quinta-feira, 26 de junho de 2014

Ultramontanismo: as origens do neoconservadorismo no Brasil

Frequentemente, nos deparamos por aí com afirmações e linhas de pensamento que, à primeira vista, podem parecer produto de mentes insanas, psicopáticas ou simplesmente ignorantes. Assim, por exemplo, o pastor Marcos Feliciano e suas afirmações de que os africanos são um povo amaldiçoado por Deus através de Noé e que, portanto, esta é a causa das catástrofes e tragédias que se abatem diariamente por lá. Ou afirmações de um cara que não pouca gente louva como o maior filósofo brasileiro contemporâneo, inclusive significativamente parte do meio acadêmico, Olavo de Carvalho, que afirma que a teoria da gravitação universal está errada, inclusivamente sua irmã mais nova, a teoria da relatividade, que é o sol que gira em torno da terra, que a coca-cola é feita com fetos humanos, que é o PT é uma espécie de grande satã a la Khomeini, que há uma conspiração comunista mundial etc. Ou o Lobão, conhecido músico, que um dia desses disse que a ditadura militar arrancou apenas umas unhazinhas e já está, coisa de somenos importância. Para as pessoas que estudam e vão atrás pra saber das coisas, esses e outros elementos podem causar um choque porque, aparentemente, eles saíram do nada, são uma espécie de anomalia no mundo em que reinam os conceitos de democracia e direitos humanos, parecem ter saído diretamente da idade média, em suma, não deveriam existir. Mas acontece que não é bem assim.
Na verdade, essas linha de pensamento, que poderíamos perfeitamente chamar de conservadorismo, tem uma origem. Na verdade verdadeira, eles são os legítimos representantes de nosso passado, o qual tentamos esquecer a todo custo. Tudo começou lá atraś, com a Revolução Francesa. Ela foi o divisor de águas entre uma antiga e uma nova mentalidade. Escravidão, servidão, absolutismo monárquismo, discriminações raciais, étnicas, sociais, fanatismo religioso, tudo isso, visto como coisas naturais e ordenadas pela natureza e pelas divindades, começou um influxo lento, mas constante, castigado pelo bombardeamento de novas ideias de igualdade, liberdade, fraternidade, liberdade de expressão, de crença, de pensamento, de imprensa, de trabalho, de associação, de ir e vir, entre dezenas de outros direitos que, antes eram simplesmente impensáveis para nossos ancestrais. Ora, é evidente que nosso atual mundo tem muita coisa ruim, e muito daquelas antigas práticas está em plenos pulmões ao redor do mundo e mesmo no Brasil. Mas é inegável que, nos últimos 200 e tal anos, estamos incrivelmente melhores em nossas condições de vida que nossos tataravós.
A antiga linha de pensamento foi derrotada, mas não desapareceu. Continuou sobrevivendo em setores da sociedade fiéis, e agora saudosistas do antigo passado, romantizado e tratado como um período lindo e maravilhoso. Não é à toa que a expressão "no meu tempo não era assim" é frequentemente usada por seus adeptos ainda hoje. Um dos setores mais importantes, cujas ideias continuaram praticamente intactas, foi na religião cristã, protestantes e seus netos pentecostais, católicas e outras igrejas. Particularmente na igreja católica, esse conservadorismo se fortaleceu aos poucos, dado que uma das consequências da revolução foi a hostilidade frente a ela enquanto instituição, vista como anacrônica, ultrapassada e baluarte do antigo regime dos Bourbons (na França) e, portanto, a igreja tomou como inimigos mortais todas estas ideias novas, se jogando nos braços do conservadorismo sem qualquer exame crítico mais sério. Conservadorismo e doutrina católica se fundiaram numa simbiose. Foi nesse ambiente que surgiu, ou melhor, ressurgiu, um movimento dentro dela denominado Ultramontanismo. Esse movimento defendia que cabia à igreja se opor as todas estas ideias novas, entendidas como artifício e embustes do demônio, como guardiã da sã doutrina, identificada com o que de pior a igreja havia herdado em seus 2000 anos de história. Em suma, ela se entendia como estando em guerra contra um mundo em decadência, pecaminoso e dominado pelo diabo e suas "estradas para o inferno", como apropriadamente declarou Gregório XVI ao proibir ferrovias em Roma e nos Estados Pontifícios, e a única salvação era a própria igreja. Uma instituição em guerra contra o mundo moderno. Uma dessas ideias que herdou do império romano foi o conceito de monarquia absoluta, no qual a igreja funcionava hierarquicamente, de modo que havia alguém que estava no topo da hierarquia, aquele que julga a todos, e por ninguém é julgado, exceto por Deus mesmo. Esta pessoa é o Romano Pontífice, nome oficial do que conhecemos como "papa". Ele detém o poder total e absoluto sobre todos e cada um dos fiéis católicos. No século XIX, o século em que o ultramontanismo veio com força, a total centralização do poder papal foi sacramentada pelo concílio Vaticano I, que declarou o sumo pontífice como infalível, literalmente, em matérias doutrinárias da igreja. A situação, dentro da igreja católica, permanece exatamente igual desde esse tempo até os dias atuais.
Essa noção de "bastião contra o mundo moderno" calou fundo em países extremamente católicos como o Brasil, desde já acostumados ao secular absolutismo monárquico dos reis e do clero e seu violento autoritarismo. Mas o mundo não para, nem nunca parou, e a ciência e a tecnologica seguiram seu caminho, até chegarmos aos nossos moderníssimos celulares snapdragon, dual-core, quad-core, touchscreen etc. À medida que a tecnologia e a ciência foram tomando conta, seu antigo discurso de que tudo é do demônio, outrora tão persuassivo exatamente porque baseado na ignorância de como a natureza funcionava e na pura superstição, foi caindo não apenas em descrédito, mas também no ridículo, de modo que até mesmo eles, fustigados por todos os lados, acabaram aceitando que as ferrovias e a iluminação a gás não eram assim tão demoníacas como tinham suposto.
No Brasil, porém, esta forma de pensamento se expandiu para além da igreja católica, e se espalhou para outros setores da sociedade, entrando em simbiose com nosso conhecido pensamento racista e violentamente discriminatório e excludente, que separa rigidamente ricos e pobres, cada um seu lugar, sem qualquer chance de convivência entre um e outro exceto a relação patrão-empregado. Ela veio junto com o primeiro europeu que pisou por aqui mas, como o Brasil sempre imita o que vem de fora, rapidamente se espalhou por aqui e reforçou todos estes preconceitos que a classe dominante já nutria há tempos. É daí que saem todos aqueles que eu nomeei no primeiro parágrafo, além de Maria Marin, presidente da CBF, Pondé, Paulo Maluf, Dom Luís Gastão, príncipe herdeiro do império brasileiro, João Ricardo Moderno, presidente da academia brasileira de filosofia, raquel sheherazade, marcos feliciano, Jair bolsonaro e mais uma infindável lista. Eles, na verdade, não são uma anomalia dentro de um mundo democrático e com direitos humanos assegurados na constituição, são simplesmente os últimos representantes do passado obscuro da humanidade que, devido ao fato de sermos um país predominantemente semi-analfabeto, ainda fazem muito sucesso por aqui, já que 70% do país não tem a menor condição de ler e interpretar um simples recorte de jornal, que dirá o que passa na TV, com suas conhecidas técnicas simplórias de convencimento do público.
Acredito que estamos num ponto de nossa história enquanto país semelhante ao da França no período imediatamente anterior à revolução francesa, ou ao dos Estados Unidos durante a guerra de secessão. Um ponto em que temos duas opções: ou desperdiçarmos novamente a chance de sermos um país grande e com um ótimo nível de vida para todos, sem grandes desigualdades sociais, e continuamos a sermos um país de mente provinciana, fechada, satisfeita em sermos uma grande roça tamanho família com capitães do mato e capatazes e coroneis e sacerdotes, todos nos dizendo o que temos que fazer, ou abrirmos a porta do futuro tendo coragem de olhar para nosso próprio passado e presente, nos aceitar como somos e fazermos um futuro melhor sem racismo, sem homofobia, sem fanatismo religioso nem político, nem genocídios em favelas com os branquinhos do condomínio de luxo aplaudindo e dando medalha para o policial que mais mata por mês. Se fizermos isso, investiremos pesado em educação, em ciências e em filosofia. E todos estes que resquícios de nosso sombrio passado, que ainda têm um grau razoável de poder em nossos corações e mentes (e na política), desaparecerão e finalmente ocuparão o lugar em que já deveriam estar, em algum livro empoeirado de história do Brasil.

Eduardo Viveiros.

Ultramontanismo: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_ultramontanismo.htm

segunda-feira, 23 de junho de 2014

A Apatia do Eleitor Brasileiro

    Frequentemente, acusa-se o eleitor brasileiro de ser inepto, alienado, nem um pouco preocupado com os destinos políticos do país, sequer lembrando-se em quem votou nas últimas eleições, de não fiscalizar seus próprios representantes, e por fim de não se interessar por política. Mas será mesmo verdade tais acusações? ou melhor: qual a origem do suposto desinteresse da população pelo mundo político?
    Como quase tudo na vida, há uma origem histórica para esse comportamento: não possuimos uma tradição democrática. Isso é fácil de constatar: o atual período democrático brasileiro, chamado Nova República, começou em 1985. Portanto, já lá vão 29 anos de democracia. Este é o maior período de democracia em todos os 192 anos de história do Brasil independente. A imensa maioria do período do Brasil independente passou-se sob a sombra de ditaduras militares, coronelismo, autoritarismo, racismo, nazismo, fascismo, entre outros "ismos". O que isso significou? significou a completa e total exclusão sistemática da imensa maioria da população brasileira de todo o processo político, pois todos estes acontecimentos nunca passaram de meras briguinhas internas entre a elite brasileira a respeito do melhor modo de "conduzir o Brasil ao desenvolvimento", isto é, como ficar mais rico e poderoso enquanto classe. Historicamente, portanto, a política jamais fez parte do cotidiano da imensa maioria da população, sempre foi vista como algo alienígena e estranho, "coisa de gente estudada", como vez por outra vê-se alguém mais velho a falar. O que de facto fazia parte do cotidiano era a necessidade diária de sobreviver, e como conseguir amanhã algo para comer ou beber.
    Isso fica bastante claro ao se olhar a história do voto no Brasil: no período imperial, só podia ser eleitor quem tivesse uma renda mínima de 100 mil réis. Como se pode imaginar, tal quantia era inimaginável para a imensa maioria da população, maioritariamente composta por negros (alforriados ou escravos), índios e brancos pobres, todos completamente analfabetos (outro requisito para ser eleitor), já que a instrução era privilégio da classe rica. No fim do império, estima-se que apenas 10% da população podia votar.
    No período republicano, nada mudou: O primeiro presidente civil da história do Brasil, Prudente de Morais, foi eleito com 270 mil votos, ou 2% da população. Somente no início do século XX, haveria uma tímida mudança na quantidade de eleitores com o direito ao voto feminino conquistado em 1932 pelo movimento feminista (ainda hoje encontrando forte oposição, e muitas vezes chamadas de "feminazis" pelos conservadores, que jamais digeriram bem esta história de igualdade sexual). Porém, não nos iludamos: numa das últimas eleições brasileiras, Jânio Quadros foi eleito com uma "incrível" marca de 6 milhões de votos, que representava cerca de 10% da população, a mesma porcentagem da do final do império. Somente com a constituição cidadã de 1988, é que o direito ao voto foi, pela primeira vez, ampliado de tal maneira que, agora, de facto, a maioria da população brasileira pode ser considerada eleitor, e exercer, pela primeira vez na vida, o direito a interferir na política com o voto. As primeiras eleições gerais em que esse novo eleitorado exerceu tal direito foram em 1990, quando foi eleito o fatídico Collor, o mesmo que foi líder de um esquema de corrupção famoso no palácio do Planalto, e hoje é senador.
    1990: faz então 24 anos de lá pra cá. A imensa maioria das pessoas hoje já era nascida por essa época (inclusive este que vos escreve). Em 24 anos, é impossível criarmos uma tradição democrática sólida, que só é possível quando formarmos duas ou mais gerações no pensamento democrático. Não tivemos ainda tempo hábil para isso. Frequentemente compara-se o Brasil com países como EUA e França. Esquece-se, porém, que tais países possuem uma solidíssima tradição democrática: os EUA vivem isto desde a fundação do país em 1776 ou até antes, enquanto a França desde pelo menos 1870, com uma interrupção relativamente breve durante a ocupação nazista e o governo do marechal Vichy. Estamos portanto num período de aprendizado e adaptação à democracia que, para nós, sempre foi algo estranho. Assim como um jovem de 29 anos, já vimos e aprendemos muita coisa na vida, evoluímos bastante desde a infância e a adolescência, porém, ainda somos jovens, não é possível comparar a sabedoria de um jovem de 29 anos com alguém de 80. Não podemos exigir do eleitor brasileiro, durante séculos acostumado ao mandonismo e autoritarismo da classe rica, totalmente alijado da política, que do nada se comporte de maneira exemplar, como se fosse extremamente acostumado e habilidoso nessa área.
    Mas nem tudo são coisas negativas: a meu ver, estamos indo muito bem, obrigado. A cada ano que passa, cresce cada vez mais a indignação contra os vícios do sistema eleitoral, e do próprio sistema político do país. Se antes a corrupção era algo normal, recebido com apatia por se acreditar que nada podíamos fazer e que não nos dizia respeito, hoje, qualquer real surrupiado dos cofres públicos provoca tempestades de ira popular no Facebook, Twitter, e muitas vezes desemboca em manifestações e quebra-quebra na vida real. Aqui na minha cidade,  estão a pôr fogo em ônibus velhos de 20 anos de idade quase que semanalmente, o povo já anda com álcool na mochila e, forçado por isso, a ANTT finalmente cedeu e vai abrir licitação de ônibus, coisa que jamais fez em 40 e tantos anos de apatia e resignação popular. Estamos bem longe da perfeição, mas as perspectivas são muito boas para nossa jovem democracia. É esperar para ver aonde vai dar isto tudo.

Eduardo Viveiros

terça-feira, 10 de junho de 2014

“E preciso se representar uma grande cidade francesa no final do século XVIII, entre 1750 e 1780, não como uma unidade territorial, mas como multiplicidades emaranhadas de territórios heterogêneos e poderes rivais.
Paris, por exemplo, não formava uma unidade territorial, uma região em que se exercia um único poder. Mas um conjunto de poderes senhoriais detidos por leigos, pela Igreja, por comunidades religiosas e corporações, poderes estes com autonomia e jurisdição próprias. E, além disso, ainda existiam os representantes do poder estatal: o representante do rei, o intendente de polícia, os representantes dos poderes parlamentares. O rio Sena, por exemplo, e suas margens, estava sob a soberania do prévôt des marchands. Mas bastava ultrapassar essas margens para se estar sob outra jurisdição, a do lugar−tenente de polícia ou a do parlamento.
Ora, na segunda metade do século XVIII, se colocou o problema da unificação do poder urbano. Sentiu−se necessidade, ao menos nas grandes cidades, de constituir a cidade como unidade, de organizar o corpo urbano de modo coerente, homogêneo, dependendo de um poder único e bem regulamentado.
E isso por várias razões. Em primeiro lugar, certamente, por razões econômicas. Na medida em que a cidade se torna um importante lugar de mercado que unifica as relações comerciais, não simplesmente a nível de uma região, mas a nível da nação e mesmo internacional, a multiplicidade
de jurisdição e de poder torna−se intolerável. A indústria nascente, o fato de que a cidade não é somente um lugar de mercado, mas um lugar de produção, faz com que se recorra a mecanismos de regulação homogêneos e coerentes.
A segunda razão é política. O desenvolvimento das cidades, o aparecimento de uma população operária pobre que vai tornar−se, no século XIX, o proletariado, aumentará as tensões políticas no interior da cidade. As relações entre diferentes pequenos grupos − corporações, ofícios, etc.−, que se opunham uns aos outros, mas se equilibravam e se neutralizavam, começam a se simplificar em uma espécie de afrontamento entre rico e pobre, plebe e burguês, que se manifesta através de agitações e sublevações urbanas cada vez mais numerosas e freqüentes. As chamadas revoltas de subsistência, o fato de que, em um momento de alta de preços ou baixa de salários, os mais pobres, não mais podendo se alimentar, saqueiam celeiros, mercados, docas e entrepostos, são
fenômenos que, mesmo não sendo inteiramente novos, no século XVIII, ganham intensidade cada vez maior e conduzirão às grandes revoltas contemporâneas da Revolução Francesa.
De maneira esquemática pode−se dizer que até o século XVII, na Europa, o grande perigo social vinha do campo. Os camponeses paupérrimos, no momento de más colheitas ou dos impostos, empunhavam a foice e iam atacar os castelos ou as cidades. As revoltas do século XVII foram revoltas camponesas. As revoltas urbanas nelas de incluíam. No final do século XVIII, ao contrário,
as revoltas camponesas entram em regressão, acalmam−se em conseqüência da elevação do nível de vida dos camponeses e a revolta urbana torna−se cada vez mais freqüente com a formação de uma plebe em vias de se proletarizar. Daí a necessidade de um poder político capaz de esquadrinhar esta população urbana.
E então que aparece e se desenvolve uma atividade de medo, de angústia diante da cidade.
Cabanis, filósofo do final do século XVIII, dizia, por exemplo, a respeito da cidade: "Todas as vezes que homens se reúnem, seus costumes se alteram; todas as vezes que se reúnem em lugares fechados, se alteram seus costumes e sua saúde". Nasce o que chamarei medo urbano, medo da cidade, angústia diante da cidade que vai se caracterizar por vários elementos: medo das oficinas e
fábricas que estão se construindo, do amontoamento da população, das casas altas demais, da população numerosa demais; medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; medo dos esgotos, das caves sobre as quais são construídas as casas que estão sempre correndo o perigo de
desmoronar.
Tem−se, assim, certo número de pequenos pânicos que atravessaram a vida urbana das grandes cidades do século XVIII, especialmente de Paris. Darei o exemplo do "Cemitério dos Inocentes" que existia no centro de Paris, onde eram jogados, uns sobre os outros, os cadáveres das pessoas que não eram bastante ricas ou notáveis para merecer ou poder pagar um túmulo individual. O
amontoamento no interior do cemitério era tal que os cadáveres se empilhavam acima do muro do claustro e caíam do lado de fora. Em torno do claustro, onde tinham sido construídas casas, a pressão devido ao amontoamento de cadáveres foi tão grande que as casas desmoronaram e os esqueletos se espalharam em suas caves provocando pânico e talvez mesmo doenças. Em todo caso, no espírito das pessoas da época, a infecção causada pelo cemitério era tão forte que, segundo elas, por causa da proximidade dos mortos, o leite talhava imediatamente, a água apodrecia, etc. Este pânico urbano é característico deste cuidado, desta inquietude político−sanitária que se forma à medida em que se desenvolve o tecido urbano.
Para dominar esses fenômenos médicos e políticos que inquietam tão fortemente a população das cidades, particularmente a burguesia, que medidas serão tomadas? Intervém um curioso mecanismo que se podia esperar, mas que não entra no esquema habitual dos historiadores da medicina. Qual foi a reação da classe burguesa que, sem exercer o poder, detido pelas autoridades tradicionais, o reivindicava? Ela lançou mão de um modelo de intervenção muito bem estabelecido mas raramente utilizado. Trata−se do modelo médico e político da
quarentena.
Desde o fim da Idade Média, existia, não só na França mas em todos os países da Europa, um regulamento de urgência, como se chamaria em termos contemporâneos, que devia ser aplicado quando a peste ou uma doença epidêmica violenta aparecesse em uma cidade. Em que consistia
esse plano de urgência?
1o) Todas as pessoas deviam permanecer em casa para serem localizadas em um único lugar. Cada família em sua casa e, se possível, cada pessoa em seu próprio compartimento. Ninguém se movimenta.
2o) A cidade devia ser dividida em bairros que se encontravam sob a responsabilidade de uma autoridade designada para isso. Esse chefe de distrito tinha sob suas ordens inspetores que deviam durante o dia percorrer as ruas, ou permanecer em suas extremidades, para verificar se alguém saia de seu local. Sistema, portanto, de vigilância generalizada que dividia, esquadrinhava
o espaço urbano.
3o) Esses vigias de rua ou de bairro deviam fazer todos os dias um relatório preciso ao prefeito da cidade para informar tudo que tinham observado. Sistema, portanto, não somente de vigilância, mas de registro centralizado.
4o) Os inspetores deviam diariamente passar em revista todos os habitantes da cidade. Em todas as ruas por onde passavam, pediam a cada habitante para se apresentar em determinada janela, de modo que pudessem verificar, no registro−geral, que cada um estava vivo. Se, por acaso, alguém não aparecia, estava, portanto, doente, tinha contraído a peste era preciso ir buscá−lo e
colocá−lo fora da cidade em enfermaria especial. Tratava−se, portanto, de uma revista exaustiva dos vivos e dos mortos.
5o) Casa por casa, se praticava a desinfecção, com a ajuda de perfumes que eram queimados. Esse esquema da quarentena foi um sonho político−médico da boa organização sanitária das cidades, no século XVIII. Houve fundamentalmente dois grandes modelos de organização médica na história ocidental: o modelo suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste. Na Idade Média, o leproso era alguém que, logo que descoberto, era expulso do espaço comum, posto fora dos muros da cidade, exilado em um lugar confuso onde ia misturar sua lepra à lepra dos outros. O mecanismo da exclusão era o mecanismo do exílio, da purificação do espaço urbano. Medicalizar alguém era mandá−lo para fora e, por conseguinte, purificar os outros. A medicina era uma
medicina de exclusão. O próprio internamento dos loucos, malfeitores, etc., em meados do século XVII, obedece ainda a esse esquema. Em compensação, existe um outro grande esquema político−médico que foi estabelecido, não mais contra a lepra, mas contra a peste. Neste caso, a medicina não exclui, não expulsa em uma região negra e confusa. O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá−los, individualizá−los, vigiá−los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos. Tem−se, portanto, o velho esquema médico de reação á lepra que é de exclusão, de exílio, de forma religiosa, de purificação da cidade, de bode expiatório. E o esquema suscitado pela peste; não mais a exclusão, mas o internamento; não mais o agrupamento no exterior da cidade, mas, ao contrário, a análise minuciosa da cidade, a análise individualizante, o registro permanente; não mais um modelo religioso, mas militar. É a revista militar e não a purificação religiosa que serve,
fundamentalmente, de modelo longínquo para esta organização político−médica.
A medicina urbana com seus métodos de vigilância, de hospitalização, etc., não é mais do que um aperfeiçoamento, na segunda metade do século XVIII, do esquema político−médico da quarentena que tinha sido realizado no final da Idade Média, nos séculos XVI e XVII. A higiene pública é uma variação sofisticada do tema da quarentena e é dai que provém a grande medicina urbana que aparece na segunda metade do século XVIII e se desenvolve sobretudo na França.Em que consiste essa medicina urbana?
Essencialmente em três grandes objetivos:
1o) Analisar os lugares de acúmulo e amontoamento de tudo que, no espaço urbano, pode provocar doença, lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos. São essencialmente os cemitérios. E assim que aparecem, em torno dos anos 1740 − 1750, protestos contra o amontoamento dos cemitérios e, mais ou menos em 1780, as primeiras grandes emigrações de cemitérios para a periferia da cidade. E nesta época que aparece o cemitério
individualizado, isto é, o caixão individual, as sepulturas reservadas para as famílias, onde se escreve o nome de cada um.
Crê−se, freqüentemente, que foi o cristianismo quem ensinou a sociedade moderna o culto dos mortos. Penso de maneira diferente. Nada na teologia cristã levava a crer ser preciso respeitar o cadáver enquanto tal. O Deus cristão é bastante Todo−Poderoso para poder ressuscitar os mortos mesmo quando misturados em um ossuário. Em compensação, a individualização do cadáver, do caixão e do túmulo aparece no final do século XVIII por razões não teológico−religiosas de respeito ao cadáver, mas político−sanitárias de respeito aos vivos. Para que os vivos estejam ao abrigo da influência nefasta dos mortos, é preciso que os mortos sejam tão bem classificados quanto os vivos ou melhor, se possível. E assim que aparece na periferia das cidades, no final do século XVIII, um verdadeiro exército de mortos tão bem enfileirados quanto uma tropa que se passa em revista. Pois é preciso esquadrinhar, analisar e reduzir esse perigo perpetuo que os mortos constituem. Eles vão, portanto, ser colocados no campo e em regimento, uns ao lado dos outros, nas grandes planícies que circundam as cidades. Não uma idéia cristã, mas médica, política. Melhor prova é que, quando se pensou na transferência do Cemitério dos Inocentes, de Paris, apelou−se para Fourcroy, um dos grandes químicos do final do século XVIII, a fim de saber o que se devia fazer contra a influência desse cemitério. E o
químico que pede a transferência do cemitério. E o químico, enquanto estuda as relações entre o organismo vivo e o ar que se respira, que é encarregado desta primeira policia médica urbana sancionada pelo exílio dos cemitérios. Outro exemplo é o caso dos matadouros que também estavam situados no centro de Paris e que se decidiu, depois de consultada a Academia de Ciências, colocar nos arredores de Paris, a oeste, em La Villette. Portanto, o primeiro objetivo da medicina urbana é a análise das regiões de amontoamento, de confusão e de perigo no espaço urbano.
2o) A medicina urbana tem um novo objeto: o controle da circulação. Não da circulação dosindivíduos, mas das coisas ou dos elementos, essencialmente a água e o ar. Era uma velha crença do século XVIII que o ar tinha uma influência direta sobre o organismo, por veicular miasmas ou porque as qualidades do ar frio, quente, seco ou úmido em demasia se comunicavam ao organismo ou, finalmente, porque se pensava que o ar agia diretamente por ação mecânica, pressão direta sobre o corpo. O ar, então, era considerado um dos grandes fatores patógenos. Ora, como manter as qualidades do ar em uma cidade, fazer com que o ar seja sadio, se ele existe como que bloqueado, impedido de circular, entre os muros, as casas, os recintos, etc? Dai a necessidade de abrir longas avenidas no espaço urbano, para manter o bom estado de saúde da população. Vai−se, portanto, pedir a comissões da Academia de Ciências, de médicos,
de químicos, etc., para opinar sobre os melhores métodos de arejamento das cidades. Um dos casos mais conhecidos foi a destruição de casas que se encontravam nas pontes das cidades. Por causa do amontoamento, do preço do terreno, durante a Idade Média e mesmo nos séculos XVII e XVIII, casas de moradia foram construídas nas pontes. Considerou−se, então, que essas casas
impediam a circulação do ar em cima dos rios, retinham ar úmido entre suas margens e foram sistematicamente destruídas. Marmontel chegou mesmo a calcular quantas mortes foram economizadas com a destruição de três casas em cima do Pont Neuf quatrocentas pessoas por ano, vinte mil em cinqüenta anos, etc. Organizam−se, portanto, corredores de ar, como também corredores de água. Em Paris, em 1767, de modo bastante precoce, um arquiteto chamado
Moreau propôs um plano diretor para a organização das margens e ilhas do Sena que foi aplicado até o começo do século XIX, entendendo−se que a água devia, com sua corrente, lavar a cidade dos miasmas que, sem isso, aí permaneceriam. A medicina urbana tem, portanto, como segundo objeto o controle e o estabelecimento de uma boa circulação da água e do ar.
3o) Outro grande objeto da medicina urbana é a organização do que chamarei distribuições e seqüências. Onde colocar os diferentes elementos necessários à vida comum da cidade? E o problema da posição recíproca das fontes e dos esgotos ou dos barcos−bombeadores e dos barcos−lavanderia. Como evitar que se aspire água de esgoto nas fontes onde se vai buscar água de beber; como evitar que o barco−bombeador, que traz água de beber para a população, não
aspire água suja pelas lavanderias vizinhas? Essa desordem foi considerada, na segunda metade do século XVIII, responsável pelas principais doenças epidêmicas das cidades. Daí a elaboração do 1o plano hidrográfico de Paris, em 1742, intitulado Exposé d'un plan hidrographíque de la ville de Paris, primeira pesquisa sobre os lugares em que se pode dragar água que não tenha sido suja
pelos esgotos e sobre policia da vida fluvial. De tal modo que em 1789, quando começa a Revolução Francesa, a cidade de Paris já tinha sido esquadrinhada por uma polícia médica urbana que tinha estabelecido o fio diretor do que uma verdadeira organização de saúde da cidade deveria realizar.
Um ponto, entretanto, não tinha sido tocado até o final do século XVIII, que diz respeito ao conflito entre a medicina e os outros tipos de poder: a propriedade privada. A política autoritária com respeito á propriedade privada, à habitação privada não foi esboçada no século XVIII a não ser sob um aspecto: as caves. As caves, que pertencem ao proprietário da casa, são regulamentadas quanto a seu uso e quanto às galerias que podem ser construídas. Este é o problema da
propriedade do subsolo, no século XVIII, colocado a partir da tecnologia mineira. A partir do momento em que se soube construir minas em profundidade, colocou−se o problema de saber a quem elas pertenciam. Elaborou−se uma legislação autoritária sobre a apropriação do subsolo que
estipulava, em meados do século XVIII, que o subsolo não pertencia ao proprietário do solo, mas ao Estado e ao rei. Foi assim que o subsolo privado parisiense foi controlado pelas autoridades coletivas, enquanto a superfície, ao menos no que concerne à propriedade privada, não o foi. Os espaços comuns, os lugares de circulação, os cemitérios, os ossuários, os matadouros foram controlados, o mesmo não acontecendo com a propriedade privada antes do século XIX. A burguesia que, para sua segurança política e sanitária, pretendia o controle da cidade, não podia ainda contradizer a legislação sobre a propriedade que ela reivindicava, procurava estabelecer, e só conseguirá impor no momento da Revolução Francesa. Daí, portanto, o caráter sagrado da
propriedade privada e a inércia de todas as políticas médicas urbanas com relação à propriedade privada.
A medicalização da cidade, no século XVIII, é importante por várias razões:
1o) Por intermédio da medicina social urbana, a prática médica se põe diretamente em contato com ciências extra−médicas, fundamentalmente a química. Desde o período confuso em que Paracelso e Van Helmont procuravam estabelecer as relações entre medicina e química, não houve mais verdadeiras relações entre as duas. Foi precisamente pela análise do ar, da corrente de ar, das condições de vida e de respiração que a medicina e a química entraram em contato. Fourcroy e Lavoisier se interessaram pelo problema do organismo por intermédio do controle do ar urbano. A inserção da prática médica em um corpus de ciência físico−química se fez por intermédio da urbanização. A passagem para uma medicina científica não se deu através da medicina privada,
individualista, através de um olhar médico mais atento ao indivíduo. A inserção da medicina no funcionamento geral do discurso e do saber científico se fez através da socialização da medicina, devido ao estabelecimento de uma medicina coletiva, social, urbana. A isso se deve a importância
da medicina urbana.
2o) A medicina urbana não é verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma medicina das coisas: ar, água, decomposições, fermentos; uma medicina das condições de vida e do meio de existência. Esta medicina das coisas já delineia, sem empregar ainda a palavra, a noção de meio que os naturalistas do final do século XVIII, como Cuvier, desenvolverão.
A relação entre organismo e meio será feita simultaneamente na ordem das ciências naturais e da medicina, por intermédio da medicina urbana. Não se passou da análise do organismo à análise do meio ambiente. A medicina passou da análise do meio à dos efeitos do meio sobre o organismo e finalmente à análise do próprio organismo. A organização da medicina foi importante para a
constituição da medicina científica.
3o) Com ela aparece, pouco antes da Revolução Francesa, uma noção que terá uma importância considerável para a medicina social: a noção de salubridade. Uma das decisões logo tomadas pela Assembléia Constituinte, em 1790 ou 1791, foi, por exemplo, a criação de comitês de salubridade dos departamentos e principais cidades. Salubridade não é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do meio e seus elementos constitutivos, que permitem a melhor saúde possível. Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos. E é correlativamente a ela que
aparece a noção de higiene pública, técnica de controle e de modificação dos elementos materiais do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde. Salubridade e insalubridade são o estado das coisas e do meio enquanto afetam a saúde; a higiene pública − no séc. XIX, a noção essencial da medicina social francesa − é o controle político−científico deste
meio.
Vê−se, assim, como se está bastante longe da medicina de Estado, tal como é definida na Alemanha, pois se trata de uma medicina muito mais próxima das pequenas comunidades, das cidades, dos bairros, como também não é ainda dotada de nenhum instrumento especifico de poder. O problema da propriedade privada, princípio sagrado, impede que esta medicina seja dotada de um poder forte. Mas, se ela perde em poder para a Staatsmedizin alemã, ganha certamente em fineza de observação, na cientificidade das observações feitas e das práticas estabelecidas. Grande parte da medicina científica do século XIX tem origem na experiência desta medicina urbana que se desenvolve no final do século XVIII.
III − A terceira direção da medicina social pode ser sucintamente analisada através do exemplo inglês.
A medicina dos pobres, da força de trabalho, do operário não foi o primeiro alvo da medicina social, mas o último. Em primeiro lugar o Estado, em seguida a cidade e finalmente os pobres e trabalhadores foram objetos da medicalização. O que é característico da medicina urbana francesa é a habitação privada não ser tocada e o pobre, a plebe, o povo não ser claramente considerado um elemento perigoso para a saúde da população. O pobre, o operário, não é analisado como os cemitérios, os ossuários, os matadouros,
etc.
Por que os pobres não foram problematizados como fonte de perigo médico, no século XVIII? Existem várias razões para isso: uma é de ordem quantitativa: o amontoamento não era ainda tão grande para que a pobreza aparecesse como perigo. Mas existe uma razão mais importante: é que o pobre funcionava no interior da cidade como uma condição da existência urbana. Os pobres da
cidade eram pessoas que realizavam incumbências, levavam cartas, se encarregavam de despejar o lixo, apanhar móveis velhos, trapos, panos velhos e retirá−los da cidade, redistribui−los, vendê−los, etc. Eles faziam parte da instrumentalização dá vida urbana. Na época, as casas não eram numeradas, não havia serviço postal e quem conhecia a cidade, quem detinha o saber
urbano em sua meticulosidade, quem assegurava várias funções fundamentais da cidade, como o transporte de água e a eliminação de dejetos, era o pobre. Na medida em que faziam parte da paisagem urbana, como os esgotos e a canalização, os pobres não podiam ser postos em questão, não podiam ser vistos como um perigo. No nível em que se colocavam, eles eram bastante úteis.
Foi somente no segundo terço do século XIX, que o pobre apareceu como perigo. As razões são várias:
1o) Razão política. Durante a Revolução Francesa e, na Inglaterra, durante as grandes agitações sociais do. começo do século XIX, a população pobre tornou−se uma força política capaz de se revoltar ou pelo menos, de participar de revoltas. 
2o) No século XIX encontrou−se um meio de dispensar, em parte, os serviços prestados pela população, com o estabelecimento, por exemplo, de um sistema postal e um sistema de carregadores, o que produziu uma série de revoltas populares contra esses sistemas que retiravam dos mais pobres o pão e a possibilidade de viver.
3o) A cólera de 1832, que começou em Paris e se propagou por toda a Europa, cristalizou em torno da população proletária ou plebéia uma série de medos políticos e sanitários. A partir dessa época, se decidiu dividir o espaço urbano em espaços pobres e ricos. A coabitação em um mesmo tecido urbano de pobres e ricos foi considerada um perigo sanitário e político para a cidade, o que
ocasionou a organização de bairros pobres e ricos, de habitações ricas e pobres. O poder político começou então a atingir o direito da propriedade e da habitação privadas. Foi este o momento da grande redistribuição, no II Império Francês, do espaço urbano parisiense.
Estas são as razões pelas quais, durante muito tempo a plebe urbana não foi considerada um perigo médico e, a partir do século XIX isso acontece.
É na Inglaterra, país em que o desenvolvimento industrial, e por conseguinte o desenvolvimento do proletariado, foi o mais rápido e importante, que aparece uma nova forma de medicina social. Isso não significa que não se encontrem na Inglaterra projetos de medicina de Estado, de estilo alemão, Chadwick, por exemplo, se inspirou bastante nos métodos alemães para a elaboração de seus
projetos, em torno de 1840. Além disso, Ramsay escreveu em 1846 um livro chamado Health and sickness of town populations que retoma o conteúdo da medicina urbana francesa.
E essencialmente na Lei dos pobres que a medicina inglesa começa a tornar−se social, na medida em que o conjunto dessa legislação comportava um controle médico do pobre. A partir do momento em que o pobre se beneficia do sistema de assistência, deve, por isso mesmo, se submeter a vários controles médicos. Com a Lei dos pobres aparece, de maneira ambígua, algo importante na
história da medicina social: a idéia de uma assistência controlada, de uma intervenção médica que é tanto uma maneira de ajudar os mais pobres a satisfazer suas necessidades de saúde, sua pobreza não permitindo que o façam por si mesmos, quanto um controle pelo qual as classes ricas ou seus representantes no governo asseguram a saúde das classes pobres e, por conseguinte, a proteção das classes ricas. Um cordão sanitário autoritário é estendido no interior das cidades entre ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou sem grande despesa e os ricos garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos originários da
classe pobre.
Vê−se, claramente, a transposição, na legislação médica, do grande problema político da burguesia nesta época: a que preço, em que condições e como assegurar sua segurança política. A legislação médica contida na Lei dos pobres corresponde a esse processo. Mas esta lei e a assistência−proteção, assistência−controle que ela implica, foi somente o primeiro elemento de um
complexo sistema cujos outros elementos só aparecem mais tarde, em torno de 1870, com os grandes fundadores da medicina social inglesa, principalmente John Simon, que completaram a legislação médica da Lei dos pobres com a organização de um serviço autoritário, não de cuidados médicos, mas de controle médico da população.
Trata−se dos sistemas de health service, de health officers que começaram na Inglaterra em 1875 e eram, mais ou menos, mil no final do século XIX. Tinham por função: 
1o) Controle da vacinação, obrigando os diferentes elementos da população a se vacinarem. 
2o) Organização do registro das epidemias e doenças capazes de se tornarem epidêmicas, obrigando as pessoas à declaração de doenças perigosas. 
3o) Localização de lugares insalubres e eventual destruição desses focos de
insalubridade. O health service é o segundo elemento que prolonga a Lei dos pobres. Enquanto a Lei dos pobres comportava um serviço médico destinado ao pobre enquanto tal, o health service tem como características não só atingir igualmente toda a população, como também, ser constituído por médicos que dispensam cuidados médicos que não são individuais, mas têm por objeto a população em geral, as medidas preventivas a serem tomadas e, como na medicina urbana francesa, as coisas, os locais, o espaço social, etc.
Ora, quando se observa como efetivamente funcionou o health service vê−se que era um modo de completar, ao nível coletivo, os mesmos controles garantidos pela Lei dos pobres. A intervenção nos locais insalubres, as verificações de vacina, os registros de doenças tinham de fato por objetivo
o controle das classes mais pobres. 
E esta a razão pela qual o controle médico inglês, garantido pelos health officers suscitou, desde sua criação, uma série de reações violentas da população, de resistência popular, de pequenas insurreições anti−médicas na Inglaterra da 2o metade do século XIX.
Essas resistências médicas foram indicadas por Mckeown em uma série de artigos na revista Public Law, em 1967. Creio que seria interessante analisar, não somente na Inglaterra, mas em diversos países do mundo, como essa medicina, organizada em forma de controle da população pobre, suscitou resistências. E, por exemplo, curioso constatar que os grupos de dissidência
religiosa, tão numerosos nos países anglo−saxões, de religião protestante, tinham essencialmente por objetivo, nos séculos XVII e XVIII, lutar contra a religião de Estado e a intervenção do Estado em matéria religiosa. Ora, o que reaparece, no século XIX, são grupos de dissidência religiosa, de diferentes formas, em diversos países, que têm agora por objetivo lutar contra a medicalização, reivindicar o direito das pessoas não passarem pela medicina oficial, o direito sobre seu próprio corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer como quiserem. Esse desejo de escapar da medicalização autoritária é um dos temas que marcaram vários grupos aparentemente
religiosos, com vida intensa no final do século XIX e ainda hoje. Nos países católicos a coisa foi diferente. Que significado tem a peregrinação de Lourdes, desde o final do século XIX até hoje, para os milhões de peregrinos pobres que ai vão todos os anos, senão uma espécie de resistência difusa à medicalização autoritária de seus corpos e doenças? Em lugar de ver nessas práticas religiosas um fenômeno residual de crenças arcaicas ainda não desaparecidas, não serão elas uma forma atual de luta política contra a medicalização autoritária, a socialização da medicina, o controle médico que se abate essencialmente sobre a população pobre; não serão essas lutas que reaparecem nessas formas aparentemente arcaicas, mesmo se seus instrumentos são antigos, tradicionais e supõem um sistema de crenças mais ou menos abandonadas? O vigor dessas práticas, ainda atuais, é ser uma reação contra essa social medicine, medicina dos pobres, medicina a serviço de uma classe, de que a medicina social
inglesa é um exemplo.
De maneira geral, pode−se dizer que, diferentemente da medicina urbana francesa e da medicina de Estado da Alemanha do século XVIII, aparece, no século XIX e sobretudo na Inglaterra, uma medicina que é essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná−las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas. Essa fórmula da medicina social inglesa foi a que teve futuro, diferentemente da medicina urbana e
sobretudo da medicina de Estado. O sistema inglês de Simon e seus sucessores possibilitou, por um lado, ligar três coisas: assistência médica ao pobre, controle de saúde da força de trabalho e esquadrinhamento geral da saúde pública, permitindo às classes mais ricas se protegerem dos perigos gerais. E, por outro lado, a medicina social inglesa, esta é sua originalidade, permitiu a
realização de três sistemas médicos superpostos e coexistentes; uma medicina assistencial destinada aos mais pobres, uma medicina administrativa encarregada de problemas gerais como a vacinação, as epidemias, etc., e uma medicina privada que beneficiava quem tinha meios para pagá−la. Enquanto o sistema alemão da medicina de Estado era pouco flexível e a medicina urbana francesa era um projeto geral de controle sem instrumento preciso de poder, o sistema inglês possibilitava a organização de uma medicina com faces e formas de poder diferentes segundo se tratasse da medicina assistencial, administrativa e privada, setores bem delimitados que permitiram, durante o final do século XIX e primeira metade do século XX, a existência de um esquadrinhamento médico bastante completo. “

O Nascimento da Medicina Social, Michel Foucault.

segunda-feira, 26 de maio de 2014


A NAÇÃO: UMA INVENÇÃO RECENTE

"É muito recente a invenção histórica da nação, entendida como Estado-nação, definida pela independência ou soberania política e pela unidade territorial e legal. Sua data de nascimento pode ser colocada por volta de 1830.
De fato, a palavra “nação” vem de um verbo latino, nascor (nascer), e de um substantivo derivado desse verbo, natio ou nação, que significa o parto de animais, o parto de uma ninhada. Por significar o “parto de uma ninhada”, a palavra natio/nação passou a significar, por extensão, os indivíduos nascidos ao mesmo tempo de uma mesma mãe, e, depois, os indivíduos nascidos num mesmo lugar. Quando, no final da Antiguidade e início da Idade Média, a Igreja Romana fixou seu vocabulário latino, passou a usar o plural nationes (nações) para se referir aos pagãos e distinguí-los do populus Dei, o “povo de Deus”. Assim, enquanto a palavra “povo” se referia a um grupo de indivíduos organizados institucionalmente, que obedecia a normas, regras e leis comuns, a palavra “nação” significava apenas um grupo de descendência comum e era usado não só para referir-se aos pagãos, em contraposição aos cristãos, mas também para referir-se aos estrangeiros (era assim que, em Portugal, os judeus eram chamados de “homens da nação”) e a grupos de indivíduos que não possuíam um estatuto civil e político (foi assim que os colonizadores se referiram aos índios falando em “nações indígenas”, isto é, àqueles que eram descritos por eles como “sem fé, sem rei e sem lei”). Povo, portanto, era um conceito jurídico-político, enquanto nação era um conceito biológico.
Antes da invenção histórica da nação, como algo político ou Estado-nação, os termos políticos empregados eram “povo” (a que já nos referimos) e “pátria”. Esta palavra também deriva de um vocábulo latino, pater, pai. Não se trata, porém, do pai como genitor de seus filhos - neste caso, usava-se genitor -, mas de uma figura jurídica, definida pelo antigo direito romano. Pater é o senhor, o chefe, que tem a propriedade privada absoluta e incondicional da terra e de tudo o que nela existe, isto é, plantações, gado, edifícios (“pai” é o dono do patrimonium), e o senhor, cuja vontade pessoal é lei, tendo o poder de vida e morte sobre todos os que formam seu domínio (casa, em latim, se diz domus, e o poder do pai sobre a casa é o dominium) , e os que estão sob seu domínio formam a familia (mulher, filhos, parentes, clientes e escravos). Pai se refere, portanto, ao poder patriarcal e pátria é o que pertence ao pai e está sob seu poder. É nesse sentido jurídico preciso que, no latim da Igreja, Deus é Pai, isto é, senhor do universo e dos exércitos celestes. É também essa a origem da expressão jurídica “pátrio poder”, para referir-se ao poder legal do pai sobre filhos, esposa e dependentes (escravos, servos, parentes pobres).
Se “patrimônio” é o que pertence ao pai, “patrício” é o que possui um pai nobre e livre, e “patriarcal” é a sociedade estruturada segundo o poder do pai. Esses termos designavam a divisão social das classes em que patrícios eram os senhores da terra e dos escravos, formando o Senado romano, e povo eram os homens livres plebeus, representados no Senado pelo tribuno da plebe. (Quando se olha um crucifixo, sempre se vê, na parte superior da cruz, uma faixa com as letras SPQR. Essas letras significam Senatus Populusque Romanus, o Senado e o Povo Romano. A faixa era obrigatória nas execuções de condenados para indicar que a execução fora aprovada por Roma.) Os patrícios eram os “pais da pátria”, enquanto os plebeus eram os “protegidos pela pátria”. Quando a Igreja Romana se estabeleceu como instituição, para marcar sua diferença do Império
Romano pagão e substituir os pais da pátria por Deus Pai, afirmou que, perante o Pai ou Senhor universal, todos são plebeus ou povo. É então que inventa a expressão “Povo de Deus”, que, como vimos, desloca a divisão social entre patrícios e plebeus para a divisão religiosa entre nações pagãs e povo cristão.
A partir do século XVIII, com a revolução norte-americana, holandesa e francesa, “pátria” passa a significar o território cujo senhor é o povo organizado sob a forma de Estado independente. Eis por que, nas revoltas de independência, ocorridos no Brasil nos finais do século XVIII e início do século XIX, os revoltosos falavam em “pátria mineira”, “pátria pernambucana”, “pátria americana”; finalmente, com o Patriarca da Independência, José Bonifácio, passou-se a falar em “pátria brasileira”. Durante todo esse tempo, “nação” continuava usada apenas para os Índios, os negros e os judeus.
Se acompanharmos a periodização proposta por Eric Hobsbawm, em seu estudo sobre a invenção histórica do Estado-nação3, podemos datar o aparecimento de “nação” no vocabulário político na altura de 1830, e seguir suas mudanças em três etapas: de 1830 a 1880, fala-se em “princípio da nacionalidade”; de 1880 a 1918, fala-se em “idéia nacional”; e de 1918 aos anos 1950-60, fala-se em “questão nacional”. Nessa periodização, a primeira etapa vincula nação e território, a segunda a articula à língua, à religião e à raça, e a terceira enfatiza a consciência nacional, definida por um conjunto de lealdades políticas. Na primeira etapa, o discurso da nacionalidade provém da economia política liberal; na segunda, dos intelectuais pequeno-burgueses, particularmente alemães e italianos, e, na terceira, emanam principalmente dos partidos políticos e do Estado.
O ponto de partida dessas elaborações foi, sem dúvida, o surgimento do Estado moderno da “era das revoluções”, definido por um território preferencialmente contínuo, com limites e fronteiras claramente demarcados, agindo política e administrativamente sem sistemas intermediários de dominação, e que precisava do consentimento prático de seus cidadãos válidos para políticas fiscais e ações militares. (Falamos em cidadãos “válidos” porque a cidadania, embora declarada universal, não o era de fato, uma vez que o cidadão era definido pela independência econômica - isto é, pela propriedade privada dos meios de produção -, excluindo trabalhadores e mulheres, e o sufrágio não era universal e sim censitário isto é, segundo o critério da riqueza e da instrução. O sufrágio universal consagrou-se nas democracias efetivamente apenas depois da Segunda Guerra Mundial, como resultado de lutas sociais e populares. Em outras palavras, liberalismo não é sinônimo de democracia.) Esse Estado precisava enfrentar dois problemas principais: de um lado, incluir todos os habitantes do território na esfera da administração estatal; de outro, obter a lealdade dos habitantes ao sistema dirigente, uma vez que a luta de classes, a luta no interior de cada classe social, as tendências políticas antagônicas e as crenças religiosas disputavam essa lealdade. Em suma, como dar à divisão econômica, social e política a forma da unidade indivisa? Pouco a pouco, a idéia de nação surgirá como solução dos problemas.
Como observa Hobsbawm, o liberalismo tem dificuldade para operar com a idéia de nação e de Estado nacional porque, para a ideologia liberal, a realidade se reduz a duas referências econômicas: uma unidade mínima, o indivíduo, e uma unidade máxima, a empresa, de sorte que não parece haver necessidade de construir uma unidade superior a estas. No entanto, os economistas liberais não podiam operar sem o conceito de” economia nacional”, pois era fato inegável que havia o Estado com o monopólio da moeda, com finanças públicas e atividades fiscais, além da função de garantir a segurança da propriedade privada e dos contratos econômicos, e do controle do aparato militar de repressão às classes populares. Os economistas liberais afirmavam por isso que a “riqueza das nações” dependia de estarem elas sob governos regulares e que a
fragmentação nacional, ou os Estados nacionais, era favorável à competitividade econômica e ao progresso.
Por outro lado, em países (como a Alemanha, os Estados Unidos ou o Brasil) que buscavam proteger suas economias do poderio das mais fortes, era grande a atração da idéia de um Estado nacional protecionista. Veio dos economistas alemães a idéia do “princípio de nacionalidade”, isto é, um princípio que definia quando poderia ou não haver uma nação ou um Estado-nação. Esse princípio era o território extenso e a população numerosa, pois um Estado pequeno e pouco populoso não poderia “promover à perfeição os vários ramos da produção”. Desse princípio derivou-se uma segunda idéia, qual seja, a nação como um processo de expansão, isto é, de conquista de novos territórios, falando-se, então, em “unificação nacional”. Dimensão do território, densidade populacional e expansão de fronteiras tornaram-se os princípios definidores da nação como Estado. Todavia, o território em expansão só se unificaria se houvesse o Estado-nação, e este deveria produzir um elemento de identificação que justificasse a conquista expansionista. Esse elemento passou a ser a língua, e por isso o Estado-nação precisou contar com uma elite cultural que lhe fornecesse não só a unidade lingüística, mas lhe desse os elementos para afirmar que o desenvolvimento da nação era o ponto final de um processo de evolução, que começava na família e terminava no Estado. A esse processo deu-se o nome de progresso.
A partir de 1880, porém, na Europa, a nação passa pelo debate sobre a “idéia nacional”, pois as lutas sociais e políticas haviam colocado as massas trabalhadoras na cena, e os poderes constituídos tiveram de disputar com os socialistas e comunistas a lealdade popular. Ou, como escreve Hobsbawm, “a necessidade de o Estado e as classes dominantes competirem com seus rivais pela lealdade das ordens inferiores se tornou, portanto, aguda”. O Estado precisava de algo mais do que a passividade de seus cidadãos: precisava mobilizá-los e influenciá-los a seu favor. Precisava de uma “religião cívica”, o patriotismo. Dessa maneira, a definição da nação pelo território, pela conquista e pela demografia já não bastava, mesmo porque, além das lutas sociais internas, regiões que não haviam preenchido os critérios do “princípio de nacionalidade” lutavam para ser reconhecidas como Estado-nações independentes. Durante o período de 1880-1918, a “religião cívica” transforma o patriotismo em nacionalismo, isto é, o patriotismo se torna estatal, reforçado com sentimentos e símbolos de uma comunidade imaginária cuja tradição começava a ser inventada.
Essa construção decorreu da necessidade de resolver três problemas prementes: as lutas populares socialistas, a resistência de grupos tradicionais ameaçados pela modernidade capitalista e o surgimento de um estrato social ou de uma classe intermediária, a pequena burguesia, que aspirava ao aburguesamento e temia a proletarização. Em outras palavras, foi exatamente no momento em que a divisão social e econômica das classes apareceu com toda clareza e ameaçou o capitalismo que este procurou na “idéia nacional” um instrumento unificador da sociedade. Não por acaso, foram os intelectuais pequeno-burgueses, apavorados com o risco de proletarização, que transformaram o patriotismo em nacionalismo quando deram ao “espírito do povo”, encarnado na língua, nas tradições populares ou folclore e na raça (conceito central das ciências sociais do século XIX), os critérios da definição da nacionalidade.
A partir dessa época, a nação passou a ser vista como algo que sempre teria existido, desde tempos imemoriais, porque suas raízes deitam-se no próprio povo que a constitui. Dessa maneira, aparece um poderoso elemento de identificação social e política, facilmente reconhecível por todos (pois a nação está nos usos costumes, tradições, crenças da vida cotidiana) e com a capacidade para incorporar numa única crença as crenças rivais, isto é, o apelo de classe, o apelo político e o apelo religioso não precisavam disputar a lealdade dos cidadãos porque toda essas crenças podiam exprimir-se umas pelas outras sob o fundo comum da nacionalidade. Sem essa referência, tornar-se-ia incompreensível que, em 1914, milhões de proletários tivessem marchado para a guerra para matar e morrer ser vindo aos interesses do capital.
Foi a percepção do poder persuasivo da “idéia nacional” que levou à “questão nacional”, entre 1918 e os anos 1950-60 do século XX4. A Revolução Russa (1917), a derrota alemã na Primeira Guerra (1914-18), a depressão econômica dos anos 20-30, o aguçamento mundial da luta de classes sob bandeiras socialistas e comunistas preparavam a arrancada mais forte do nacionalismo,
cuja expressão paradigmática foi o nazi-fascismo. No caso do Brasil, não custa lembrar o que, nessa época, diziam os fascistas, isto é, os membros da Ação Integralista Brasileira, partido político criado entre 1927 e 1928 e dirigido pelo
escritor modernista Plínio Salgado:
“Esta longa escravidão ao capitalismo internacional; este longo trabalho de cem anos na gleba para opulentar os cofres de Wall Street e da City; essa situação deprimente em face do estrangeiro; este cosmopolitismo que nos amesquinha; essas lutas internas que nos ensangüentam; esta aviltante propaganda comunista que desrespeita todos os dias a bandeira sagrada da Pátria; esse tripudiar de regionalismo em esgares separatistas a enfraquecer a Grande Nação; esse comodismo burguês; essa miséria de nossas populações sertanejas; a opressão em que se debate nosso proletariado, duas vezes explorado pelo patrão e pelo agitador comunista e anarquista; a vergonha de sermos um país de oito milhões de quilômetros quadrados e quase cinqüenta milhões de habitantes, sem prestígio, sem crédito, corroídos de politicagem de partidos”.
Além de se apropriar da elaboração nacionalista, feita nas etapas anteriores (expansão e “unificação” do território, “espírito do povo” e raça), o nazi-fascismo e os vários nacionalismos desse período contaram com a nova comunicação de massa (o rádio e o cinema) para “transformar símbolos nacionais em parte da vida cotidiana de qualquer indivíduo e, com isso, romper as divisões entre a esfera privada e local e a esfera pública e nacional”. A primeira expressão dessa mudança aparece nos esportes, transformados em espetáculos de massa, nos quais já não competem equipes e sim se enfrentam e se combatem nações (como se viu nos Jogos Olímpicos de 1936, no aparecimento do Tour de France e da Copa do Mundo). Passou-se a ensinar às crianças que a lealdade ao time é lealdade à nação. Passeatas embandeiradas, ginástica coletiva em grandes estádios, programas estatais pelo rádio, uniformes políticos com cores distintivas, grandes comícios marcam esse período como época do “nacionalismo militante”.
A pergunta suscitada por essa terceira fase da construção da nação é: por que foi bem-sucedida e por que, passadas as causas imediatas que a produziram, ela permaneceu nas sociedades contemporâneas? Por que a luta de classes teve uma capacidade mobilizadora menor do que o nacionalismo? Por que até mesmo as revoluções socialistas acabaram assumindo a forma do nacionalismo? Por que a “questão nacional” parecia ter sentido? O nacionalismo militante, diz Hobsbawm, não pode ser visto simplesmente como reflexo do desespero e da impotência política diante da incapacidade mobilizadora do liberalismo, do socialismo e do comunismo. Sem dúvida, esses aspectos são importantes, indicando a adesão daqueles que haviam perdido a fé em utopias (à
esquerda) ou dos que haviam perdido velhas certezas políticas e sociais (à direita). Todavia, se para esses o nacionalismo militante era um imperativo político exclusivo, o mesmo não pode ser dito da adesão generalizada, nem, sobretudo da permanência do nacionalismo em toda parte, depois de encerrado o nazi-fascismo.
A possível explicação encontra-se na natureza do Estado moderno como espaço dos sentimentos políticos e das práticas políticas em que a consciência política do cidadão se forma referida à nação e ao civismo, de tal maneira que a distinção entre classe social e nação não é clara e freqüentemente está esfumada ou diluída. Para nós, no Brasil, nada exprime melhor essa situação do que o nacionalismo das esquerdas nos anos 1950-60, período que conhecemos com os nomes de nacional-desenvolvimentismo, primeiro, e de nacional-popular, depois. De fato, para as esquerdas, a referência sempre havia sido a divisão social das classes e não a unidade social imaginária imposta pela idéia de nação. No entanto, no período 1950-60, a luta histórica foi interpretada pelas esquerdas como combate entre a nação (representada pela “burguesia nacional progressista” e as “massas conscientes”) e a antinação (representada pelos setores “atrasados” da classe dominante, pelas “massas alienadas” e pelo capital estrangeiro ou as “forças do imperialismo'').
O processo histórico de invenção da nação nos auxilia a compreender um fenômeno significativo, no Brasil, qual seja, a passagem da idéia de “caráter nacional” para a de “identidade nacional”. O primeiro corresponde, grosso modo, aos períodos de vigência do “princípio da nacionalidade” (1830-1880) e da “idéia nacional” (1880-1918), enquanto a segunda aparece no período da “questão nacional” (1918-1960).
Território, densidade demográfica, expansão de fronteiras, língua, raça, crenças religiosas, usos e costumes, folclore e belas-artes foram os elementos principais do “caráter nacional”, entendido como disposição natural de um povo e sua expressão cultural. Como observa Perry Anderson, “o conceito de caráter é em princípio compreensivo, cobrindo todos os traços de um indivíduo ou grupo; ele é auto-suficiente, não necessitando de referência externa para sua definição; e é mutável, permitindo modificações parciais ou gerais”.
Em seu trabalho pioneiro e hoje clássico, O caráter nacional brasileiro, Dante Moreira Leite mostra como as formulações brasileiras sobre o “caráter nacional' dependeram de três determinações principais: o momento sociopolítico, a inserção de classe ou a classe social dos autores, e as idéias européias mais em voga em cada ocasião. Tomando as construções do “caráter
nacional” como ideologias, Moreira Leite conclui seu livro afirmando que elas foram, na verdade, obstáculos para o conhecimento da sociedade brasileira e não a apresentação fragmentada e parcial de aspectos reais dessa sociedade. Quando se acompanha a elaboração ideológica do “caráter nacional” brasileiro, observa-se que este é sempre algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (como no caso de Afonso Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo, por exemplo) ou negativa (como no caso de Silvio Romero, Manoel Bonfim ou Paulo Prado, por exemplo). Em outras palavras, quer para louvá-lo, quer par; depreciá-lo, o “caráter nacional” é uma totalidade de traços coerente, fechada e sem lacunas porque constitui uma “natureza humana” determinada. 
A ideologia da “identidade nacional” opera noutro registro. Antes de mais nada, ela define um núcleo essencial tomando como critério algumas determinações internas da nação que são percebidas por sua referência ao que lhe é externo, ou seja, a identidade não pode ser construída sem a diferença. O núcleo essencial é, no plano individual, a personalidade de alguém, e, no plano social, o lugar ocupado na divisão do trabalho, a inserção social de classe. Isso traz como conseqüência que a “identidade nacional” precisa ser concebida como harmonia e/ou tensão entre o plano individual e o social e também como harmonia e/ou tensão no interior do próprio social. Para fazê-la, os ideólogos da “identidade nacional” invocam as idéias de “consciência individual”, “consciência social” e “consciência nacional”. Ou, como observa Anderson, a identidade “deve incluir uma certa autoconsciência [...] sempre possui uma dimensão reflexiva ou subjetiva, enquanto o caráter pode permanecer, no limite, puramente objetivo, algo percebido pelos outros sem que o agente esteja consciente dele”. O apelo da “identidade nacional” à consciência opera um deslizamento de grande envergadura, escorregando da consciência de classe para a consciência nacional.
Para que se possa ter uma idéia da diferença entre as duas ideologias, tomemos um exemplo. Na ideologia do “caráter nacional brasileiro”, a nação é formada pela mistura de três raças - índios, negros e brancos - e a sociedade mestiça desconhece o preconceito racial. Nessa perspectiva, o negro é visto pelo olhar do paternalismo branco, que vê a afeição natural e o carinho com que brancos e negros se relacionam, completando-se uns aos outros, num trânsito contínuo entre a casa-grande e a senzala. Na ideologia da “identidade nacional”, o negro é visto como classe social, a dos escravos, e sob a perspectiva da escravidão como instituição violenta que coisifica o negro, cuja consciência fica alienada e só escapa fugazmente da alienação nos momentos de grande revolta. Na primeira, o caráter brasileiro é formado pelas relações entre o branco bom e o negro bom (se nosso caráter for louvado), ou entre o branco ignorante e o negro indolente (se nosso caráter for depreciado). Na segunda, a identidade nacional aparece como violência branca e alienação negra, isto é, como duas formas de consciência definidas por uma instituição, a escravidão. Como observa Silvia Lara, no livro Campos da violência, a primeira imagem é a da escravidão benevolente, enquanto a segunda é a da escravidão como violência, mas nos dois casos os negros não são percebidos como o que realmente foram, tirando desses homens e mulheres “sua capacidade de criar, de agenciar e ter consciências políticas diferenciadas”, numa palavra, despojando-os da condição de sujeitos sociais e políticos.
Enquanto a ideologia do “caráter nacional” apresenta a nação totalizada – é assim que, por exemplo, a mestiçagem permite construir a imagem de uma totalidade social homogênea -, a da “identidade nacional” a concebe como totalidade incompleta e lacunar - é assim que, por exemplo, escravos e homens livres pobres, no período colonial, ou os operários, no período republicano, são
descritos sob a categoria da consciência alienada, que os teria impedido de agir de maneira adequada. A primeira opera com o pleno ou o completo, enquanto a segunda opera com a falta, a privação, o desvio. E não poderia ser de outra maneira. A “identidade nacional” pressupõe a relação com o diferente. No caso brasileiro, o diferente ou o outro, com relação ao qual a identidade é definida, são os países capitalistas desenvolvidos, tomados como se fossem uma unidade e uma totalidade completamente realizadas. É pela imagem do desenvolvimento completo do outro que a nossa “identidade”, definida como subdesenvolvida, surge lacunar e feita de faltas e privações. 
Entre os anos 1950-1970, a elaboração da “identidade nacional” apresenta a sociedade brasileira com os seguintes traços:
1) ausência de uma burguesia nacional plenamente constituída, tal que alguma fração da classe dominante possa oferecer-se como portadora de um projeto hegemônico, não tendo, portanto, condições de se apresentar como classe dirigente; há um vazio no alto;
2) ausência de uma classe operária madura, autônoma e organizada, preparada para propor um programa político capaz de destruir o da classe dominante fragmentada. Por suas origens imigrantes e camponesas, essa classe tende a desviar-se de sua tarefa histórica, caindo no populismo; há um desvio embaixo;
3) presença de uma classe média de difícil definição sociológica, mas caracterizada por uma ideologia e uma prática heterônomas, oscilando entre atrelar-se à classe dominante ou ir a reboque da classe operária;
4) as duas primeiras ausências e a inoperância da classe média criam um vazio político que será preenchido pelo Estado, o qual é, afinal, o único sujeito político e o único agente histórico;
5) a precária situação das classes torna impossível a qualquer delas produzir uma ideologia, entendida como um sistema coerente de representações e normas com universalidade suficiente para impor-se a toda a sociedade. Por esse motivo, as idéias são importadas e estão sempre fora do lugar.
Assim, a identidade do Brasil, construída na perspectiva do atraso ou do subdesenvolvimento, é dada pelo que lhe falta, pela privação daquelas características que o fariam pleno e completo, isto é, desenvolvido.
Postas as coisas dessa maneira, tanto a ideologia do caráter nacional como a da identidade nacional parecem pertencer a um passado remoto, nada podendo dizer sobre a situação atual do país que, como sabemos, é agora batizado com o nome e país emergente.
De fato, hoje, o “princípio da nacionalidade” (como diziam os liberais do século XIX) ou a “idéia nacional” e a “questão nacional” (como diziam liberais, marxistas e nazi-fascistas do início até os meados do século XX) parecem, finalmente, ter perdido sentido. Enquanto de 1830 a 1970, a nação e o nacionalismo foram objeto de discursos partidários, de programas estatais, lutas civis e guerras mundiais, hoje, o discurso e a ação dos direitos civis, do multiculturalismo, do direito à diferença e a prática econômica neoliberal não apenas tiraram da cena política e ideológica as nacionalidades, mas também mostram que estas permaneceram como referenciais importantes apenas em países e regiões que não têm muito peso em termos dos poderes econômicos e políticos mundiais (Afeganistão, Irlanda, País Basco, Sri Lanka, Timor, Sarajevo, Kosovo, Líbia) ou naqueles em que a questão da nacionalidade aparece travejada pela religião (Irã Israel, Palestina).
Isso nos leva a indagar se haveria algum cabimento na celebração do “Brasil 500”, a menos que um necrológio possa ser considerado uma celebração.
Todavia, postas as coisas dessa maneira, poderíamos também indagar se não estaríamos substituindo um fatalismo fundamentalista por outro. Ou seja, assim como os nacionalismos, ocultando que a nação é uma construção histórica recente fizeram da nacionalidade algo imemorial e destino necessário da civilização, também poderíamos estar tomando o fim dos nacionalismos ou dos Estados-nação como um destino inelutável, como o “fim da história”, tão ao gosto dos neoliberais.
Por isso, cremos ser mais avisado distinguir entre o lugar da nação nas elaborações político- ideológicas de 1830-1980 e seu lugar nas representações sociopolíticas brasileiras, desde o final dos anos 80.
De fato, no primeiro período, a nação e a nacionalidade são um programa de ação e ocupam, à direita e à esquerda, o espaço das lutas econômicas, política e ideológicas. No segundo período, porém, isto é, desde 1980 mais ou menos, nação e nacionalidade se deslocam para o campo das representações já consolida das - que, portanto, não são objeto de disputas e programas -, tendo a
seu cargo diversas tarefas político-ideológicas, tais como legitimar nossa sociedade autoritária, oferecer mecanismos para tolerar várias formas de violência e servir de parâmetro para aferir ou avaliar as autodenominadas políticas de modernização do país. É com esse conjunto de tarefas que elas vêm se inscrever nas comemorações do “Brasil 500”.
“Brasil 500” é, pois, um semióforo historicamente produzido. Como todo semióforo que se destina a explicar a origem e dar um sentido ao momento funde dor de uma coletividade é uma entidade mítica, “Brasil 500” também pertence a campo mítico, tendo como tarefa a reatualização de nosso mito fundador.
Antes de nos voltarmos para o momento de instituição desse mito, queremos, de maneira breve e impressionista, sem acompanhar propriamente as condições materiais da história do Brasil e de sua periodização, assinalar momentos variados em que, silenciosa e invisível, a mitologia da origem se espraia em ações e falas da sociedade e do Estado brasileiros. Como se verá, os exemplos
aqui escolhidos correspondem, grosso modo, às três etapas de construção da idéia de nação que, muito rapidamente, apresentamos acima."

Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária, Marilena Chaui.

sábado, 24 de maio de 2014

"Em Londres, existem dois tipos de padeiros, os "full priced", que vendem o pão por seu valor inteiro, e os "undersellers", que o vendem abaixo desse valor. Essa última classe forma mais do que 3/4 do total de padeiros (p. XXXII do "Report" do comissário governamental H.S. Tremenheere sobre as Grievances Complained of by the journeymen Bakers etc. (Londres, 1862). Esses undersellers vendem, quase sem exceção, um pão falsificado pela adição de lume, sabão, potassa, calcário, pó de pedra de Derbyshire e outros agradáveis, nutritivos e saudáveis ingredientes. Ver o supracitado Blue Book, bem como o relatório do Committee of 1885 on the Adulteration of Bread e o relatório do dr. Hassall, Adulterations Detected (2. ed., Londres, 1861). Sir John Gordon afirmou, perante a comissão de 1855, que, "em consequência dessas falsificações, o pobre, que vive diariamente de 2 libras de pão, agora não obtém a quarta parte de seu real valor nutritivo, sem falar nos efeitos nocivos à sua saúde". Como razão pela qual "uma grande parte da classe trabalhadora", muito embora bem informada sobre essas falsificações, aceita lume, pó de pedra etc como parte de sua compra, Tremenheere (Grievances Complained of by the Journeymen Bakers etc, cit., p. XLVIII) argumenta que, para esses trabalhadores, "é uma questão de necessidade aceitar o pão do padeiro ou do chandler's shop [merceeiro] do modo como eles o fornecem". Uma vez que são pagos apenas ao final da semana de trabalho, eles também só podem "pagar no final de semana o pão que é consumido pela sua família durante a semana"; e acrescenta Tremenheere, citando testemunhas: "É notório que o pão preparado com tais misturas é feito expressamente para ser vendido dessa maneira" ("it is notorious that bread composed of those mixtures, is made expressely for sale in this manner"). "Em muitos distritos agrícolas ingleses" (e mais ainda nos escoceses) "o salário é pago a cada catorze dias, ou até mesmo mensalmente. Com esse longo prazo de pagamento, o trabalhador tem de comprar suas mercadorias a crédito [...]. Ele tem de pagar preços mais altos e está, de fato, preso ao estabelecimentos que lhe fornece crédito. Assim, em Horningham, por exemplo, onde o salário é pago mensalmente, a mesma quantidade de farinha que ele poderia comprar em outro lugar por 1 xelim e 10 pence custa-lhe 2 xelins e 4 pence", "Sixth Rport on Public Health by The Medical Officer of the Privy Council etc" (Londres, 1864), p. 264. "Em 1853, os trabalhadores das estamparias de calico Paisley e Kilmarnock" (oeste da Escócia) "forçaram, por meio de uma greve, a redução do prazo de pagamento de um mês para catorze dias", "Reports of the Inspectors of Factories for 31 Oct. 1853", p. 34. Como um resultado adicional do crédito que o trabalhador dá ao capitalista pode-se considerar também o método empregado em muitas minas de carvão inglesas, onde o trabalhador só é pago ao final do mês e, nesse intervalo, recebe adiantamentos do capitalista, frequentemente em mercadorias que ele é obrigado a pagar acima de seu preço de mercado (truck system). "É uma prática comum aos donos de minas de carvão que  os trabalhadores uma vez por mês e, nesse ínterim, ao final de cada semana, dar a eles um adiantamento. Tal adiantamento lhes é dado na loja" (isto é, no almoxarifado da mina ou na mercearia que pertence ao próprio patrão). "Os trabalhadores recebem o dinheiro de um lado da loja e o devolvem do outro lado", Children's Employment Commision, "III Report" (Londres, 1864), p. 38, n. 192." 

Marx, Karl, O Capital, editora Boitempo.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

"PRIMEIRO COVEIRO:
[...]
Na mocidade eu amava e amava;
Como era doce passar assim o dia
Encurtando (ô!) o tempo (ah!) que voava
E eu não via a vida que fugia.
HAMLET: Esse camarada não tem consciência do trabalho que faz, cantando enquanto abre uma sepultura?
HORÁCIO: O costume transforma isso em coisa natural.
HAMLET: É mesmo. A mão que não trabalha tem o tato mais sensível.
PRIMEIRO COVEIRO: (Canta.) E a velhice chega bem furtiva
Na lentidão que tarda, mas não erra
E nos atira aqui dentro da cova
Como se o homem também não fosse terra.
(Descobre um crânio.)
HAMLET: Esse crânio já teve língua um dia, e podia cantar. E o crápula o atira aí pelo chão, como se fosse a queixada de Caim, o que cometeu o primeiro assas
sinato. Pode ser a cachola de um politiqueiro, isso que esse cretino chuta agora;
ou até o crânio de alguém que acreditou ser mais que Deus.
HORÁCIO: É, pode ser.
HAMLET: Ou de um cortesão que só sabia dizer: “Bom-dia, amado príncipe!
Como está o senhor, meu bom senhor?” Pode ter sido o Lord Tal-e-qual, que elo
giava o cavalo do Lord Qual-e-Tal na esperança de ganhá-lo, não é mesmo?
HORÁCIO: É, meu senhor.
HAMLET: Pode ser. E agora sua dona é Madame Verme; desqueixado e com o
quengo martelado pela pá de um coveiro. Uma bela revolução, se tivéssemos ca
pacidade de entendê-la. A educação desses ossos terá custado tão pouco que só
sirvam agora pra jogar a bocha? Os meus doem, só de pensar nisso.
PRIMEIRO COVEIRO: (Canta.) Uma picareta e uma pá, uma pá
E também uma mortalha
Cova de argila cavada
Pra enterrar a gentalha.
(Desenterra outro crânio.)
HAMLET: Mais um! Talvez o crânio de um advogado! Onde foram parar os seus sofismas, suas cavilações, seus mandatos e chicanas? Por que permite agora que um patife estúpido lhe arrebente a caveira com essa pá imunda e não o denuncia por lesões corporais? Hum! No seu tempo esse sujeito talvez tenha sido um grande comprador de terras, com suas escrituras, fianças, termos, hipotecas, retomadas de posse. Será isso a retomada final de nossas posses? O termo de nossos termos, será termos a caveira nesses termos? Os fiadores dele continuarão avalizando só com a garantia desse par de identificações? As simples escrituras de suas terras dificilmente caberiam nessa cova; o herdeiro delas não mereceria um pouco mais?
HORÁCIO: Nem um dedo mais, senhor.
HAMLET: O pergaminho das escrituras não é feito de pele de carneiro?
HORÁCIO: É, meu senhor. De vitela também.
HAMLET: É; só vitelos e carneiros têm confiança nisso. Vou falar com esse aí.
(Ao Coveiro.) De quem é essa cova, rapaz?
PRIMEIRO COVEIRO: Minha, senhor.
(Canta.) O que falta a tal hóspede
É um buraco de argila.
HAMLET: Tua, claro. Estás todo encovado.
PRIMEIRO COVEIRO: Sua é que não é. O senhor parece preocupado, e ela é
pós-ocupada.
Eu me ocupo da campa, logo estou acampado.
HAMLET: A cova que cavas é coisa de morto. Um vivo na tumba está só confinado.
PRIMEIRO COVEIRO: Resposta bem viva, senhor; xeque-mortal!
HAMLET: Pra que homem está cavando o túmulo?
PRIMEIRO COVEIRO: Pra homem nenhum, senhor.
HAMLET: Pra qual mulher, então?
PRIMEIRO COVEIRO: Nenhuma, também.
HAMLET: Então o que é que você vai enterrar aí?
PRIMEIRO COVEIRO: Alguém que foi mulher, senhor; mas, paz à sua alma, já
morreu.
HAMLET: O patife é esperto! Devemos falar com precisão, ou ele nos envolve em ambigüidades. Por Deus, Horácio, há uns três anos venho notando isso; nosso tempo se tornou tão refinado que a ponta do pé do camponês já está no calcanhar do cortesão; até lhe machucando os calos. (Ao Coveiro.) Há quanto tempo você é coveiro?
PRIMEIRO COVEIRO: Entre todos os dias do ano escolhi começar no dia em que falecido rei Hamlet venceu Fortinbrás.
HAMLET: Há quanto tempo, isso?
PRIMEIRO COVEIRO: O senhor não sabe? Qualquer idiota sabe. Foi no mesmo
dia em que nasceu o príncipe Hamlet, o que ficou maluco e foi mandado pra In-
glaterra.
HAMLET: Ó, diabo, por que foi mandado pra Inglaterra?
PRIMEIRO COVEIRO: Ué, porque ficou maluco. Diz que lá recupera o juízo; e, se não recuperar, lá não tem importância.
HAMLET: Por quê?
PRIMEIRO COVEIRO: Na Inglaterra ninguém repara nele, aquilo lá é tudo doido.
HAMLET: Como é que ficou maluco?
PRIMEIRO COVEIRO: Dizem que de maneira muito estranha.
HAMLET: Estranha como?
PRIMEIRO COVEIRO: Parece que perdeu o juízo.
HAMLET: E qual foi a razão?
PRIMEIRO COVEIRO: Achar que não tinha razão! Isso, na Dinamarca! Já sou
coveiro aqui, juntando rapaz e homem feito, tem bem trinta anos.
HAMLET: Quanto tempo um homem pode ficar embaixo da terra antes de apo-
drecer?
PRIMEIRO COVEIRO: Olha, se já não estava podre antes de morrer – hoje tem aí muito cadáver pestilento que já quase nem espera a gente enterrar – dura uns
oito ou nove anos. Um curtidor agüenta bem nove anos.
HAMLET: Por que ele mais que os outros?
PRIMEIRO COVEIRO: Ora, senhor, a pele dele está tão curtida pela profissão
que a água custa muito a penetrar. Essa água é que é a inimiga corroedora do
filho da puta do cadáver. Olha, vê aqui esse crânio? – tava enterrado aí há vinte e três anos.
HAMLET: De quem era?
PRIMEIRO COVEIRO: Um maluco filho da puta, esse aí. O senhor pensa que é
de quem?
HAMLET: Sei lá – não sei.
PRIMEIRO COVEIRO: Que a peste nunca abandone esse palhaço louco! Uma
vez derramou na minha cabeça um garrafão inteiro de vinho do Reno. Esse crâ-
nio aí, cavalheiro, foi o crânio de Yorick, o bobo do rei.
HAMLET: Este aqui?
PRIMEIRO COVEIRO: Esse aí!
HAMLET: Deixa eu ver. (Pega o crânio.) Olá, pobre Yorick! Eu o conheci, Horá-
cio. Um rapaz de infinita graça, de espantosa fantasia. Mil vezes me carregou nas costas; e agora, me causa horror só de lembrar! Me revolta o estômago! Daqui pendiam os lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Yorick, onde andam agora as tuas piadas? Tuas cambalhotas? Tuas cantigas? Teus lampejos de alegria que faziam a mesa explodir em gargalhadas? Nem uma gracinha mais, zombando da tua própria dentadura? Que falta de espírito! Olha, vai até o quarto da minha grande Dama e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso! Por favor, Horácio, me diz uma coisa.
HORÁCIO: O que, meu senhor?
HAMLET: Você acha que Alexandre também ficou assim em baixo da terra?
HORÁCIO: Assim mesmo.
HAMLET: E fedia assim? Puá! (Joga o crânio fora.)
HORÁCIO: Assim mesmo.
HAMLET: A que serventias vis podemos retornar, Horácio! Nada nos impede de
seguir o caminho da nobre cinza de Alexandre, até achá-lo calafetando um furo
de barrica.
HORÁCIO: Pensar assim é chegar a minúcias excessivas.
HAMLET: Não, por minha fé, nada disso! É apenas seguir o pensamento com na
turalidade. Vê só: Alexandre morreu; Alexandre foi enterrado; Alexandre voltou ao pó; o pó é terra; da terra nós fazemos massa. Por que essa massa em que ele se converteu não pode calafetar uma barrica?
Cesar Augusto é morto, virou terra;
Pôr o vento pra fora é sua guerra –
O mundo tremeu tanto ante esse pó
Que serve agora pra tapar buraco – só."

Hamlet, William Shakeaspeare.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Uma província

"AS províncias da República da Bruzundanga, que são dezoito ou vinte, gozam, de acordo com a Carta Constitucional daquele país, da mais ampla autonomia, até ao ponto de serem, sob certos aspectos, quase como países independentes.
Seria enfastiar o leitor querer dar detalhes das prerrogativas que usufruem as províncias. Com isto, faria obra de estudioso de cousas legislativas e não de viajante curioso que quer transmitir aos seus concidadãos detalhes de costumes, que mais o feriram em terras estranhas. Faço trabalho de turista superficial e não de erudito que não sou.
Das províncias da Bruzundanga, aquela que é tida por modelar, por exemplar, é a província do Kaphet. Não há viajante que lá aporte, a quem logo não digam: vá ver Kaphet, aquilo sim! Aquilo é a jóia da Bruzundanga.
A mim — é bem de ver-se — os magnatas de lá não me fizeram semelhante convite; mas à tal província fui por minha própria iniciativa e sem os tropeços de cicerones oficiais que me impedissem de ver e examinar tudo com a máxima liberdade.
Pela leitura, sabia que a gente rica da província se tem na conta de aristocratas, de nobres e organizam a sua genealogia de modo que as suas casas tomem origem em certos antropófagos, como eram os primitivos habitantes da província, dos quais todos eles querem descender. Singular nobreza!
Sempre achei curioso que a presunção pudesse levar a tanto, mas, em lá chegando, observei que podia levar mais longe. O traço característico da população da província do Kaphet, da República da Bruzundanga, é a vaidade. Eles são os mais ricos do país; eles são os mais belos; eles são os mais inteligentes; eles são os mais bravos; eles têm as melhores instituições, etc., etc.
E isto de tal forma está apegado ao espírito daquela gente toda, que não há modesto mestre-escola que não se julgue um Diderot ou um Aristóteles, e mais do que isso, pois, deixando de parte a teoria, se julgam também capazes de exercer qualquer profissão deste mundo; e, se se fala em ser oficial de marinha,
eles se dizem capazes de sê-lo do pé pra mão, e assim de artilharia, de cavalaria. Imaginam-se prontos para serem astrônomos, pintores, químicos, domadores de feras, pescadores de pérolas, remadores de canoas, niveladores, o diabo!
Tudo isto porque a província faz questão de que conste nos panegíricos dela que o seu ensino é uma maravilha; as suas escolas normais, cousa nunca vista; e os seus professores sem segundos no mundo.
Domina nos grandes jornais e revistas elegantes da província, a opinião de que a arte, sobretudo a de escrever, só se deve ocupar com a gente rica e chic, que os humildes, os médios, os desgraçados, os feios, os infelizes não merecem atenção do artista e tratar deles degrada a arte. De algum modo, tais estetas
obedecem àquela regra da poética clássica, quando exigia, para personagens da tragédia, a condição de pessoas reais e principais.
Mas, como eles não têm dessa gente lá; não têm nem Orestes, nem Ájax, nem Ismênia, nem Antígone, os Sófocles da província se contentam com algumas gordas fazendeiras ricas e saltitantes filhas de abastados negociantes ou com uns bacharéis enfadonhos, quando não tratam de solertes atravessadores de
café.
Um dos traços mais evidentes da vaidade deles, não está só no que acabo de contar. Há manifestações mais ingênuas.
Quando lá estive, deu-me vontade de ir ver a pinacoteca e a gliptoteca locais. Já havia visto as da capital da Bruzundanga. Eram modestas, possuindo um ou outro quadro ou mármore de autor de grande celebridade. Eram modestas, mas probas e honestas.
Tinham-me dito cousas portentosas da galeria de quadros e estátuas da capital da província do Kaphet. Fui até lá, como quem fosse para a de Munich ou para o Louvre. Adquiri um catálogo e logo topei com esta indicação: "La Gioconda", quadro de Leonardo da Vinci.
Fiquei admirado, assombrado com aquelas palavras do catálogo. Teria a França vendido a célebre criação do mestre florentino? Poderia tanto o dinheiro do café? Corri à sala indicada e dei — sabem com quê? Com a reprodução fotográfica do célebre retrato a óleo de Mona Lisa del Gioconda, uma reprodução da Casa Braün!
Não quis ir adiante para ver a "Ronda Noturna", de Rembrandt, um Corot, um Watteau, nem tampouco na secção de escultura, a "Vitória de Samotrácia" e
a "La Pietá", de Miguel Ângelo.
Eles, os da província, falam muito em arte, na cultura artística daquele rincão da Bruzundanga; mas o certo é que não lhe vi nenhuma manifestação palpável. Vão ter uma prova.
Durante os dias em que lá estive apuravam-se as provas do concurso aberto para a escolha das armas da capital. Vi os desenhos. Que cousas hediondas! Quanta insuficiência artística! Não havia talvez dous desenhos, já não direi de acordo com as regras da heráldica, mas do gosto. Eram verdadeiros rótulos de
cerveja marca "barbante".
Não falo de música, porque pouco observei sobre tal arte; mas, no que toca à arquitetura, posso dizer, com convicção, que lá não há um arquiteto de talento. Devia citar-lhes o nome aqui; mas, ao se tratar de tal gente, podia parecer que queria arranjar dinheiro. Não preciso.
Outra pretensão curiosa da gente daquela província da Bruzundanga é afirmar que a sua casquilha capital é uma cidade européia. Há tantos tipos de cidades européias que tenho vontade de perguntar se ela é do tipo Atenas, do tipo Veneza, do tipo Carcassone, do tipo Madrid, do tipo Florença, do tipo Estocolmo —de que tipo será afinal? Certamente do de Paris. Ainda bem, que ela não quer ser ela mesma.
O mal da província não está só nessas pequenas vaidades inofensivas; o seu pior mal provém de um exagerado culto ao dinheiro. Quem não tem dinheiro nada vale, nada pode fazer, nada pode aspirar com independência. Não há metabolia de classes. A inteligência pobre que se quer fazer, tem que se curvar aos ricos e cifrar a sua atividade mental em produções incolores, sem significação, sem sinceridade, para não ofender os seus protetores. A brutalidade do dinheiro asfixia e embrutece as inteligências.
Não há lá independência de espírito, liberdade de pensamento.
A polícia, sob este ou aquele disfarce, abafa a menor tentativa de crítica aos dominantes. Espanca, encarcera, deporta sem lei hábil, atemorizando todos e impedindo que surjam espíritos autônomos. É o arbítrio; é a velha Rússia.
E isso a polícia faz para que a província continue a ser uma espécie de República de Veneza, com a sua nobreza de traficantes a dominá-la, mas sem sentimento das altas cousas de espírito.
Ninguém pode contrariar as cinco ou seis famílias que governam a província, em cujo proveito, de quando em quando, se fazem umas curiosas valorizações dos seus produtos. Ai daquele que o fizer!
A mentalidade desses oligarcas é tal, que não trepidaram em fazer votar uma lei colonial, uma verdadeira disposição de Carta Régia, para, diziam eles, aumentar o preço da "medida" (cerca de quinze quilos) do café. O seu aparelho governativo decretou, em certa ocasião, a proibição do plantio de mais um pé
de café que fosse, da data daquela lei em diante. A lei, ao que parece, caiu em desuso. Não era de esperar outra coisa...
Havia muito ainda a dizer a respeito; mas bastam estes traços para os brasileiros julgarem o que é uma província modelo na República dos Estados Unidos da Bruzundanga."


Lima Barreto, Os Bruzundangas.


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