretanto, hoje, Brasília como esse sonho está morta, ou melhor, nasceu natimorta, virou uma cidade como qualquer outra, talvez refletindo os próprios sonhos frustrados do Brasil. Por quê?
Marilena Chaui, no clássico "Brasil, mito fundador e sociedade autoritária", apresenta a atmosfera daquela época, no que ela chama de "verdeamarelismo". De acordo com ela, tal ideologia era originalmente advogada pelos grandes proprietários rurais, e advogava o mito do "país essencialmente agrário", isto é, um país cuja função era puramente agrária, sem qualquer chance de um dia se industrializar e competir com os países centrais. Daí o descaso e mesmo a aversão do governo da República Velha a qualquer tipo de industrialização incipiente. Com a derrubada da classe ruralista do poder por Vargas e a industrialização acelerando-se de 1930 para cá, tal ideologia foi substituída pelo nacional-desenvolvimentismo. Agora, o Brasil não é mais um país agrário, que devia depender conscientemente dos grandes países industriais, o Brasil agora deveria se industrializar numa "dependência tolerada", isto é, devíamos aceitar "por enquanto" a dependência tecnológica até, um dia, alcançarmos o mesmo estágio deles. Daí Juscelino Kubitschek e seu incentivo ao grande capital internacional para se estabelecer por aqui, nomeadamente as indústrias automobilísticas, símbolos do progresso (ainda hoje).
Brasília, portanto, era o coroamento desse nacional-desenvolvimentismo, o símbolo visível do "Brasil Grande", o Brasil prestes a se tornar uma potência mundial. De fato, foi erguida no meio do nada uma cidade inteira, e num tempo quase inacreditável, cerca de três anos, o que mostrava claramente a superioridade e a força do brasileiro perante o mundo, assim dizia o discurso oficial. Porém, todo esse discurso era equivocado, senão cínico, desde o berço.
Primeiro porque, na região onde a futura capital iria ser construída, não havia nenhum deserto despovoado, sem ocupação humana e, portanto sem história, havia sim cidades, na verdade três cidades Luziânia, a mais antiga, Formosa, Planaltina e um núcleo rural que, mais tarde também viraria cidade, Brazlândia. Estudos indicam que a região do Distrito Federal já registrava ocupação humana há pelo menos 2000 anos. No período colonial, a região era cortada pela Estrada Real, isto é, o caminho que ia das minas de ouro de Mato Grosso e Goiás rumo ao Rio de Janeiro. Foi exatamente por este movimento que criaram-se tais cidades, além de outras igualmente importantes como Pirenópolis e a própria cidade de Goiás, terra de Cora Coralina.
Mas isso não é tudo: a própria cidade já nasceu reproduzindo exatamente o mesmo país autoritário e opressor do qual fazia parte. Nada havia de idílico por aqui: milhares de operários, chamados candangos, eram vítimas diárias de uma praticamente semi-escravidão por parte das construtoras e dos políticos, que frequentemente os obrigava a trabalhar inclusive de madrugada (lembrem-se que naquele tempo, a luz elétrica ainda era praticamente um artigo de luxo), em turnos que não raro iam pelo dia e a noite ininterruptamente. Dezenas morreram em virtude das péssimas condições de trabalho, os sobreviventes (e aqui vai meu testemunho pessoal, eu, neto desses candangos) relatavam que era frequente operários caírem de dezenas de metros de altura e, assim que isso acontecia, os capatazes pegavam os corpos despedaçados dos infelizes, colocavam em carrinhos de mão e sepultavam em local ignorado, possivelmente onde hoje se localiza o bairro chamado Asa Norte, tal como os nazistas apenas alguns anos antes. Há inclusive lendas populares a relatarem que muitos eram simplesmente colocados nas paredes dos prédios tal como o Congresso Nacional e ali mesmo concretados e "sepultados". Mas não pensem que os candangos aceitavam tal coisa passivamente: das revoltas operárias, a mais famosa, chamada postumamente de "massacre da Pacheco Fernandes" (pois este era o nome de uma das construtoras) colocou em evidência toda a mentira do país ufanista. Nunca ouviu falar dela nos livros de história? é claro, o caso foi abafado rapidamente, e apenas sobrevive nas memorias dos feridos e sobreviventes. Ignora-se o quantidade de mortos mas, pelo testemunho deles, que sempre falam em "metralhadoras" e "caminhões-caçamba" para transportar os mortos, certamente não foram poucos.
Logo após a inauguração da "Capital da Esperança", o mundo inteiro prestou tributo à cidade nascedoira, o símbolo de uma nova era. A classe dominante brasileira orgulhou-se imensamente de "seu" feito extraordinário, como se fossem eles a colocarem a mão na massa. Era preciso agora colocar o plano em marcha. E qual era esse plano? muito simples: os operários, todos eles, deviam voltar para suas terras, e deixarem Brasília, porque no esquema a cidade foi feita unicamente para essa mesma classe dominante. Pobres, apenas os serviçais que trabalhassem para eles e fossem estritamente necessários. Ninguém pensou em como alojar os candangos trabalhadores DEPOIS da construção, pois realmente levavam a sério um plano tão ridículo, como se as pessoas fizessem suas vidas durante três anos e, do nada, largassem tudo apenas porque eles queriam. É nesse momento que o sonho de Brasília começou a ruir: os candangos resistiram o quanto puderam aos massacres e genocídios dessa elite para continuarem morando nos mesmos barracos, pejorativamente chamados de "invasões", que nada mais eram que os antigos acampamentos dos candangos enquanto construíam os prédios. Dezenas foram mortos e milhares foram expulsos, mas também milhares resistiram (e estão até hoje, formando bairros como Vila Planalto e Vila Telebrasília) até que, por fim o governo, já o militar instalado a partir de 64, reconheceu que, tinha que ceder a tanta pressão popular, e começou a oferecer remanejamento aos antigos candangos e suas famílias para novas cidades, chamadas "cidades-satélites". Para lá foram (ou melhor, foram obrigados a ir) e enfim puderam ter seu cantinho. MAS havia um porém: o Plano Piloto (isto é, Brasília propriamente dita, o "avião" que aparece no mapa) devia ser reservado única e exclusivamente à classe rica, dito de outro modo: as cidades-satélites foram construídas a dezenas de quilômetros do centro da cidade, localizando-se a 20, 30, 40 ou mesmo a 60 km. A ditadura militar deixou como herança um verdadeiro Muro de Berlim, a separar os ricos dos pobres, hierarquizando e segregando a população dentro do mesmo Distrito Federal, não muito diferente da política do Apartheid sul-africano, como claramente visto no documentário "invasores ou excluídos", feito alguns anos atrás pelo pessoal da UNB (Universidade Nacional de Brasília).
Qual o resultado dessa política para Brasília? uma cidade segregada por cor, classes sociais, por educação, enfim por muralhas invisíveis de exclusão. Ao mesmo tempo que Brasília possui o bairro mais rico do Brasil e até mesmo do mundo, o Lago Sul, reduto dos políticos e empresários mais abastados, possuímos mesmo ao lado favelas gigantescas como o Sol Nascente, que recentemente se tornou a maior favela da América do Sul, superando a Rocinha, no Rio de Janeiro. Um dos sintomas mais claros disso é o que, mesmo em Brasília, é visto como algo positivo, porém, a meu ver, é extremamente negativo: o tombamento de Brasília como patrimônio da humanidade. Por que negativo? porque Brasília foi criada para ser e encarnar o novo, e o novo, essencialmente, é mutável, pois sempre está aberto a novas experiências. Portanto, se Brasília é o local do novo enquanto experiência, assim deveria ser, um grande laboratório a céu aberto. Mas não foi assim: a classe rica, deslumbrada pela "obra de suas mãos", numa cidade criada para ela, em suma, "perfeita", quis cristalizar para todo o sempre tal maravilha. E o tombamento assim pode ser entendido: como a cristalização de um determinado momento histórico da cidade para todo o sempre. Quiseram acordar de manhã e contemplar a beleza da vista da cidade. Só existe um porém: para desfrutarem da bela vista, era preciso retirar tudo que de desagradável pudesse maculá-la. E nada macula mais uma bela vista do que a visão terrífica de favelas. Solução? disse acima: construíram as satélites bem longe das vistas, a quilômetros e quilômetros de distância, aonde eles não pudessem ser vistos. Foram todos "escondidos". Uma verdadeira "limpeza étnica". De posse da arma do tombamento, agora tinham legitimidade para combater o avanço inevitável das favelas sobre a "beleza arquitetônica" da Capital da Esperança, e expulsá-las o mais longe possível. O tombamento, portanto, é um instrumento que visa auxiliar a guerra social e o extermínio (em todos os sentidos: educacional, intelectual, cultural etc) da periferia pela playboyzada.
A cristalização de Brasília para atender os desejos da classe dominante, ignorando completamente as consequências futuras de tal desejo insano, só poderia levar a um resultado, constatado pela CODEPLAN (Companhia de Planejamento do DF): a imensa pressão populacional sobre o Distrito Federal. Pelos planos de Lúcio Costa, a previsão é que Brasília não tivesse mais do que 500 mil habitantes no ano 2000. Em 2013, o DF sozinho possui mais de 2 milhões e, se juntar com o "Entorno", isto é, as cidades goianas fora do território do Distrito Federal, dá seguramente mais de 3 milhões. E, segundo a CODEPLAN, apenas dentro do território do DF, 80% das habitações são "irregulares", um eufemismo para invasão de áreas públicas e parcelamento de áreas particulares, sem qualquer tipo de estudo de impacto ambiental ou um mínimo de planejamento urbano decente. A cristalização da cidade para que uma minúscula parcela pudesse aproveitá-la, ignorando os desejos e necessidades da imensa maioria invisibilizada, ou melhor, existente apenas quando precisa se deslocar mais de 100 km todos os dias para ir trabalhar no único lugar onde há trabalho, o centro de Brasília, gerando engarrafamentos gigantescos de manhã e à noite (um dia, Brasília foi dita como "a cidade que não tinha engarrafamentos", e é curioso notar como volta e meia sempre surge alguém a dizer que a culpa é dos pobres que "agora acham que podem comprar carro") criou uma verdadeira tragédia. Valparaíso, uma cidade do entorno, em uma recente reportagem, foi apontada como a região mais violenta do mundo, superando mesmo a América Central com seus índices assustadores de homicídios. Muito longe do utópico sonho de "Brasília, Capital da Esperança".
Como se pode ver, o sonho dourado, no qual Brasília era a cereja no bolo, já não existe mais. Brasília, longe de representar um novo Brasil, agora está a caminho, se já não o fez, de se tornar como qualquer outra grande cidade brasileira, mergulhada na desigualdade e na violência social entre as classes. De qualquer forma, era impossível fazer algo novo com uma mentalidade antiga, uma mentalidade fortemente autoritária e conservadora herdado do nosso passado colonial, tal como Raimundo Faoro disse em "Os Donos do Poder", "colocando vinho novo em odres velhos", como diz a bíblia. Brasília fracassou e, com ela, o Brasil. Mas será o fracasso permanente? não. O fracasso faz parte da vida. Ele deve servir como lição para o futuro.
"Lembre-se dos dois benefícios do fracasso. Primeiro, se você fracassa, você aprende o que não funciona; e segundo, o fracasso dá a você a oportunidade para tentar um novo caminho."
Roger Von Oech
Fontes:
CHAUI, Marilena. Brasil, Mito fundador e sociedade autoritária.
O massacre da Pacheco Fernandes. Disponível em: <http://doc.brazilia.jor.br/Construcao/GEB-massacre-Pacheco-Fernandes.shtml>
Invasores ou excluídos completo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ic3Vms_4fDQ>.
Cidades do Entorno estão entre as mais perigosas do Brasil. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2013/07/18/interna_cidadesdf,377796/cidades-do-entorno-do-df-estao-entre-as-mais-perigosas-do-brasil.shtml>
Quase 80% das casas são irregulares. Disponível em: <http://www.jornaldebrasilia.com.br/noticias/cidades/500544/quase-80-das--casas-sao---irregulares/>
Fantástico do dia 29/05, Valparaíso de Goiás, entre as mais violentas do mundo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fNQfnzEChno>
Marilena Chaui, no clássico "Brasil, mito fundador e sociedade autoritária", apresenta a atmosfera daquela época, no que ela chama de "verdeamarelismo". De acordo com ela, tal ideologia era originalmente advogada pelos grandes proprietários rurais, e advogava o mito do "país essencialmente agrário", isto é, um país cuja função era puramente agrária, sem qualquer chance de um dia se industrializar e competir com os países centrais. Daí o descaso e mesmo a aversão do governo da República Velha a qualquer tipo de industrialização incipiente. Com a derrubada da classe ruralista do poder por Vargas e a industrialização acelerando-se de 1930 para cá, tal ideologia foi substituída pelo nacional-desenvolvimentismo. Agora, o Brasil não é mais um país agrário, que devia depender conscientemente dos grandes países industriais, o Brasil agora deveria se industrializar numa "dependência tolerada", isto é, devíamos aceitar "por enquanto" a dependência tecnológica até, um dia, alcançarmos o mesmo estágio deles. Daí Juscelino Kubitschek e seu incentivo ao grande capital internacional para se estabelecer por aqui, nomeadamente as indústrias automobilísticas, símbolos do progresso (ainda hoje).
Brasília, portanto, era o coroamento desse nacional-desenvolvimentismo, o símbolo visível do "Brasil Grande", o Brasil prestes a se tornar uma potência mundial. De fato, foi erguida no meio do nada uma cidade inteira, e num tempo quase inacreditável, cerca de três anos, o que mostrava claramente a superioridade e a força do brasileiro perante o mundo, assim dizia o discurso oficial. Porém, todo esse discurso era equivocado, senão cínico, desde o berço.
Primeiro porque, na região onde a futura capital iria ser construída, não havia nenhum deserto despovoado, sem ocupação humana e, portanto sem história, havia sim cidades, na verdade três cidades Luziânia, a mais antiga, Formosa, Planaltina e um núcleo rural que, mais tarde também viraria cidade, Brazlândia. Estudos indicam que a região do Distrito Federal já registrava ocupação humana há pelo menos 2000 anos. No período colonial, a região era cortada pela Estrada Real, isto é, o caminho que ia das minas de ouro de Mato Grosso e Goiás rumo ao Rio de Janeiro. Foi exatamente por este movimento que criaram-se tais cidades, além de outras igualmente importantes como Pirenópolis e a própria cidade de Goiás, terra de Cora Coralina.
Mas isso não é tudo: a própria cidade já nasceu reproduzindo exatamente o mesmo país autoritário e opressor do qual fazia parte. Nada havia de idílico por aqui: milhares de operários, chamados candangos, eram vítimas diárias de uma praticamente semi-escravidão por parte das construtoras e dos políticos, que frequentemente os obrigava a trabalhar inclusive de madrugada (lembrem-se que naquele tempo, a luz elétrica ainda era praticamente um artigo de luxo), em turnos que não raro iam pelo dia e a noite ininterruptamente. Dezenas morreram em virtude das péssimas condições de trabalho, os sobreviventes (e aqui vai meu testemunho pessoal, eu, neto desses candangos) relatavam que era frequente operários caírem de dezenas de metros de altura e, assim que isso acontecia, os capatazes pegavam os corpos despedaçados dos infelizes, colocavam em carrinhos de mão e sepultavam em local ignorado, possivelmente onde hoje se localiza o bairro chamado Asa Norte, tal como os nazistas apenas alguns anos antes. Há inclusive lendas populares a relatarem que muitos eram simplesmente colocados nas paredes dos prédios tal como o Congresso Nacional e ali mesmo concretados e "sepultados". Mas não pensem que os candangos aceitavam tal coisa passivamente: das revoltas operárias, a mais famosa, chamada postumamente de "massacre da Pacheco Fernandes" (pois este era o nome de uma das construtoras) colocou em evidência toda a mentira do país ufanista. Nunca ouviu falar dela nos livros de história? é claro, o caso foi abafado rapidamente, e apenas sobrevive nas memorias dos feridos e sobreviventes. Ignora-se o quantidade de mortos mas, pelo testemunho deles, que sempre falam em "metralhadoras" e "caminhões-caçamba" para transportar os mortos, certamente não foram poucos.
Logo após a inauguração da "Capital da Esperança", o mundo inteiro prestou tributo à cidade nascedoira, o símbolo de uma nova era. A classe dominante brasileira orgulhou-se imensamente de "seu" feito extraordinário, como se fossem eles a colocarem a mão na massa. Era preciso agora colocar o plano em marcha. E qual era esse plano? muito simples: os operários, todos eles, deviam voltar para suas terras, e deixarem Brasília, porque no esquema a cidade foi feita unicamente para essa mesma classe dominante. Pobres, apenas os serviçais que trabalhassem para eles e fossem estritamente necessários. Ninguém pensou em como alojar os candangos trabalhadores DEPOIS da construção, pois realmente levavam a sério um plano tão ridículo, como se as pessoas fizessem suas vidas durante três anos e, do nada, largassem tudo apenas porque eles queriam. É nesse momento que o sonho de Brasília começou a ruir: os candangos resistiram o quanto puderam aos massacres e genocídios dessa elite para continuarem morando nos mesmos barracos, pejorativamente chamados de "invasões", que nada mais eram que os antigos acampamentos dos candangos enquanto construíam os prédios. Dezenas foram mortos e milhares foram expulsos, mas também milhares resistiram (e estão até hoje, formando bairros como Vila Planalto e Vila Telebrasília) até que, por fim o governo, já o militar instalado a partir de 64, reconheceu que, tinha que ceder a tanta pressão popular, e começou a oferecer remanejamento aos antigos candangos e suas famílias para novas cidades, chamadas "cidades-satélites". Para lá foram (ou melhor, foram obrigados a ir) e enfim puderam ter seu cantinho. MAS havia um porém: o Plano Piloto (isto é, Brasília propriamente dita, o "avião" que aparece no mapa) devia ser reservado única e exclusivamente à classe rica, dito de outro modo: as cidades-satélites foram construídas a dezenas de quilômetros do centro da cidade, localizando-se a 20, 30, 40 ou mesmo a 60 km. A ditadura militar deixou como herança um verdadeiro Muro de Berlim, a separar os ricos dos pobres, hierarquizando e segregando a população dentro do mesmo Distrito Federal, não muito diferente da política do Apartheid sul-africano, como claramente visto no documentário "invasores ou excluídos", feito alguns anos atrás pelo pessoal da UNB (Universidade Nacional de Brasília).
Qual o resultado dessa política para Brasília? uma cidade segregada por cor, classes sociais, por educação, enfim por muralhas invisíveis de exclusão. Ao mesmo tempo que Brasília possui o bairro mais rico do Brasil e até mesmo do mundo, o Lago Sul, reduto dos políticos e empresários mais abastados, possuímos mesmo ao lado favelas gigantescas como o Sol Nascente, que recentemente se tornou a maior favela da América do Sul, superando a Rocinha, no Rio de Janeiro. Um dos sintomas mais claros disso é o que, mesmo em Brasília, é visto como algo positivo, porém, a meu ver, é extremamente negativo: o tombamento de Brasília como patrimônio da humanidade. Por que negativo? porque Brasília foi criada para ser e encarnar o novo, e o novo, essencialmente, é mutável, pois sempre está aberto a novas experiências. Portanto, se Brasília é o local do novo enquanto experiência, assim deveria ser, um grande laboratório a céu aberto. Mas não foi assim: a classe rica, deslumbrada pela "obra de suas mãos", numa cidade criada para ela, em suma, "perfeita", quis cristalizar para todo o sempre tal maravilha. E o tombamento assim pode ser entendido: como a cristalização de um determinado momento histórico da cidade para todo o sempre. Quiseram acordar de manhã e contemplar a beleza da vista da cidade. Só existe um porém: para desfrutarem da bela vista, era preciso retirar tudo que de desagradável pudesse maculá-la. E nada macula mais uma bela vista do que a visão terrífica de favelas. Solução? disse acima: construíram as satélites bem longe das vistas, a quilômetros e quilômetros de distância, aonde eles não pudessem ser vistos. Foram todos "escondidos". Uma verdadeira "limpeza étnica". De posse da arma do tombamento, agora tinham legitimidade para combater o avanço inevitável das favelas sobre a "beleza arquitetônica" da Capital da Esperança, e expulsá-las o mais longe possível. O tombamento, portanto, é um instrumento que visa auxiliar a guerra social e o extermínio (em todos os sentidos: educacional, intelectual, cultural etc) da periferia pela playboyzada.
A cristalização de Brasília para atender os desejos da classe dominante, ignorando completamente as consequências futuras de tal desejo insano, só poderia levar a um resultado, constatado pela CODEPLAN (Companhia de Planejamento do DF): a imensa pressão populacional sobre o Distrito Federal. Pelos planos de Lúcio Costa, a previsão é que Brasília não tivesse mais do que 500 mil habitantes no ano 2000. Em 2013, o DF sozinho possui mais de 2 milhões e, se juntar com o "Entorno", isto é, as cidades goianas fora do território do Distrito Federal, dá seguramente mais de 3 milhões. E, segundo a CODEPLAN, apenas dentro do território do DF, 80% das habitações são "irregulares", um eufemismo para invasão de áreas públicas e parcelamento de áreas particulares, sem qualquer tipo de estudo de impacto ambiental ou um mínimo de planejamento urbano decente. A cristalização da cidade para que uma minúscula parcela pudesse aproveitá-la, ignorando os desejos e necessidades da imensa maioria invisibilizada, ou melhor, existente apenas quando precisa se deslocar mais de 100 km todos os dias para ir trabalhar no único lugar onde há trabalho, o centro de Brasília, gerando engarrafamentos gigantescos de manhã e à noite (um dia, Brasília foi dita como "a cidade que não tinha engarrafamentos", e é curioso notar como volta e meia sempre surge alguém a dizer que a culpa é dos pobres que "agora acham que podem comprar carro") criou uma verdadeira tragédia. Valparaíso, uma cidade do entorno, em uma recente reportagem, foi apontada como a região mais violenta do mundo, superando mesmo a América Central com seus índices assustadores de homicídios. Muito longe do utópico sonho de "Brasília, Capital da Esperança".
Como se pode ver, o sonho dourado, no qual Brasília era a cereja no bolo, já não existe mais. Brasília, longe de representar um novo Brasil, agora está a caminho, se já não o fez, de se tornar como qualquer outra grande cidade brasileira, mergulhada na desigualdade e na violência social entre as classes. De qualquer forma, era impossível fazer algo novo com uma mentalidade antiga, uma mentalidade fortemente autoritária e conservadora herdado do nosso passado colonial, tal como Raimundo Faoro disse em "Os Donos do Poder", "colocando vinho novo em odres velhos", como diz a bíblia. Brasília fracassou e, com ela, o Brasil. Mas será o fracasso permanente? não. O fracasso faz parte da vida. Ele deve servir como lição para o futuro.
"Lembre-se dos dois benefícios do fracasso. Primeiro, se você fracassa, você aprende o que não funciona; e segundo, o fracasso dá a você a oportunidade para tentar um novo caminho."
Roger Von Oech
Fontes:
CHAUI, Marilena. Brasil, Mito fundador e sociedade autoritária.
O massacre da Pacheco Fernandes. Disponível em: <http://doc.brazilia.jor.br/Construcao/GEB-massacre-Pacheco-Fernandes.shtml>
Invasores ou excluídos completo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ic3Vms_4fDQ>.
Cidades do Entorno estão entre as mais perigosas do Brasil. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2013/07/18/interna_cidadesdf,377796/cidades-do-entorno-do-df-estao-entre-as-mais-perigosas-do-brasil.shtml>
Quase 80% das casas são irregulares. Disponível em: <http://www.jornaldebrasilia.com.br/noticias/cidades/500544/quase-80-das--casas-sao---irregulares/>
Fantástico do dia 29/05, Valparaíso de Goiás, entre as mais violentas do mundo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fNQfnzEChno>
terça-feira, 23 de setembro de 2014
Um dos sintomas da forte hierarquização social da sociedade brasileira é
o uso generalizado do "você": ele é uma corruptela do pronome de
tratamento "Vossa Mercê". Quando o usamos, significa que estamos a
considerar a pessoa como sendo, de alguma forma, superior a nós, seja em
questão de idade, seja em questão de nível social, seja sob outra
forma. Ainda hoje, em Portugal, tal pronome é usado nesse
sentido apenas. Quando se é íntimo de alguém ou se quer soar como
próximo, familiar, usa-se o "tu" que, para nós, só encontramos na
linguagem bíblica ("Vós sois, Senhor, o Poderoso de Jacó"). Antes do
branqueamento europeu do século XIX, a imensa maioria da população era
composta por negros, escravos ou libertos. Para se referir a qualquer
branco, rico ou não, senhor ou estranho, usavam o "vosmecê" (lembrem da
novela Xica da Silva), depois "você". Nós, descendentes desses escravos,
recebemos esse linguajar como herança de séculos de exploração de
nossos antepassados, que se infiltrou inclusive na alta classe,
destoando totalmente de Portugal. Mas, como essa hierarquização social
já foi naturalizada, de modo que está diante de nossos olhos e não a
vemos, ou melhor, a negamos, tendemos a achar natural referir-se a todos
como "você". Mas ela está aí e é fácil de constatar porque sempre
implica violência: na infância ("sou contra a lei da palmada, criança
não tem querer, e se contestar tem que apanhar!"), na adolescência
("Aluno não tem que mandar em nada, o professor é quem manda e sabe
tudo, aluno tem que ficar calado!"), na vida adulta ("aqui quem manda
sou eu, o patrão, empregado não tem que dar pitaco em nada"), e por fim
na velhice ("os aposentados são vagabundos", disse o FHC na
presidência). Militarização da segurança pública, violência policial,
oposição conservadora da playboyzada contra a ascensão social dos mais
pobres, ao bolsa-família, ao prouni, ao mais médicos, recusa em dividir
espaço no aeroporto, na universidade etc com eles, cassação da cidadania
brasileira a quem recebe benefícios sociais, tudo isso são apenas
sintomas dessa hierarquização, onde o rico sabe o seu lugar na
sociedade, e é encima, e o pobre também, e é embaixo, e um não se
mistura com o outro, exceto profissionalmente (relações
patrão-empregado, cliente-empregado) entretanto desde o plano real tal
hierarquização vem sendo solapada, e os ricos sentem seu terriótorio
cada vez mais invadido pelos de baixo, até o ponto da esquizofrenia
total, fácil de constatar na internet com teorias como o Brasil estando
prestes a ser invadido e anexado por Cuba, os EUA pela Coreia do Norte,
manifestações pedindo um golpe militar, o PT tramando um golpe comunista
a qualquer momento, o MEC estando sob controle de uma sinistra
conspiração judaico-comunista do clube de Bildeberg, cada professor de
filosofia e história desse país ser um doutrinador disfarçado do comunismo/marximo, como a Viviane Mosé disse um dia desses na CBN etc.
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
"Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como “cultura senhorial”, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e as simetrias são sempre
transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. Enfim, quando a desigualdade é muita marcada, a relação social assume a forma nua da opressão física e/ou psíquica. A divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a
sociedade sob o signo da nação una e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a constituem. Porque temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político.
Quais os traços mais marcantes dessa sociedade autoritária? Resumidamente, diremos ser os seguintes:
- estruturada pela matriz senhorial da Colônia, disso decorre a maneira exemplar em que faz operar o princípio liberal da igualdade formal dos indivíduos perante a lei, pois no liberalismo vigora a idéia de que alguns são mais iguais do que outros. As divisões sociais são naturalizadas em
desigualdades postas como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, negros, índios, imigrantes, migrantes e idosos), e as diferenças, também naturalizadas, tendem a aparecer ora como desvios da norma (no caso das diferenças étnicas e de gênero), ora como perversão ou monstruosidade (no caso dos homossexuais, por exemplo). Essa naturalização, que esvazia a gênese
histórica da desigualdade e da diferença, permite a naturalização de todas as formas visíveis e invisíveis de violência, pois estas não são percebidas como tais;
- estruturada a partir das relações privadas, fundadas no mando e na obediência, disso decorre a recusa tácita (e às vezes explícita) de operar com os direitos civis e a dificuldade para lutar por direitos substantivos e, portanto, contra formas de opressão social e econômica: para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. Por esse motivo, as leis são
necessariamente abstratas e aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para ser transgredidas e não para ser cumpridas nem, muito menos, transformadas;
- a indistinção entre o público e o privado não é uma falha ou um atraso que atrapalham o progresso nem uma tara de sociedade subdesenvolvida ou dependente ou emergente (ou seja, lá o nome que se queira dar a um país capitalista periférico). Sua origem, como vimos há pouco, é histórica, determinada pela doação, pelo arrendamento ou pela compra das terras da Coroa, que, não dispondo de recursos para enfrentar sozinha a tarefa colonizadora, deixou-a nas mãos dos particulares, que, embora sob o comando legal do monarca e sob o monopólio econômico da metrópole, dirigiam senhorialmente seus domínios e dividiam a autoridade administrativa com o
estamento burocrático. Essa partilha do poder torna-se, no Brasil, não uma ausência do Estado (ou uma falta de Estado), nem, como imaginou a ideologia da “identidade nacional”, um excesso de Estado para preencher o vazio deixado por uma classe dominante inepta e classes populares atrasadas ou alienadas, mas é a forma mesma de realização da política e de organização do
aparelho do Estado em que os governantes e parlamentares “reinam” ou, para usar a expressão e Faoro, “são donos o poder”, mantendo com os cidadãos relações pessoais de favor, clientela e tutela, e praticam a corrupção sobre os fundos públicos. Do ponto de vista dos direitos, há um encolhimento do espaço público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do
espaço privado.
- realizando práticas alicerçadas em ideologias de longa data, como as do nacionalismo militante apoiado no “caráter nacional” ou na “identidade nacional”, que mencionamos anteriormente, somos uma formação social que desenvolve ações e imagens com força suficiente para bloquear o trabalho dos conflitos e das contradições sociais, econômicas e políticas, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Isso não significa que conflitos e contradições sejam ignorados, e sim que recebem uma significação precisa: são sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece como resposta única a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral.
Em suma, a sociedade auto-organizada, que expõe conflitos e contradições, é claramente percebida como perigosa para o Estado (pois este é oligárquico) e para o funcionamento “racional” do mercado (pois este só pode operar graças ao ocultamento da divisão social). Em outras palavras, a classe dominante brasileira é altamente eficaz para bloquear a esfera pública das ações sociais e da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, isto é, uma ignorância quanto ao funcionamento republicano e democrático, e sim um conjunto positivo de ações determinadas que
traduzem uma maneira também determinada de lidar com a esfera da opinião: de um lado, os mass media monopolizam a informação, e, de outro, o discurso do poder define o consenso como unanimidade, de sorte que a discordância é posta como perigo, atraso ou obstinação vazia;
- por estar determinada, em sua gênese histórica, pela “cultura senhorial”34 e estamental que preza a fidalguia e o privilégio e que usa o consumo de luxo como instrumento de demarcação da distância social entre as classes, nossa sociedade tem o fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se depreende do uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível
pertinência de sua atribuição (o caso mais corrente sendo o uso de “doutor” quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior e “doutor” é o substituto imaginário para antigos títulos de nobreza), ou da manutenção de criadagem doméstica, cujo número indica aumento (ou diminuição) de prestígio e de status, ou, ainda, como se nota na grande valorização dos diplomas que credenciam atividades não-manuais e no conseqüente desprezo pelo trabalho manual, como se vê no enorme descaso pelo salário mínimo, nas trapaças no cumprimento dos insignificantes direitos trabalhistas existentes e na culpabilização dos desempregados pelo desemprego, repetindo indefinidamente o padrão de comportamento e de ação que operava, desde a Colônia, para a desclassificação dos homens livres pobres. A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a existência de milhões de crianças sem infância - conforme definição de José de Souza Martins - e a exploração do trabalho dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos milhões de desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos miseráveis. A existência de crianças sem infância é vista como tendência natural dos pobres à vadiagem, à mendicância e à criminalidade. Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e à ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham fora, se não forem professoras, enfermeiras ou assistentes sociais, são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.
O Brasil ocupa o terceiro lugar mundial em índice de desemprego, gasta por volta de 90 bilhões de reais por ano em instrumentos de segurança privada e pública, ocupa o segundo lugar mundial nos índices de concentração da renda e de má distribuição da riqueza, mas ocupa o oitavo lugar mundial em termos do Produto Interno Bruto. A desigualdade na distribuição da renda - 2% possuem 98% da renda nacional, enquanto 98% possuem 2% dessa renda - não é percebida como forma dissimulada de apartheid social ou como socialmente inaceitável, mas é considerada natural e normal, ao mesmo tempo que explica por que o “povo ordeiro e pacífico” dispende anualmente fortunas em segurança, isto é, em instrumentos de proteção contra os excluídos da riqueza social.
Em outras palavras, a sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes. O autoritarismo social, que, enquanto “cultura senhorial”, naturaliza as desigualdades e exclusões socioeconômicas, vem exprimir-se no modo de funcionamento da política. Quando se observa a história econômica do país, periodizada segundo a ascensão e o declínio dos ciclos econômicos e, portanto, segundo a subida e a queda de poderes regionais, e quando se observa a história política do país, em que o poderio regional é continuamente contrastado com o poder central, que ameaça as regiões para assegurar a suposta racionalidade e necessidade da centralização, tem-se uma pista para compreender por que os partidos políticos são associações de famílias rivais ou clubs privés das oligarquias regionais. Esses partidos arrebanham a classe média regional e nacional em torno do imaginário autoritário, isto é, da ordem (que na verdade nada mais é do que o ocultamento dos conflitos entre poderes regionais e poder central, e ocultamento dos
conflitos gerados pela divisão social das classes sociais), e do imaginário providencialista, isto é, o progresso. Mantêm com os eleitores quatro tipos principais de relações: a de cooptação, a de favor e clientela, a de tutela e a da promessa salvacionista ou messiânica.
Posta no momento em que o mito fundador produz a sagração do governante, a política se oculta sob a capa da representação teológica, oscilando entre a sacralização e a adoração do bom governante e a satanização e a execração do mau governante. Isso não impede, porém, que, com clareza meridiana, as classes populares percebam o Estado como “o poder dos outros” - a expressão
é de Teresa Caldeira - e tendam a vê-lo apenas sob a face do poder Executivo, os poderes Legislativo e Judiciário ficando reduzidos ao sentimento de que o primeiro é corrupto e o segundo, injusto. A identificação do Estado com o Executivo, a desconfiança em face do Legislativo (cujas atribuições e funções não estão claras para ninguém, e cuja venalidade escandaliza, levando a difundir-se a idéia de que seria melhor não o ter) e o medo despertado pelo poder Judiciário (por ser a seara exclusiva dos letrados ou doutores, secreto e incompreensível), somados ao autoritarismo social e ao imaginário teológico-político, instigam o desejo permanente e um Estado forte para a “salvação
nacional”. Isso e reforçado pelo fato de que a classe dirigente instalada no aparato estatal percebe a sociedade como inimiga e perigosa, e procura bloquear as iniciativas dos movimentos sociais, sindicais e populares."
Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, Marilena Chaui.
transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. Enfim, quando a desigualdade é muita marcada, a relação social assume a forma nua da opressão física e/ou psíquica. A divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a
sociedade sob o signo da nação una e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a constituem. Porque temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político.
Quais os traços mais marcantes dessa sociedade autoritária? Resumidamente, diremos ser os seguintes:
- estruturada pela matriz senhorial da Colônia, disso decorre a maneira exemplar em que faz operar o princípio liberal da igualdade formal dos indivíduos perante a lei, pois no liberalismo vigora a idéia de que alguns são mais iguais do que outros. As divisões sociais são naturalizadas em
desigualdades postas como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, negros, índios, imigrantes, migrantes e idosos), e as diferenças, também naturalizadas, tendem a aparecer ora como desvios da norma (no caso das diferenças étnicas e de gênero), ora como perversão ou monstruosidade (no caso dos homossexuais, por exemplo). Essa naturalização, que esvazia a gênese
histórica da desigualdade e da diferença, permite a naturalização de todas as formas visíveis e invisíveis de violência, pois estas não são percebidas como tais;
- estruturada a partir das relações privadas, fundadas no mando e na obediência, disso decorre a recusa tácita (e às vezes explícita) de operar com os direitos civis e a dificuldade para lutar por direitos substantivos e, portanto, contra formas de opressão social e econômica: para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. Por esse motivo, as leis são
necessariamente abstratas e aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para ser transgredidas e não para ser cumpridas nem, muito menos, transformadas;
- a indistinção entre o público e o privado não é uma falha ou um atraso que atrapalham o progresso nem uma tara de sociedade subdesenvolvida ou dependente ou emergente (ou seja, lá o nome que se queira dar a um país capitalista periférico). Sua origem, como vimos há pouco, é histórica, determinada pela doação, pelo arrendamento ou pela compra das terras da Coroa, que, não dispondo de recursos para enfrentar sozinha a tarefa colonizadora, deixou-a nas mãos dos particulares, que, embora sob o comando legal do monarca e sob o monopólio econômico da metrópole, dirigiam senhorialmente seus domínios e dividiam a autoridade administrativa com o
estamento burocrático. Essa partilha do poder torna-se, no Brasil, não uma ausência do Estado (ou uma falta de Estado), nem, como imaginou a ideologia da “identidade nacional”, um excesso de Estado para preencher o vazio deixado por uma classe dominante inepta e classes populares atrasadas ou alienadas, mas é a forma mesma de realização da política e de organização do
aparelho do Estado em que os governantes e parlamentares “reinam” ou, para usar a expressão e Faoro, “são donos o poder”, mantendo com os cidadãos relações pessoais de favor, clientela e tutela, e praticam a corrupção sobre os fundos públicos. Do ponto de vista dos direitos, há um encolhimento do espaço público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do
espaço privado.
- realizando práticas alicerçadas em ideologias de longa data, como as do nacionalismo militante apoiado no “caráter nacional” ou na “identidade nacional”, que mencionamos anteriormente, somos uma formação social que desenvolve ações e imagens com força suficiente para bloquear o trabalho dos conflitos e das contradições sociais, econômicas e políticas, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Isso não significa que conflitos e contradições sejam ignorados, e sim que recebem uma significação precisa: são sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece como resposta única a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral.
Em suma, a sociedade auto-organizada, que expõe conflitos e contradições, é claramente percebida como perigosa para o Estado (pois este é oligárquico) e para o funcionamento “racional” do mercado (pois este só pode operar graças ao ocultamento da divisão social). Em outras palavras, a classe dominante brasileira é altamente eficaz para bloquear a esfera pública das ações sociais e da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, isto é, uma ignorância quanto ao funcionamento republicano e democrático, e sim um conjunto positivo de ações determinadas que
traduzem uma maneira também determinada de lidar com a esfera da opinião: de um lado, os mass media monopolizam a informação, e, de outro, o discurso do poder define o consenso como unanimidade, de sorte que a discordância é posta como perigo, atraso ou obstinação vazia;
- por estar determinada, em sua gênese histórica, pela “cultura senhorial”34 e estamental que preza a fidalguia e o privilégio e que usa o consumo de luxo como instrumento de demarcação da distância social entre as classes, nossa sociedade tem o fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se depreende do uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível
pertinência de sua atribuição (o caso mais corrente sendo o uso de “doutor” quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior e “doutor” é o substituto imaginário para antigos títulos de nobreza), ou da manutenção de criadagem doméstica, cujo número indica aumento (ou diminuição) de prestígio e de status, ou, ainda, como se nota na grande valorização dos diplomas que credenciam atividades não-manuais e no conseqüente desprezo pelo trabalho manual, como se vê no enorme descaso pelo salário mínimo, nas trapaças no cumprimento dos insignificantes direitos trabalhistas existentes e na culpabilização dos desempregados pelo desemprego, repetindo indefinidamente o padrão de comportamento e de ação que operava, desde a Colônia, para a desclassificação dos homens livres pobres. A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a existência de milhões de crianças sem infância - conforme definição de José de Souza Martins - e a exploração do trabalho dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos milhões de desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos miseráveis. A existência de crianças sem infância é vista como tendência natural dos pobres à vadiagem, à mendicância e à criminalidade. Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e à ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham fora, se não forem professoras, enfermeiras ou assistentes sociais, são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.
O Brasil ocupa o terceiro lugar mundial em índice de desemprego, gasta por volta de 90 bilhões de reais por ano em instrumentos de segurança privada e pública, ocupa o segundo lugar mundial nos índices de concentração da renda e de má distribuição da riqueza, mas ocupa o oitavo lugar mundial em termos do Produto Interno Bruto. A desigualdade na distribuição da renda - 2% possuem 98% da renda nacional, enquanto 98% possuem 2% dessa renda - não é percebida como forma dissimulada de apartheid social ou como socialmente inaceitável, mas é considerada natural e normal, ao mesmo tempo que explica por que o “povo ordeiro e pacífico” dispende anualmente fortunas em segurança, isto é, em instrumentos de proteção contra os excluídos da riqueza social.
Em outras palavras, a sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes. O autoritarismo social, que, enquanto “cultura senhorial”, naturaliza as desigualdades e exclusões socioeconômicas, vem exprimir-se no modo de funcionamento da política. Quando se observa a história econômica do país, periodizada segundo a ascensão e o declínio dos ciclos econômicos e, portanto, segundo a subida e a queda de poderes regionais, e quando se observa a história política do país, em que o poderio regional é continuamente contrastado com o poder central, que ameaça as regiões para assegurar a suposta racionalidade e necessidade da centralização, tem-se uma pista para compreender por que os partidos políticos são associações de famílias rivais ou clubs privés das oligarquias regionais. Esses partidos arrebanham a classe média regional e nacional em torno do imaginário autoritário, isto é, da ordem (que na verdade nada mais é do que o ocultamento dos conflitos entre poderes regionais e poder central, e ocultamento dos
conflitos gerados pela divisão social das classes sociais), e do imaginário providencialista, isto é, o progresso. Mantêm com os eleitores quatro tipos principais de relações: a de cooptação, a de favor e clientela, a de tutela e a da promessa salvacionista ou messiânica.
Posta no momento em que o mito fundador produz a sagração do governante, a política se oculta sob a capa da representação teológica, oscilando entre a sacralização e a adoração do bom governante e a satanização e a execração do mau governante. Isso não impede, porém, que, com clareza meridiana, as classes populares percebam o Estado como “o poder dos outros” - a expressão
é de Teresa Caldeira - e tendam a vê-lo apenas sob a face do poder Executivo, os poderes Legislativo e Judiciário ficando reduzidos ao sentimento de que o primeiro é corrupto e o segundo, injusto. A identificação do Estado com o Executivo, a desconfiança em face do Legislativo (cujas atribuições e funções não estão claras para ninguém, e cuja venalidade escandaliza, levando a difundir-se a idéia de que seria melhor não o ter) e o medo despertado pelo poder Judiciário (por ser a seara exclusiva dos letrados ou doutores, secreto e incompreensível), somados ao autoritarismo social e ao imaginário teológico-político, instigam o desejo permanente e um Estado forte para a “salvação
nacional”. Isso e reforçado pelo fato de que a classe dirigente instalada no aparato estatal percebe a sociedade como inimiga e perigosa, e procura bloquear as iniciativas dos movimentos sociais, sindicais e populares."
Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, Marilena Chaui.
segunda-feira, 15 de setembro de 2014
Reflexões Avulsas
Querem saber quais são as coisas mais importantes e prioritárias nesse país? observem a constituição. Primeiro de tudo o Estado (títulos III ao V, mais da metade do texto!), daí a imensa e parasitária burocracia e complexidade por exemplo para abrir uma empresa e pagar impostos. O país vive para o Estado, não o Estado para o país; depois a atividade econômica (título VII), que incluem banqueiros e grandes empresários bilionários. Sem a corrupção, propinas e suas "doações eleitorais" aos partidos, é impossível a parasitária burocracia estatal se manter, ao mesmo tempo que é impossível ser empresário bilionário e aparecer na Forbes sem fraudar quase todas a licitações estatais e mamar nas tetas das dezenas de incentivos estatais na forma de subsídios e financiamentos facilitados; só lá no final, no distante título VIII, é que aparece a ordem social, com a "preocupação" com a saúde, a educação, cultura, desportos etc. Vejam que o recado é claro: a "ordem social" não é prioridade no Brasil, quando muito aparece no fim da fila e olhe lá. Só vai ficar com as migalhas de atenção e dinheiro que porventura sobrar das áreas mais importantes. Vendo por essa ótica, não parece mais estranho que a saúde fique jogadas aos cantos dos hospitais, a educação seja na base do mimeógrafo como na minha cidade, os presídios não recuperem ninguém, pelo contrário, são masmorras, que os idosos sejam desrespeitados pelos mais novos, que seja visto como normal crianças serem espancadas e xingadas de filha da puta pelo pai e mãe, que ninguém goste da lei da palmada, que a cultura e o esporte, mesmo o profissional e olímpico, não tenham apoio algum etc, concordam?
Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Querem saber quais são as coisas mais importantes e prioritárias nesse país? observem a constituição. Primeiro de tudo o Estado (títulos III ao V, mais da metade do texto!), daí a imensa e parasitária burocracia e complexidade por exemplo para abrir uma empresa e pagar impostos. O país vive para o Estado, não o Estado para o país; depois a atividade econômica (título VII), que incluem banqueiros e grandes empresários bilionários. Sem a corrupção, propinas e suas "doações eleitorais" aos partidos, é impossível a parasitária burocracia estatal se manter, ao mesmo tempo que é impossível ser empresário bilionário e aparecer na Forbes sem fraudar quase todas a licitações estatais e mamar nas tetas das dezenas de incentivos estatais na forma de subsídios e financiamentos facilitados; só lá no final, no distante título VIII, é que aparece a ordem social, com a "preocupação" com a saúde, a educação, cultura, desportos etc. Vejam que o recado é claro: a "ordem social" não é prioridade no Brasil, quando muito aparece no fim da fila e olhe lá. Só vai ficar com as migalhas de atenção e dinheiro que porventura sobrar das áreas mais importantes. Vendo por essa ótica, não parece mais estranho que a saúde fique jogadas aos cantos dos hospitais, a educação seja na base do mimeógrafo como na minha cidade, os presídios não recuperem ninguém, pelo contrário, são masmorras, que os idosos sejam desrespeitados pelos mais novos, que seja visto como normal crianças serem espancadas e xingadas de filha da puta pelo pai e mãe, que ninguém goste da lei da palmada, que a cultura e o esporte, mesmo o profissional e olímpico, não tenham apoio algum etc, concordam?
Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
sábado, 6 de setembro de 2014
O Poder do Voto Nulo
Frequentemente, ataca-se o voto nulo como uma opção inválida de voto. Diz-se que ele é inútil, pois nenhum resultado fará na contagem dos votos, ou diz-se que ele na verdade é um auxílio à eleição de ladrões na política. Portanto, não passa de burrice e besteira. O que tem de verdade nisso tudo?
De fato, o voto nulo é inútil no sistema eleitoral brasileiro; ele não conta como voto válido, assim como a opção "branco". Portanto, não importa a quantidade de votos brancos e nulos, se houver um único voto válido que seja, esta eleição será considerada válida. Tal diz a lei. E daí? devemos lembrar que esta regra foi criada pelos políticos e para os políticos, obviamente visando seus interesses pessoais. Então, eles não poderiam se dar ao luxo de deixar uma brecha dessas escancarada por aí, pois o sistema deve ser armado de tal maneira que não haja qualquer chance de defesa ao eleitor, tal como um homem apunhalado quando jaz caído na terra. Isso explica por exemplo o voto obrigatório, porque se se der chance de ir ou não votar ao eleitor, seria preciso aumentar enormemente o valor das propinas pagas, para "convencê-lo" a ir votar. Obrigando-o, tudo que é preciso é usar de técnicas simples de manipulação, com cartazes, propaganda etc para fazê-lo votar em alguém, porque ele por lei já está arrestado para a urna. O sistema se autopreserva a si mesmo.
Bom, mas se se está forçado a ir ter com a urna, ao menos temos escolha: podemos votar em alguém ou não. De acordo com alguns, só existe a opção de votar em alguém pois, se não se votar (em alguém), você ajuda a eleger os piores candidatos, pois estará renunciando a esta "opção" de votar em alguém. Que espécie de lógica é esta? primeiro: Em QUALQUER ESCOLHA, existem duas opções: a opção de fazer ou não fazer. Isso é imutável, vale para qualquer escolha. É simplesmente ridículo descartar a opção de não fazer, e exigir validade apenas à opção de fazer. Se qualquer uma dessas duas opções for cortada, então já não é escolha, é obrigação. A Igreja Católica afirma que o celibato clerical é uma "escolha", no entanto, no rito latino, se alguém quiser ser padre, é OBRIGADO a ser celibatário. Como é possível o celibato ser uma escolha se você não têm a opção de ser padre e não-celibatário? torna-se portanto mera obrigação, chamem como quiserem. Da mesma forma o voto: para ser de fato uma escolha, é imprescindível você ter a opção de votar em alguém ou não votar em ninguém. Logo, o voto nulo ou mesmo branco é não apenas justo, como indispensável para uma verdadeira opção consciente.
Mas, como dito acima, o voto nulo não conta como voto válido, logo na prática é totalmente inócuo. Será? embora a lei formada à revelia do cidadão descarte sua "utilidade", será mesmo "inútil"? digo que não. Ainda que tenham despojado o voto de qualquer consequência prática, lei alguma pode retirar sua, a meu ver, principal "utilidade": o simbolismo. O simbolismo é dizer: "Ei, eu não concordo com estas escolhas que deram-me para votar, portanto não votarei em ninguém. Melhor ainda, não concordo com o próprio sistema eleitoral e RECUSO-ME A PARTICIPAR." Este é o simbolismo do voto nulo: anulando, você está recusando-se a participar do atual sistema, um sistema no qual os candidatos são dados prontos e acabados, pois foram todos escolhidos pelos partidos, sem qualquer tipo de participação popular verdadeira a não ser a choldra de figurões na convenção. Você se recusa a apenas ter que escolher pessoas que outros (interesses) escolheram para você. Você se recusa a participar de um sistema eleitoral criado pelo general Golbery do Couto e Silva, esse câncer plantado no coração da democracia na época da ditadura, e que não sofreu qualquer mudança mais substancial em quase 30 anos de liberdade democrática. E, isso, lei alguma pode proibir o simbolismo poderoso do voto nulo, por mais que tentem.
O voto nulo, portanto, foi mutilado desde o berço por ameaçar todo o sistema eleitoral, feito sob medida para ladrões e malfeitores se perpetuarem na política. Porém, por mais que tentassem, jamais conseguiram retirar o simbolismo dele. Continuamos então com uma escolha, arranhada, mas verdadeira: podemos escolher alguém para ser o salvador da pátria, crendo ingenuamente que o problema está na ética pessoal do candidato, e não num sistema em que, não importa o quão ética é a pessoa, ela é obrigada a ser corromper porque o sistema assim exige, e sermos ingênuos a vida inteira, ou podemos aceitar a dura e fria realidade de que é o sistema, e não as pessoas, que está errada desde o início, sendo portanto "ingenuidade pedir àqueles que detém o poder para que mudem o poder" (Giordano Bruno).
Fontes
O Príncipe, Maquiavel.
Discurso sobre a Servidão Voluntária, La Boétie.
http://super.abril.com.br/cultura/adianta-votar-nulo-446574.shtml
Frequentemente, ataca-se o voto nulo como uma opção inválida de voto. Diz-se que ele é inútil, pois nenhum resultado fará na contagem dos votos, ou diz-se que ele na verdade é um auxílio à eleição de ladrões na política. Portanto, não passa de burrice e besteira. O que tem de verdade nisso tudo?
De fato, o voto nulo é inútil no sistema eleitoral brasileiro; ele não conta como voto válido, assim como a opção "branco". Portanto, não importa a quantidade de votos brancos e nulos, se houver um único voto válido que seja, esta eleição será considerada válida. Tal diz a lei. E daí? devemos lembrar que esta regra foi criada pelos políticos e para os políticos, obviamente visando seus interesses pessoais. Então, eles não poderiam se dar ao luxo de deixar uma brecha dessas escancarada por aí, pois o sistema deve ser armado de tal maneira que não haja qualquer chance de defesa ao eleitor, tal como um homem apunhalado quando jaz caído na terra. Isso explica por exemplo o voto obrigatório, porque se se der chance de ir ou não votar ao eleitor, seria preciso aumentar enormemente o valor das propinas pagas, para "convencê-lo" a ir votar. Obrigando-o, tudo que é preciso é usar de técnicas simples de manipulação, com cartazes, propaganda etc para fazê-lo votar em alguém, porque ele por lei já está arrestado para a urna. O sistema se autopreserva a si mesmo.
Bom, mas se se está forçado a ir ter com a urna, ao menos temos escolha: podemos votar em alguém ou não. De acordo com alguns, só existe a opção de votar em alguém pois, se não se votar (em alguém), você ajuda a eleger os piores candidatos, pois estará renunciando a esta "opção" de votar em alguém. Que espécie de lógica é esta? primeiro: Em QUALQUER ESCOLHA, existem duas opções: a opção de fazer ou não fazer. Isso é imutável, vale para qualquer escolha. É simplesmente ridículo descartar a opção de não fazer, e exigir validade apenas à opção de fazer. Se qualquer uma dessas duas opções for cortada, então já não é escolha, é obrigação. A Igreja Católica afirma que o celibato clerical é uma "escolha", no entanto, no rito latino, se alguém quiser ser padre, é OBRIGADO a ser celibatário. Como é possível o celibato ser uma escolha se você não têm a opção de ser padre e não-celibatário? torna-se portanto mera obrigação, chamem como quiserem. Da mesma forma o voto: para ser de fato uma escolha, é imprescindível você ter a opção de votar em alguém ou não votar em ninguém. Logo, o voto nulo ou mesmo branco é não apenas justo, como indispensável para uma verdadeira opção consciente.
Mas, como dito acima, o voto nulo não conta como voto válido, logo na prática é totalmente inócuo. Será? embora a lei formada à revelia do cidadão descarte sua "utilidade", será mesmo "inútil"? digo que não. Ainda que tenham despojado o voto de qualquer consequência prática, lei alguma pode retirar sua, a meu ver, principal "utilidade": o simbolismo. O simbolismo é dizer: "Ei, eu não concordo com estas escolhas que deram-me para votar, portanto não votarei em ninguém. Melhor ainda, não concordo com o próprio sistema eleitoral e RECUSO-ME A PARTICIPAR." Este é o simbolismo do voto nulo: anulando, você está recusando-se a participar do atual sistema, um sistema no qual os candidatos são dados prontos e acabados, pois foram todos escolhidos pelos partidos, sem qualquer tipo de participação popular verdadeira a não ser a choldra de figurões na convenção. Você se recusa a apenas ter que escolher pessoas que outros (interesses) escolheram para você. Você se recusa a participar de um sistema eleitoral criado pelo general Golbery do Couto e Silva, esse câncer plantado no coração da democracia na época da ditadura, e que não sofreu qualquer mudança mais substancial em quase 30 anos de liberdade democrática. E, isso, lei alguma pode proibir o simbolismo poderoso do voto nulo, por mais que tentem.
O voto nulo, portanto, foi mutilado desde o berço por ameaçar todo o sistema eleitoral, feito sob medida para ladrões e malfeitores se perpetuarem na política. Porém, por mais que tentassem, jamais conseguiram retirar o simbolismo dele. Continuamos então com uma escolha, arranhada, mas verdadeira: podemos escolher alguém para ser o salvador da pátria, crendo ingenuamente que o problema está na ética pessoal do candidato, e não num sistema em que, não importa o quão ética é a pessoa, ela é obrigada a ser corromper porque o sistema assim exige, e sermos ingênuos a vida inteira, ou podemos aceitar a dura e fria realidade de que é o sistema, e não as pessoas, que está errada desde o início, sendo portanto "ingenuidade pedir àqueles que detém o poder para que mudem o poder" (Giordano Bruno).
Fontes
O Príncipe, Maquiavel.
Discurso sobre a Servidão Voluntária, La Boétie.
http://super.abril.com.br/cultura/adianta-votar-nulo-446574.shtml
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